Argentina, 1985

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(Disponível na Amazon Prime Vídeo em novembro de 2022.)

Sim, é isso mesmo. Argentina, 1985 é um filmaço, uma maravilha, uma obra-prima.

Recente, lançado no final de setembro de 2022, o filme já chegou absolutamente coberto de loas – e em geral fico um pouco assustado e até temeroso quando isso acontece. E se não for tudo isso? E se eu não gostar?

Não tem jeito. Simplesmente não há como a gente não se render ao óbvio: Argentina, 1985 é uma absoluta beleza.

É engraçado, esquisito, fascinante pensar que Santiago Mitre tinha apenas cinco anos de idade quando aconteceram os fatos que ele descreve em seu filme – o julgamento, por um tribunal civil, dos nove comandantes militares que haviam presidido o país ao longo da violenta, sangrenta, assassina ditadura entre 1976 e 1983.

Era mais novo que Javier (o papel de Santiago Armas Estevarena), o caçula dos dois filhos do promotor de Justiça Julio César Strassera, conhecido entre os amigos por El Loco, escolhido por seus superiores para a função – esta sim, absolutamente louca, insana – de apresentar as provas contra aqueles generais, brigadeiros e almirantes que até outro dia mesmo eram os ditadores todo-poderosos da Argentina.

Como assim, botar no banco dos réus o Jorge Rafael Videla, o primeiro general ditador do regime recém-deposto? O almirante Emilio Eduardo Massera, que participou dos golpes de estado de 1955, que derrubou Juan Domingo Perón, e de 1976, que derrubou o governo democrático de Isabelita Perón? O general Leopoldo Galtieri, o cara que começou a guerra contra um dos maiores impérios do mundo, a Grã-Bretanha?

Strassera fugia o quanto era possível do seu superior hierárquico, Bruzzo (Gabriel Fernández), para evitar que o boato de sua convocação para atuar como promotor no julgamento dos milicos se transformasse em verdade. Naqueles dias – eram meados de 1984, o presidente Raul Alfonsín havia assumido em dezembro de 1983 –, Strassera, El Loco, estava mais preocupado em vigiar os passos da filha Verónica (Gina Mastronicola), bela, atraente moça aí de uns 17 anos. Nas primeiras sequências do filme, vemos que Strassera punha o caçula Javier, garoto aí de uns 10 anos, para seguir a irmã. Verónica andava namorando um homem bem mais velho – que ele, Strassera, temia fosse um espião a serviço dos militares.

Centrar a narrativa do filme sobre o julgamento dos ditadores argentinos na figura do promotor Julio César Strassera, mesclando muito de sua vida particular com seu trabalho na apuração dos crimes cometidos durante o que era chamado pelos militares e seus apoiadores de “guerra suja”, é um dos grandes, imensos méritos do diretor e co-autor do roteiro Santiago Mitre.

Aos 42 anos de idade apenas, esse rapaz realizou um filme absolutamente maduro. Argentina, 1985 não tem preocupação com invencionices, criativóis, frescuras formais. Muito ao contrário, tem uma narrativa límpida, clara, escorreita; em alguns momentos, há, sim, shows especiais de talento, mas nada do tipo berrante, “olha aí como eu sou genial”.  É um filme belo, sensível, forte, emocionante, tocante – e consegue até mesmo ter momentos leves, suaves, bem humorados.

Consta que, nas sessões lotadas dos cinemas portenhos, os espectadores urravam de alegria, aplaudiam de pura emoção.

Não é para menos. Filmaço.

Ah, sim: ainda não explicitei quem faz o papel do promotor Julio César Strassera, El Loco, mas a rigor nem seria necessário. Claro que o papel central é de Ricardo Darín, esse sujeito tão belo quanto simpático que é a própria cara do grande, magnífico cinema que los hermanos vêm fazendo nas últimas décadas.

Bela mescla da Grande História com a vida pessoal

Santiago Mitre começa seu filme com um letreiro um tanto surpreendente: “Inspirada en hechos reales”. O normal é se usar “inspirado em fatos reais” quando o filme usa e abusa de liberdades poéticas, quando a obra se afasta claramente da realidade dos fatos que retrata. A frase “baseado em fatos reais” é a adequada a filmes que procuram se ater bastante, na medida do possível, à verdade factual.

Achei essa opção do realizador um tanto estranha, porque as indicações são de que o filme de fato procurou ser fiel aos fatos históricos. Tanto que, nos créditos finais, como é costume em filmes baseados em fatos reais, vemos fotos da época e das pessoas retratadas. E é impressionante como a figura de Ricardo Darín foi trabalhada para ter grande semelhança com o promotor Julio César Strassera, assim como há muita semelhança entre o ator Peter Lanzani e o promotor auxiliar Luis Moreno Ocampo, o segundo personagem mais importante do filme.

