Descanse em Paz / Descansar en Paz

Nota: ★★★☆

(Disponível na Netflix em 4/2024.)

Angustiante. Terrível, horrorosa, apavorantemente angustiante. Descanse em Paz (2024) é mais um bom filme do diretor argentino Sebastián Borensztein, que já nos deu os preciosos Um Conto Chinês (2011), Kóblic (2016) e A Odisséia dos Tontos (2019).

Sem dúvida alguma, Descanse em Paz é um bom filme – mas é daqueles bons filmes que não são assim propriamente agradáveis, gostosos de se ver. Trata de fatos da realidade argentina dos últimos anos, exatamente como Kóblic e A Odisséia dos Tontos – o primeiro tem como pano de fundo os “vôos da morte”, os vôos em que os torturadores da ditadura lançavam no mar os corpos dos mortos, e o segundo, a época do “corralito”, o pacote econômico de 2001 que reteve nos bancos o dinheiro dos correntistas.

Como os três filmes citados, este aqui tem Ricardo Darín, e também seu filho Chino – mas não na tela. Os dois são alguns dos produtores – não trabalham como atores.

Sobretudo, muito diferentemente de Um Conto Chinês e A Odisséia dos Tontos, que são bem-humorados, leves, gostosos, este Descanse em Paz é um drama pesado, denso, duríssimo, sem um único momento de refresco. É pauleira, pauleira, de deixar o espectador com o coração apertado, o peito doendo diante do sofrimento desse pobre coitado Sergio Dayan, o protagonista da história, interpretado por Joaquín Furriel.

Bem no começo, um letreio avisa: “Buenos Aires, 1994”

O IMDb classifica este Descansar en Paz no original espanhol, Rest om Peace nos países de língua inglesa, como “drama, suspense”. A Wikipedia em espanhol como “suspense dramático”. Acho que talvez pudesse ser definido como um drama familiar-social-existencial.

Abre com um close-up do rosto de Joaquín Furriel-Sergio Dayan – um belo rosto, mas visivelmente, claramente tenso, preocupado, angustiado. Ele olha para fora da loja em que está, para o outro lado da rua, onde um velho sem-teto sentado no passeio afaga um cão. A loja é uma joalheria – ele está comprando uma correntinha de ouro que, veremos logo em seguida, vai dar de presente pelos 13 anos de sua filha primogênita, Florencia.

As duas coisas – a correntinha de ouro e o sem-teto que afaga o cão – são importantes. A correntinha de ouro vai aparecer de novo em momentos fundamentais da trama. E ele mesmo, Sergio Dayan, empresário portenho, dono de indústria de médio porte criada pelo pai, vai se apegar por 15 longos anos a um cão vira-lata.

Detalhes. Os criadores do roteiro, o próprio diretor Sebastián Borensztein e Marcos Osorio Vidal, encheram a narrativa de pequenos detalhes – como esse sem-teto da segunda tomada do filme – que podem até passar despercebidos pelo espectador.

Ali, naquela sequência de abertura, há mais um desses detalhes: o comerciante pega o cartão de crédito do cliente e começa a examinar uma lista impressa de números de cartões bloqueados. É o primeiro sinal de que a ação não está se passando nos dias de hoje, e sim na era pré-internet.

O cartão está bloqueado; o senhor não tem um outro?, pergunta o comerciante. O cliente diz que vai pagar en efectivo – cash, em dinheiro vivo.

Sergio Dayan está saindo da joalheria com o presente para a filha quando um letreiro informa o quando e onde: “Buenos Aires, 1994”.

Fiquei tentando me lembrar de algum fato histórico importante ocorrido no país nosso vizinho em 1994, mas não consegui. Quando o filme chega ali pelos 27 minutos, mostra-se qual foi o fato histórico que determinou o ano em que se passa a ação.

Uma festa de arromba para os 13 anos da filha

“Buenos Aires, 1994”. Corta, e estamos na festa de 13 anos de Florencia Dayan. (Ela é interpretada por Zoe Kunischi, na  foto acima; mais tarde, depois de um avanço de 15 anos no tempo, a Florencia adulta será o papel de Macarena Suárez.)

É bom lembrar que, para os judeus, 13 anos é a idade em que se atinge a maturidade, e a data do Bar Mitzvah é uma das mais importantes da vida de cada um.

