(Disponível na Netflix em 3/2022.)
Um novo partido político de direita, conservador, vai apresentar, em um ginásio de esportes lotado, seus candidatos a presidente e a vice da Argentina. O candidato à Presidência é um conhecido empresário; o vice é o mais famoso pastor evangélico do país. A plataforma é aquela coisa de defesa da tradição, família, propriedade. A multidão delira. Um homem burla a segurança e dá uma facada mortal no empresário.
Isso acontece antes da metade do primeiro dos oito episódios de El Reino, no Brasil Vosso Reino, uma criação do grande realizador Marcelo Piñeyro e da escritora Claudia Piñeiro. O tema não poderia ser mais atual: a mistura de política com pastores evangélicos, a imposição de uma pauta reacionária, retrógrada, um atentado a faca que ajuda a eleger um sujeito que se diz diferente da velha política.
A trama criada pelo experiente diretor e roteirista e pela escritora de sucesso é alucinantemente brilhante, uma coisa fora de jeito. E a realização, a forma com que Piñeyro encenou – ele também dirigiu seis dos oito episódios – é de babar. Desde essa abertura, num ginásio de esporte lotado, com milhares de figurantes e uma movimentação de câmara e uma montagem de fazer cinéfilo aplaudir de pé como na ópera.
É uma série realizada com um talento, uma competência que não fica nada, mas nada, nada a dever às mais desvairadamente brilhantes sequências de Brian De Palma em Os Intocáveis (1987), Olhos de Serpente (1998), Femme Fatale (2002). E uso o exemplo de De Palma porque ele, em especial nos três filmes citados, fez algumas das mais extasiantes sequências de toda a História do cinema.
É impressionante. Deslumbrante, fantástico. De babar.
A série foi lançada pela Netflix em agosto de 2021, e, neste mês em que a vimos, março de 2022, fala-se que deverá haver uma segunda temporada. A rigor, não precisava. Tudo já foi dito nos oito episódios.
Mas talvez os realizadores queiram lançar algum alento, alguma esperança para os espectadores que viram os oito episódios. A verdade é que a gente sai do oitavo e último com um gosto terrível de que não tem jeito, não tem saída, não tem salvação. Como diz a canção de Leonard Cohen, everybody knows that the good guys lost.
Os mocinhos perderam. O mundo é dos bandidos.
O mundo, ou pelo menos a Argentina, esse país tão perto e tão longe de nós.
O assassino diz que seu alvo era o pastor
O candidato à Presidência, o empresário Armando Badajoz, morre logo depois da facada, ali mesmo, no ginásio de esportes. (Ele voltará a aparecer em vários flashbacks ao longo dos episódios; é interpretado por Daniel Kuznieck, à direita na foto acima.) O assassino é dominado logo após o ataque, e levado preso. Chama-se Remigio Cárdenas (o papel do paraguaio Nico García Hume), e trabalhava no lar para crianças órfãs e/ou abandonadas mantido pela igreja do pastor candidato a vice, Emilio Vázquez Pena (o papel de Diego Peretti, à esquerda na foto acima).
Na sequência muitíssimo bem realizada que mostra Remigio se aproximando do estrado em que estão o empresário Armando e o pastor Emílio, há um detalhe que o espectador mais atento seguramente vai notar. Enquanto os dois candidatos caminham pelo estrado no meio da multidão fanática, o pastor retira de seus ombros uma grande manta que havia recebido momentos antes, ainda nos camarins, da sua mulher, Elena (o papel da excelente Mercedes Morán, na foto abaixo), e a coloca sobre os ombros de Armando Badajoz. Na manta branca, há, em letras gigantescas, as palavras “Cristo salva”.
Pouquíssimo tempo depois do ataque, já aparece no ginásio a promotora de Justiça que acompanhará as investigações do caso. É uma mulher jovem, com todo o jeito de profissional séria, trabalhadora, aplicada, Roberta Candia (Nancy Dupláa, na foto abaixo) – e ela será uma personagem importante da série.
Quando a dra. Roberta tenta interrogar Remígio, o assassino se recusa a cooperar, a explicar os motivos de seu crime, e diz que não quer saber de advogado. Mas, dias mais tarde, quando o advogado nomeado pelo Estado para defendê-lo vai conversar com ele, Remigio se enfurece ao saber que havia matado o empresário Armando Badajoz. E diz aos berros que sua intenção era matar o pastor Emilio.