Bem. O fato é que, depois desse aviso que diz “Inspirada en hechos reales”, há – como em tantos filmes que contam histórias reais – vários letreiros destinados a situar o espectador no contexto da trama que virá a seguir. Vou transcrever aqui as frases com que os realizadores sintetizaram os acontecimentos históricos:

“Em dezembro de 1983, a Argentina recupera a democracia depois de sete anos de ditadura militar. O presidente Alfonsín ordena levar à Justiça os ex-comandantes por crimes contra a humanidade. Os comandantes se sentem vencedores de uma guerra contra a subversão e só aceitam ser julgados por tribunais militares.

“Após sete meses desde que assumiu o novo governo, o julgamento não avança. O boato de que ele poderia passar para a Justiça civil cresce.

Se isso viesse a acontecer, a Câmara Federal de Apelações deveria assumir o julgamento. A responsabilidade de acusá-los recairia sobre um único promotor: Julio Strassera.”

Enquanto lemos as últimas frases na tela, já estamos vendo o promotor Strassera, numa noite chuvosa, tentando seguir os passos de uma moça que, logo veremos, é sua filha Verónica.

O roteiro brilhante de Santiago Mitre e Mariano Llinás mescla a Grande História com a história da vida privada do protagonista do filme já na abertura. É uma maravilha.

A mais sangrenta das ditaduras do Cone Sul

A ditadura argentina de 1976-1983 foi, de longe, a mais sangrenta de todas as que desabaram sobre os países da América do Sul entre as décadas de 60 e 80. Os números disponíveis são todos chocantes, e mostram isso:

* No Chile, a ditadura do general Pinochet durou 17 anos, de 1973 a 1990. Foram mais de 3 mil mortos, com 40 mil casos de tortura registrados, comprovados.

* No Uruguai, o menor desses países, com apenas cerca de 3 milhões de habitantes à época, a ditadura durou 13 anos, entre 1972 e 1985. O número de mortos foi de 123, com 196 desaparecidos; 300 mil uruguaios, um décimo de toda a população do país, foram obrigados a se exilar.

* A ditadura militar brasileira durou 21 anos, de 1964 a 1985, e deixou 434 mortos e desaparecidos.

* Na Argentina, o número é inimaginável, absurdo. O cálculo feito pelas organizações de direitos humanos é de que 30 mil pessoas tenham sido assassinadas ao longo dos sete anos da ditadura comandada pelos militares que foram acusados pelo promotor Strassera.

O promotor não era um super-herói

Julio César Strassera nasceu em 1933, em Comodoro Rivadavia, e mudou-se cedo para Buenos Aires. Depois de concluir o curso de Direito, trabalhou como juiz, a partir de 1976. Foi nomeado promotor federal já durante a ditadura militar. Isso não é dito no filme – está na Wikipedia, e ela afirma que, “durante a ditadura, como promotor e como juiz, se encarregou de habeas corpus solicitados por presos políticos, vários deles negados.” Morreria em 2015, aos 82 anos.

O promotor Strassera (em espanhol se diz “fiscal”; achei isso engraçado) que o filme mostra, que Ricardo Darín compõe, com seu imenso talento, é um homem sério, sisudo, um tanto seco demais, um tanto cabeça dura demais. Odeia a ditadura, odeia tudo o que a ditadura representa e todos os que a defendem – mas não foi um sujeito que, durante a ditadura, lutou contra ela, contra seus desmandos. Há um momento em que uma das líderes do movimento das Mães da Plaza de Mayo diz que Strassera não fez nada a favor dos parentes dos desaparecidos políticos – e ela repete a palavra: – “Nada, nada, nada”.

Um funcionário público – como ele mesmo se define – que odiava a ditadura, mas não havia lutado contra ela. Um homem que tinha medo de contestar de frente a ditadura e ser vítima de violência, fosse de agente oficial do Estado, fosse do braço clandestino dos porões dos quartéis.

Um homem que estava preocupado em seguir os movimentos da filha – talvez nem tanto para protegê-la contra o homem mais velho, mas para proteger a si mesmo de um espião a mando dos militares.

Cabeça dura. Um sujeito que gostava de dizer “não” para tudo – inclusive para as coisas que mais obviamente seriam a seu favor. Strassera a princípio recusou a proteção dos dois segurança que o Estado pôs à sua disposição. Da mesma maneira, a princípio recusou terminantemente o promotor auxiliar que nomeiam para ele, o jovem Luis Moreno Ocampo.