A família havia encomendado para Florencia uma festa de arromba, daquelas milionárias, com várias dezenas, talvez uma centena de convidados, em um salão imenso, seguramente de aluguel caríssimo.

Nas várias sequências da festa, e em várias depois, fica absolutamente claro para o espectador que Sergio adora os dois filhos – além de Florencia, há o garoto Matias, que está então com seis anos –, se dá bem com eles, e eles adoram o pai. (Matias menino é interpretado por Nicolás Jurberg; adulto, por Juan Cottet).

Em um dado momento da festa, Sergio bate olho em um homem grande, volumoso, visivelmente um sujeito que não havia sido convidado. Bate o olho no homem e desmaia. É atendido, se recupera – mas, de volta em casa, é pressionado pela mulher, Estela (Griselda Siciliani, nas fotos acima e abaixo), a dizer o que está havendo, se há alguma coisa acontecendo que ela não estava sabendo.

E Sergio conta – não tudo, não exatamente o tamanho todo da coisa, gigantesco, infinito, mas o principal: ele está soterrado em dívidas. Sua fábrica não consegue competir com os produtos estrangeiros, e ele deve a todo mundo, aos fornecedores, aos empregados, aos bancos, ao governo.

Assim de passagem, sem grande ênfase, ele dá uma cobrada na mulher, perguntando algo do tipo: Pô, você não notou que há muito tempo eu vinha me entupindo de calmantes?

Estela logo fala em vender a casa de campo. Sergio diz que está tentando vender para um amigo chegado – mas o dinheiro com a casa será pouco diante de toda a dívida.

O pior de tudo ele de início não conta para a mulher: está devendo também, e muitíssimo, muitíssimo, a um agiota.

Nunca estive diante de um agiota, felizmente, graças ao bom Deus – mas sempre imaginei o agiota como um bandido que se homizia num quartinho pequeno, mal iluminado, escondido no fundo de uma construção um tanto precária, cercado de capangas armados, mal encarados.

O agiota para quem Sergio Dayan deve uma fortuna tão incalculável que nenhum valor é falado, ao longo de todo o filme, é o CEO de uma respeitável empresa que leva seu próprio nome, algo como Hugo Brenner Consultoria Financeira e Cia. Ltda. Vemos Sergio ser conduzido até a grande sala dele por uma mulher de vestido claro e botas de couro altas e claras.

Hugo Brenner (o papel de Gabriel Goity, na foto um pouco mais abaixo) tem uma empresa que ocupa amplas salas, usa ternos que parecem de um diretor de grande banco – mas fala e age como o agiota da minha imaginação. Exige que Sergio pague tudo, até a segunda-feira seguinte – e faz ameaças nada veladas, tipo se não pagar eu sei onde sua mulher trabalha, onde seus filhos estudam.

De repente, uma gigantesca, absurda explosão

Sergio recebe do amigo chegado uma parte do pagamento pela casa de campo; bota o dinheiro em uma pochete, e, antes de ir para sua indústria, vai até o Once, o bairro onde ficam a joalheria onde ele havia comprado a correntinha de ouro para a filha, que tinha quebrado e ele mandara consertar, e também o escritório da Hugo Brenner Consultoria Financeira.

Estamos com cerca de 25 minutos do filme que dura 105.

Os detalhes, os detalhes. Sergio pega na joalheria a correntinha de ouro já consertada. A câmara focaliza o lugar da calçada da rua em que estivera sentado o sem-teto carinhando um cachorro – nem o homem nem o cão estão lá naquele momento.

A câmara mostra, numa calçada cheia de gente, uma mulher de saia e botas claras que o espectador já havia visto antes. Sergio vai na mesma direção da mulher.

Está indo – o espectador percebe claramente – pagar ao agiota o dinheiro que havia recebido, como demonstração de boa vontade.

As tomadas são curtas, a montagem é bem rápida.

Uma explosão violentíssima.

Corta, fade out – mas o fade in, a nova tomada após o corte, demora a vir. A tela fica toda preta durante uns bons segundos.