O detalhe do manto com a inscrição “Cristo Salva”. Enquanto se aproximava do estrado onde estavam os dois candidatos, o manto estava cobrindo os ombros e as costas do pastor. Instantes antes de Remigio saltar sobre o estrado e atacar pelas costas o homem com o manto, a peça havia sido passada do pastor para o empresário.
Para a promotora Roberta e seu auxiliar Ramiro (Santiago Korovsky), a investigação tem que recomeçar do zero. Se a intenção era matar o pastor, e não o empresário, muda tudo.
Para Elena, a mulher do pastor, a revelação parece ouro puro. Ora: o assassino queria matar o pastor, mas, no último momento, Deus fez com que o assassino atacasse o candidato a presidente. Ou seja: Deus salvou o pastor Emílio. É a oportunidade perfeita para a Igreja do marido chamar mais e mais fiéis, mais e mais doadores de dízimo.
Ao longo de todos os episódios, o espectador vai vendo que Elena é espertíssima, inteligente, ágil, rápida, e absolutamente ambiciosa, louca por mais e mais dinheiro. Elena, na verdade, é a alma da tal Igreja do Reino da Luz. Foi ela que ensinou tudo ao marido. Emílio aprendeu, e passou a dominar o ofício de fazer belos e longos sermões capazes de hipnotizar multidões de pessoas ávidas por algo que dê sentido às suas vidas. Ele é bom de serviço – mas quem o fez foi Elena.
Elena fez o pastor – e fez a igreja virar uma fábrica de dinheiro. A série mostra que ali há muito, muito, muito dinheiro ilegal; não se preocupa muito em mostrar que tipo de ilegalidades foram cometidas – não é necessário.
Várias subtramas interessantes, envolventes
Boas histórias costumam ter um amplo leque de personagens, e algumas subtramas. A história criada por Marcelo Piñeyro e Claudia Piñeiro tem, sim, um amplo leque de personagens importantes, e diversas subtramas, ligadas por algum detalhe à história básica.
O especial, aqui, me pareceu, é que as subtramas de El Reino são todas profundamente amarradas à principal. É tudo como se fosse uma trama só, galhos de uma mesma árvore.
A história de Julio Clemens, o papel de Chino Darín (na foto abaixo), por exemplo, só será contada ao espectador no terceiro episódio, em longos flashbacks. Nós o conhecemos de cara, no primeiro episódio: enquanto se prepara nos camarins para entrar juntamente com Armando Badajoz no ginásio de esportes lotados de admiradores, o pastor Emilio pergunta insistentemente onde está Julio Clemens. E fica claro de imediato que Julio é seu principal assessor para os assuntos de política. Sobre política, Julio é a pessoa em que o pastor confia.
Veremos também rapidamente que Elena, a esposa, não confia nesse Julio. Não simpatiza com ele, não vai com a cara dele.
A forma com que vive a família do pastor e de sua mulher Elena não é nada convencional, tradicional. Há uma ligação muito forte entre o casal e seus três filhos e a Igreja do Reino da Luz. A igreja, na verdade, é um empreendimento familiar, e igreja e família se misturam. Moram todos juntos, pai, mãe, os filhos, seus auxiliares mais próximos, no mesmo imóvel que abriga o templo que sustenta a todos. Julio mora ali – e para o quarto dele escapa a filha mais nova do pastor, Ana (Vera Spinetta). Na verdade, veremos lá pelas tantas que Ana está grávida de três meses de um filho de Julio quando acontece o atentado no ginásio onde se realizaria o grande evento da campanha presidencial.
A história de vida de Julio é fantástica, incrível, coisa de novela – conforme o espectador verá no terceiro dos oito episódios.
É igualmente fantástica, incrível, coisa de novela a vida de Rubén Osorio, outro personagem fundamental da série. O espectador também vê Rubén Osorio (o papel de Joaquín Furriel) já bem no início: ele é o assessor direto do empresário Armando Badajoz – está para o candidato a presidente assim como Julio Clemens está para o candidato a vice.
À medida em que a série vai avançando, o espectador vai percebendo que esse Osorio é poderosíssimo, é assim a eminência parda, o cara que controla tudo – mas apenas no sexto episódio ficamos sabendo quem exatamente ele é, qual é sua origem e de onde vem tanto poder que tem.