No entanto, foi Ocampo o responsável por boa parte do trabalho da promotoria; partiu dele a idéia de chamar gente jovem, forte, cheia de disposição, para o trabalho pesado, duro, de encontrar, país afora, gente disposta a testemunhar que sofreu tortura, que presenciou prisões de parentes.

Uma das mais belas sequências deste filme de tantas belas sequências é a que mostra o promotor Strassera e sua mulher, Silvia (o papel de Alejandra Flechner), juntos, à noite, na pequena varanda de seu apartamento classe média em Buenos Aires. O julgamento dos comandantes militares já estava havia dias e dias em todo o noticiário dos jornais, das emissoras de rádio e TV, e Silvia diz para o marido que sempre o havia visto como cético mal-humorado, mas agora tinha orgulho dele.

Creio que uma das maiores qualidades deste filme excepcional é mostrar essa pessoa que tanta gente chamou de “herói nacional” – e de fato foi mesmo um herói nacional, diacho! – como um ser humano cheio de questões, problemas, pontos fracos.

Argentina 1985 mostra que o promotor Julio César Strassera acabou fazendo um trabalho excepcional, maravilhoso, heróico não porque fosse um super-homem – sequer um homem de atuação permanentemente firme, corajosa. Mas porque teve a ajuda de uma porção de fatos e pessoas que vieram em seu auxílio – o não desejado, não querido auxiliar Luis Moreno Ocampo, o time de garotos que Ocampo sugeriu que fosse assumido pela promotoria, seu amigo diretor de teatro, o velho advogado também grande amigo.

Até mesmo na redação do texto de seu libelo acusatório final antes da decisão  – e nisso o filme dá grande ênfase –, Strassera teve ajuda de um monte de gente.

Em suma: não foi a ação de um homem que levou à condenação em um tribunal civil – pela primeira vez na História da humanidade – de comandantes militares de uma ditadura. Uma andorinha não faz verão, e na História não há heróis super-homens, e quem construiu as pirâmides do Egito e Tebas das sete portas não foram os faraós, os reis, como diz Bertold Brecht, e sim um monte de gente, um monte gigantesco de pessoas e vontades.

Darín fez dois outros filmes sobre a ditadura

Argentina, 1985 foi o terceiro filme estrelado por Ricardo Darín que trata específica e diretamente da sangrenta ditadura argentina de 1976-1983. (Bem: terceiro entre os que vi e estão aqui no + de 50 Anos de Filmes.)

Em Kamchatka (2002), de Marcelo Piñeyro, Ricardo Darín e a também sempre ótima Cecilia Roth interpretam um casal que, logo após o golpe militar, por medo de serem perseguidos e presos, se refugia em um sítio de amigos, bem distante de Buenos Aires, no gelado Sul, com os dois filhos pequenos.

Em Kóblic (2016), de Sebastián Borensztein, Darín faz um piloto que também – exatamente como seu personagem em Kamchatka – está vivendo num pequeno lugarejo que parece perdido no meio do nada, bem no Sul da Argentina. O realizador Borensztein adia o quanto pode o momento de revelar para o espectador o passado do piloto que é o protagonista da história. Só bem para o final ficamos sabendo que o pano de fundo do filme é um dos episódios mais terríveis, mais dilacerantemente pavorosos da época em que os países do Cone Sul foram tomados por ditaduras militares sanguinárias – os vôos da morte, os vôos em que militares argentinos lançavam para o fundo do mar corpos dos opositores do regime.

Vou aproveitar a oportunidade e reunir aqui os filmes estrelados por este ator que de fato é a cara do cinema argentino das últimas décadas e que já foram comentados aqui neste site:

Nove Rainhas/Nueve Reinas. de Fabián Bielinsky, 2000

O Filho da Noiva/El Hijo de la Novia, de Juan José Campanella, 2001

Kamchatka, de Marcelo Piñeyro, 2002

Clube da Lua/La Luna de Avellaneda. de Juan José Campanella, 2004

A Dançarina e o Ladrão / El Baile de la Victoria, de Fernando Trueba, 2009

O Segredo dos Seus Olhos/El Secreto de Sus Ojos, de Juan José Campanella, 2009

Um Conto Chinês/Um Cuento Chino, de Sebastián Borensztein, 2011

O Que os Homens Falam/Una Pistola en Cada Mano, Cesc Gay, 2012

Relatos Selvagens/Relatos Salvajes, de Damián Szifrón, 2014

Tese sobre um Homicídio/Tesis sobre um Homicidio, de Hernán Goldfrid, 2013

Truman, de Cesc Gay, 2015

Kóblic, de Sebastián Borensztein, 2016

A Odisséia dos Tontos/La Odiseia de los Giles, de Sebastián Borensztein, 2019

Um Amor Inesperado/El Amor Menos Pensado, Juan Vera, 2018

(Na foto, Alejandra Flechner, Ricardo Darín, Santiago Mitre e Peter Lanzani no Festival de Veneza. )

Premiado em Veneza, o filme tenta o Oscar

No ano em que o diretor Santiago Mitre nasceu, 1980, Ricardo Darín, que é de 1957, fez dois filmes, La Playa del Amor e La Canción de Buenos Aires; já não era um principiante.