Quando enfim surge a nova tomada, o noticiário extraordinário, breaking news, da televisão diante de Estela, em seu consultório de dentista, está informando:

– “… É uma cena apocalíptica. A Rua Pasteur parece uma zona de guerra. O prédio da associação israelita AMIA foi reduzido a escombros. As lojas e fachadas ficaram completamente destruídas. A comoção é grande.”

Estela liga para Gladys, a secretária do marido. Gladys informa que Sergio não havia chegado ainda à fábrica. E conta mais: ele deve ter ido ao escritório do agiota, e o escritório do agiota fica lá, no Once, perto da AMIA, a Associación Mutual Israelita Argentina,

No prédio público em que são atendidos os parentes das vítimas do atentado terrorista contra a AMIA, o acaso faz ficarem próximos Estela e o agiota Hugo Brenner – a mulher da saia e botas claras era irmã dele, e morreu com a explosão

O filme está com 33 minutos quando um funcionário público apresenta a Estela a pasta do marido. Dentro da pasta ela encontra a correntinha de ouro de Florencia, já consertada.

É necessário registrar: o diretor Sebastián Borensztein e seu montador Alejandro Carrillo Penovi utilizam esse recurso da tela negra durante alguns segundos mais de uma vez ao longo do filme, sempre em momentos em que há um corte profundo na narrativa. É um belo uso do fade in/fade out.

Uma beleza de mistura de ficção com fato real

Tenho imensa admiração pelos criadores que sabem, com maestria, misturar sua ficção com eventos e personalidades reais, usar os fatos históricos como parte de suas tramas fictícias – essa arte em que o conde Liev Tolstói foi insuperável, transformando o ditador Napoleão Bonaparte e o general russo que o derrotou, Mikhail Illarionovich Golenishchev-Kutuzov, em personagens de seu Guerra e Paz.

Claro que não estou querendo comparar Guerra e Paz com Descansar en Paz – mas é inegável que os autores souberam maravilhosamente bem incrustar na história desse pobre Sergio Dayan o atentado terrorista à sede da AMIA – um dos maiores atentados terroristas a instituições judaicas desde a criação de Israel, e um dos maiores, se não o maior, atentado terrorista realizado na Argentina. O ato terrorista matou 85 pessoas e deixou cerca de 300 feridos. Depois de 12 anos de investigação, foi feita acusação formal ao governo do Irã e ao grupo terrorista financiado pelo regime dos aiatolás Hezbollah como responsáveis pela chacina.

Descansar en Paz não tem créditos iniciais – antes do início da ação há apenas o logotipo das duas companhias produtoras, Kenya Films e Benteveo. Assim, vi o filme – que sabia ser do diretor Sebastián Borensztein – sem ter nenhuma idéia sobre a autoria do argumento, a trama, a história, o soggetto.

Pois bem. O roteiro de Sebastián Borensztein & Marcos Osorio Vidal         – informam os créditos finais – se baseia no romance de Martin Baintrub.

O título original do romance, lançado em 2018, me surpreendeu: Descansar en paz: ¿nunca soñaste con dejar todo y empezar de nuevo?

E a partir daqui começa a haver spoiler. É forçoso avisar: se o eventual leitor chegou até aqui sem ter ainda visto o filme, deve parar de ler. Vem aí spoiler.

Atenção: spoiler! Quem não viu o filme deve parar de ler

O título do livro tem um jeito suave. Mais que suave – alegre, brejeiro. Uma coisa que parece isto aqui:

Ô, meu, que legal que eu tava lá na hora do ataque terrorista e pude então fingir que tinha morrido e assim escapar e começar de novo sem o peso de estar devendo aquela quantidade absurda de dinheiro. Que alegria! Vivam os aiatolás! Viva a ditadura teocrática do Irã!

Claro que exagerei no parágrafo acima, mas diabo, não é um tanto isso que o complemento do título sugere? “¿Nunca soñaste con dejar todo y empezar de nuevo?”

Não é possível que o livro seja nesse tom!

Em uma pesquisa confesso que bem rápida, não encontrei uma boa sinopse do livro – mas não importa tanto.

Importa é que, no filme, não há nada suave – muito menos alegre, brejeiro. É tudo pauleira, angústia, desesperança na nova vida desse pobre Sergio Dayan. Até surgirá algo bom – a bela, sensível, compreensiva Ilu (o papel da paraguaia Lali Gonzalez, na foto um pouco mais abaixo). Mas Sergio está mergulhado em tanta angústia que não enxergar nada positivo.