Tadeo (Peter Lanzani) é outro personagem importante – e interessante. É amigo e companheiro de Remígio, o homem que pretendia matar o pastor Emilio mas acaba matando o empresário Armando Badajoz. Os dois trabalham juntos da casa que acolhe meninos desamparados. E os dois parecem – e são – absolutamente dedicados ao trabalho de cuidar dos garotos. Só no episódio três vamos ver em que circunstâncias Tadeu e Remígio ficaram conhecendo Julio.
E é ainda mais tarde, já nos três últimos dos oito episódios da série, que ficaremos conhecendo bem dois garotos que se destacam demais entre todos os outros acolhidos ali na casa da Igreja do Reino da Luz, Brian (Lautaro Romero) e, em especial, e bota especial nisso, Jonathan (Uriel Nicolás Díaz).
E ainda há uma figura estranha, misteriosa, que só nos episódios finais saberemos que se chama Celeste (o papel de Sofía Gala Castiglione).
Vamos vendo Celeste em rápidas tomadas ao longo de todos os episódios. Ela trabalha num grande escritório em que diversos funcionários ouvem conversas telefônicas e as transcrevem em texto. Celeste, especificamente, ouve conversas telefônicas dos familiares do pastor.
Diabo, mas o que é aquilo? Um departamento do governo argentino, que grampeia um monte de gente? Não, não; fica claro que não tem nada a ver com o governo – auxiliares da promotora Roberta sugerem a ela que seria importante grampear os telefones de algumas das pessoas próximas ao pastor, mas ela é claramente contra qualquer medida ilegal.
Mas então que organização é aquela que tem todo esse esquema organizado de escuta ilegal?
Só mais para o fim da série o espectador ficará sabendo.
Assim, a rigor, a rigor, seria spoiler relatar aqui a história de Julio Clemens, só mostrada no episódio três, a história de Ruben Osorio, só mostrada no episódio seis, mais as histórias de Tadeu e Remigio e dos meninos Brian e Jonathan – e portanto não vou relatar…
Uma escritora e um realizador de sucesso
Não conhecia Claudia Piñeiro, e, quando vi que ela assina juntamente com o diretor Marcelo Piñeyro a autoria da história e do roteiro deste Vosso Reino, imaginei que poderiam ser parentes, ou talvez marido e mulher. Não são – é apenas uma coincidência que seus sobrenomes sejam parecidos. Parecidos, e não iguais – basta reparar a grafia.
Escritora, dramaturga, roteirista, Claudia, nascida em Buzarco, província de Buenos Aires, em 1960, é autora de 13 romances, publicados entre 1991 e 2020. Escreveu ainda dois livros de contos e seis peças de teatro. Pelo menos cinco filmes e três outras séries de TV já foram feitos com base em suas obras antes que ela escrevesse juntamente com Marcelo Piñeyro este El Reino.
A proximidade da escritora com o realizador de sobrenome parecido não é de agora. Em 2009, Marcelo dirigiu Las Viudas de los Jueves, um drama policial baseado no livro homônimo de Claudia, lançado em 2005.
Marcelo Piñeyro me chocou pela primeira vez com seu talento com Kamchatka, de 2002. O belo filme se passa na década de 1970, logo após o golpe militar: uma família – pai, mãe, dois filhos – deixa Buenos Aires, para evitar a iminente prisão, e se refugia num sítio de conhecidos, no campo. Com ótimas interpretações de todos os atores, e uma imensa sensibilidade, o filme retrata os dias de exílio da família. O casal central é interpretado por dois grandes, maravilhosos atores – Ricardo Darín e Cecília Roth.
Depois veio El Método, de 2005, que no Brasil ganhou o título de O Que Você Faria?, que Piñeyro realizou na Espanha. Me permito transcrever os primeiros parágrafos do que escrevi sobre ele:
“Um dos mais violentos panfletos que o cinema já fez contra o capitalismo, especialmente contra o capitalismo selvagem que se abateu sobre o mundo após o fim do comunismo, com as fusões e aquisições entre os grandes conglomerados e o aumento do desemprego.
“Uma obra-prima, que faz lembrar, pela ambientação sufocante entre quatro paredes, outro panfleto, o Doze Homens e uma Sentença/12 Angry Men, de Sidney Lumet, de 1957. E, pela transformação das pessoas em animais selvagens, dispostos a tudo, a qualquer coisa, por mais abjeta que seja, para garantir a sobrevivência, lembra o filme-paulada de Costa-Gavras, O Corte/Le Couperet, de 2005.