Fico imaginando que não deve ser fácil para um rapaz tão mais jovem dirigir um ator que hoje é uma lenda.

Mas este Argentina, 1985 foi o segundo filme em que Mitre dirigiu Darín. Em 2017 haviam feito juntos A Cordilheira, também sobre política, em que Darín interpreta o presidente da Argentina (um personagem fictício) que, em meio a problemas pessoais e acusações de corrupção, participa de uma reunião de cúpula dos países da América Latina para discutir a criação de uma Associação Petroleira a ser bancada e comandada por todos eles. Acabei não escrevendo sobre ele na época em que o vimos, mas é um filme muito bom.

Em 2015, Santiago Mitre havia dirigido outro grande nome do cinema argentino, Oscar Martínez, e a jovem Dolores Fonzi em Paulina/A Patota. É um filme que tem qualidades – em especial as interpretações desses dois atores, excelentes –, mas eu não consegui compreender a personagem central, a Paulina do título brasileiro, interpretada por Dolores Fonzi.

Uma produção que contou com financiadores dos Estados Unidos e Inglaterra, Argentina, 1985 participou do Festival de Veneza de 2022, e recebeu o prêmio da Fipresci, a Federação Internacional de Críticos de Cinema. E foi escolhido pela Argentina para representar o país na corrida ao Oscar de melhor filme estrangeiro de 2023. É impossível prever se ele ficará entre os indicados ao prêmio, mas é bom lembrar que nada menos de sete filmes feitos por nuestros hermanos del Sur já foram indicados ao Oscar. E dois deles levaram o prêmio: A História Oficial (1985), de Luiz Puenzo – ele também sobre a ditadura –, e o já citado aqui O Segredo dos Seus Olhos (2009), de Juan José Campanella.

Os americanos gostaram tanto deste último que não apenas o premiaram como também refilmaram, com o título de Secret in their Eyes, no Brasil Olhos da Justiça (2015), com três grandes nomes no elenco, Chiwetel Ejiofor, Nicole Kidman e Julia Roberts.

Mas o Oscar é o que menos importa. Argentina, 1985 é uma obra-prima.

Anotação em novembro de 2022

Argentina, 1985

De Santiago Mitre, Argentina-EUA-Reino Unido, 2022

Com Ricardo Darín (Julio César Strassera, o promotor)

Peter Lanzani (Luis Moreno Ocampo, o promotor auxiliar)

e Alejandra Flechner (Silvia, a mulher de Strassera), Santiago Armas Estevarena (Javier, o filho de Strassera e Silvia), Gina Mastronicola      (Verónica, a filha de Strassera e Silvia),

Laura Paredes (Adriana Calvo), Carlos Portaluppi (León Carlos Arslanián), Susana Pampín (Magda), Claudio da Passano (Carlos Somigliana), Héctor Díaz (Basile), Gabriel Fernández (Bruzzo), Norman Briski (Ruso), Alejo García Pintos (juiz), Mariano Speratti (juiz), Pablo Caramelo (juiz), Pablo Moseinco (juiz), Walter Jakob (juiz), Almudena González (Judith König), Antonia Bengoechea (María Eugenia), Félix Santamaría Maco Somigliana), Santiago Rovito (Eduardo), Manuel Caponi Lucas Palacios), Leyla Bechara (Isabel), Brian Sichel (Federico Corrales), Paula Ransenberg (Susana), Guillermo Jacubowicz (Ormigga), Marcelo Pozzi (Videla), Joselo Bella     (Massera), Jorge Gregorio (Agosti), Sergio Sanchez (Anaya), Marcelo López (Lami Dozo), Jorge Luis Couto (Graffigna), Carlos Ihler (Galtieri), Héctor Balcone (Viola)

Roteiro Santiago Mitre, Mariano Llinás, com a colaboração de Martín Mauregui

Fotografia Javier Julia

Música Pedro Osuna

Montagem Andrés Pepe Estrada

Castubg Mariana Mitre

Direção de arte Micaela Saiegh

Figurinos Mónica Toschi

Produção Victoria Alonso, Santiago Carabante, Chino Darín, Ricardo Darín, Axel Kuschevatzky,      Agustina Llambi-Campbell, Santiago Mitre, Federico Posternak, La Unión de los Ríos, Kenya Films, Infinity Hill, Amazon Studios.

Cor, 140 min (2h20)

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