O primeiro filme do realizador sobre sua comunidade

Sebastián Borensztein nasceu eu Buenos Aires, em 1963. Começou a carreira de diretor na TV em 1997: dirigiu quatro minisséries. Seu primeiro longa foi La Suerte está Echada, de 2005, seguido por Sin Memoria, de 2010, feito no México. Um Conto Chinês, o terceiro, o estabeleceu como um dos nomes mais importantes do cinema argentino. Não é, no entanto, do tipo prolífico, à lá Woody Allen, de fazer um filme a cada ano. Bem ao contrário. Este Descansar en Paz é seu sexto longa-metragem, após Kóblic e A Odisséia dos Tontos.

E foi o primeiro em que o realizador focalizou a comunidade judaica de Buenos Aires – á qual ele pertence. Nisso, ele é bem diferente de seu colega Daniel Burman, que aborda em vários de seus filmes os hábitos dos judeus argentinos, como O Abraço Partido (2004). As Leis de Família/Derecho de Família (2006), O Décimo Homem/El Rey Del Once (2016). (Olha o bairro Once aí de novo…)

É bom lembrar que a Argentina tem a maior comunidade judaica da América Latina, a sexta do mundo fora de Israel, com cerca de 230 mil pessoas.

O pavoroso atentado terrorista à AMIA foi o tema de um filme de episódios, dirigidos por dez diferentes realizadores, Memória de Quem Fica, no original 18-j, a data do ataque.

Segundo assinala a Wikipedia em espanhol, “la película recibió reseñas favorables por parte de los críticos”. Eis um trecho da boa crítica assinada por Natalia Trzenko no jornal La Nacion:

“Com uma encenação que reconstrói a época com prodigioso detalhe e que consegue construir a trama com notável paciência e efetividade, Descansar en Paz se destaca pelas interpretações do elenco encabeçado por Joaquin Furriel e Griselda Siciliani, além das contribuições de Gabriel Goity e Lali González, um conjunto que contribui com sensibilidade e matizes ao roteiro, que por momentos se apóia demasiadamente no melodrama e em resoluções de traço grosso.

“O retrato que Furriel faz do homem à beira do abismo sempre acompanhado por um ar de desespero e arrependimento se transmite em cada um de seus gestos, no sofrimento silenciado e em suas ocasionais explosões incontroláveis. Siciliani, por sua parte, tem a complicada tarefa de interpretar sua Estela, o personagem mais passivo do relato e que, ao mesmo tempo, lida com uma grande carga de emoções, sem que o peso da tragédia consiga transbordar.”

Descansar en Paz é um belo filme. Mas não é nada, nada, nada indicado a quem busca diversão.

Anotação em abril de 2024

Descanse em Paz/Descansar en Paz

De Sebastián Borensztein, Argentina, 2024

Com Joaquín Furriel (Sergio Dayan),

Griselda Siciliani (Estela Dayan), Gabriel Goity (Hugo Brenner, o agiota), Lali Gonzalez (Ilu, a paraguaia), Raúl Daumas (El Gordo, o comerciante marido de Ilu), Alicia Guerra (Beatriz, Bea, a babá dos filhos de Sergio e Estela), Macarena Suárez (Florencia Dayán), Zoe Kunischi Florencia adolescente), Juan Cottet (Matías Dayán), Nicolás Jurberg (Matías criança), Ernesto Rowe (Diego), Alberto de Carabassa (Ariel, o noivo-marido de Florencia), Luciano Borges (Raúl), Ernesto Rowe (Diego)

Roteiro Sebastián Borensztein & Marcos Osorio Vidal  

Baseado no romance “Descansar en paz: ¿nunca soñaste con dejar todo y empezar de nuevo?, de Martin Baintrub        

Fotografia Rodrigo Pulpeiro

Música Federico Jusid

Montagem Alejandro Carrillo Penovi

Direção de arte Daniel Gimelberg

Figurinos Mónica Toschi

Produção Chino Darín, Ricardo Darín, Matías Levinson, Federico Posternak, Marcelo Susevich, Kenya Films, Benteveo.

Cor, 105 min (1h45)

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