“O texto é todo brilhante, e o diretor Marcelo Piñeyro faz tudo funcionar com perfeição, no ambiente claustrofóbico, de tirar o fôlego do espectador, de uma sala fechada de uma grande corporação em Madri onde um grupo de cinco homens e duas mulheres disputam uma única vaga de executivo, no dia exato em que a cidade é tomada por protestos antiglobalização por ocasião de uma reunião do FMI e do Banco Mundial.”
Sempre um tom anticapitalista, um víés socialista
Sim, tem isso. As obras de Marcelo Piñeyro sempre têm um tom anticapitalismo, um viés esquerdista, socialista. Não é de estranhar, portanto, que aqui neste El Reino ele mostre que a CIA americana tem longos braços e mexe pauzinhos na política dos países latino-americanos.
Um batalhador pelo socialismo. No início da série, bem no comecinho do primeiro episódio, um letreiro traz uma frase de Antonio Grasmci, o grande teórico marxista italiano:
“O velho mundo morre. O novo demora a aparecer. E nesse claro-escuro surgem os monstros.”
No jornal El País, em 14 de setembro de 2021, um jornalista chamado Juan Carlos Galindo escreveu: “A frase de Antonio Gramsci que abre Vosso reino é, mais do que um resumo de seu conteúdo, uma declaração de intenções de seus criadores. A série argentina da Netflix se tornou, poucas semanas depois da estreia, um sucesso na plataforma em todo o mundo de língua espanhola. Corrupção material e espiritual, a religião como arma de poder, o preço da ambição política e um relato preciso de como funcionam as entranhas do sistema se juntam neste thriller de oito episódios criado por Marcelo Piñeyro e Claudia Piñeiro.”
Ao final do seu texto, Galindo conta que, quando conversou por telefone com os dois autores, eles estavam “em plena elaboração da segunda temporada”. E conclui assim: “A primeira termina num ponto alto, como todo bom thriller, mas todos os personagens têm futuro. Além do mais, diz Piñeiro, ‘há muitos personagens secundários que desenvolvemos na escrita prévia ao roteiro e que detalhamos muito mais do que demonstramos nesta temporada e que talvez na segunda necessitem ter maior protagonismo’.
Anotação em março de 2022
Vosso Reino/El Reino
De Marcelo Piñeyro e Claudia Piñeiro, criadores, roteiristas, Argentina, 2021
Direção Marcelo Piñeyro e Miguel Cohan
Com Chino Darín (Julio Clemens), Nancy Dupláa (promotora Roberta Candia), Joaquín Furriel (Rubén Osorio), Mercedes Morán (Elena, a mulher do pastor), Diego Peretti (pastor Emilio Vázquez Pena), Peter Lanzani (Tadeo Vázquez),Nico García Hume (Remigio Cárdenas), Vera Spinetta (Ana Vázquez Pena, a filha caçula do pastor), Patricio Aramburu (Pablo Vázquez Pena, o filho mais velho do pastor), Victoria Almeida (Magdalena Vázquez Pena, a segunda filha do pastor), Alfonso Tort (Oscar, o marido de Madalena), Santiago Korovsky (Ramiro, o auxiliar da promotora), Sofía Gala Castiglione (Celeste, a funcionária dos grampos telefônicos), Daniel Kuzniecka (Armando Badajoz, o candidato a presidente), Uriel Nicolás Díaz (Jonathan, o garoto Pescado, o Peixe), Lautaro Romero (o garoto Brian Aguirre), Alexia Moyano (Linda), Victoria Bernardez (jornalista), Néstor Guzzini (comissário Lamas), Daniel Fanego (Sergio Zambrano Paz, o pai de Julio), Ana Celentano (Leticia Zambrano Paz, a mãe de Julio), Antonia Bengoechea (Delfina Zambrano Paz, a irmã de Julio), Diego Gentile (Mario, o marido da procuradora Roberta)
Argumento e roteiro Marcelo Piñeyro e Claudia Piñeiro
Fotografia Christian Cottet
Música Nicolás Cotton
Montagem Alejandro Brodersohn, Rosario Suárez
Direção de arte Daniel Gimelberg
Figurinos Julio Suárez
Produção K&S Films. Distribuição Netflix.
Cor, cerca de 360 min (6h)
***1/2
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