Viúvas Sempre às Quintas / Las Viudas de los Jueves

Nota: ★★★☆

(Disponível na Netflix em 7/2022.)

Ainda não se passaram sequer 5 dos 122 minutos do filme quando o espectador vê que há três homens mortos dentro da piscina da casa da primeira personagem que aparece na tela, Teresa (o papel de Ana Celentano). O que significa que teremos na história, portanto, três viúvas – mas não vem daí o título do filme, Las Viudas de los Jueves, que a Netflix exibe no Brasil como Viúvas Sempre às Quintas.

“Las Viudas de los Jueves”, as viúvas das quinta-feiras, era a forma brincalhona com que Teresa e suas amigas mais próximas costumavam se chamar – porque todas as quintas-feiras seus maridos as abandonavam para ficarem juntos, só homens, clube do Bolinha, bebendo muito, fumando charutos e jogando cartas.

E então elas, Las Viudas de los Jueves, se vingavam indo jantar em algum belo, caro, chique restaurante, só elas, clube da Luluzinha.

O filme abre exatamente numa quinta-feira, tarde da noite – na verdade, já na madrugada da sexta, dia 17 de dezembro de 2001, conforme um letreiro informa ao espectador.

Las Viudas de los Jueves é, no fundo, um filme político, um comentário sobre a sociedade argentina, uma dura, virulenta crítica à classe alta; a rigor, a rigor, é um panfleto contra o sistema capitalista – mas vem na forma de filme de mistério, com um tanto de suspense.

Marcelo Piñeyro – realizador experiente, calejado, autor de belas obras como Kamchatka (2002), O Que Você Faria?/El Método (2005) e Vosso Reino (2021) – abre seu filme de forma intrigante, um tanto misteriosa.

A primeira imagem que vemos é o rosto de uma mulher bela, elegante, aí na faixa dos 40 anos. Teresa está sentada em seu carro, sozinha, e o carro está parado, seguramente no acostamento de uma estrada – passam por ela faróis de outros carros. Ela acende um cigarro. Não tem uma expressão de pavor, nem de profunda tristeza – o espectador simplesmente não entende por que ela está parada ali à beira do caminho, como na música de Erasmo Carlos.

Teresa termina o cigarro, olha o relógio, liga o carro. Está chegando à portaria do condomínio onde vive quando vemos o letreiro: “Madrugada de 17 de dezembro de 2001”.

Uma tomada mostra o carro de Teresa parando junto da portaria – e, à direita na tela, há uma placa com as palavras bem visíveis: “Prohibido el acceso a personas ajenas al country”. Diacho: a placa do condomínio Altos de la Cascada trata o lugar como “country”, como se fosse um “country club”! Os muito ricos da Argentina – já nos diz de cara o filme de Marcelo Piñeyro – chamam seu condomínio de “country”, até para avisar que pessoas alheias não podem entrar! Mas que baita frescura!

Quatro casais de amigos e vizinhos

Ao porteiro, Teresa pergunta se Carla Masotta já chegou. Não, ainda não, informa o porteiro.

Dirigindo seu belo SUV dentro do amplo, milionário condomínio, Teresa liga para Carla; como é a secretária que atende, ela deixa o recado: – “Só queria saber como você estava. Como nos perdemos… Bem, me ligue. Não queria que as coisas ficassem assim. A gente se fala, tá? Um beijo.”

Antes de chegar em casa, Teresa cruza com um carro que vem na direção contrária à sua. Vemos em tomada rapidíssima que naquele carro está um casal. Teresa os reconhece – todos ali se conhecem. O espectador, é claro, ainda não sabe quem são.

Ela chega em casa – uma casa imensa, de rico muito rico -, anda pela sala, chama Tano, mas ninguém responde. Sai para uma ampla varanda – não há ninguém, mas estão visíveis um balde de gelo, garrafas de champagne, cinzeiros, cálices. Dentro de um cálice, ela encontra uma aliança, e a recolhe deixando escapar uma exclamação: – “Homens…”

Encaminha-se para dentro de casa. A câmara a mostra do outro lado da piscina da casa, e suavemente vai se virando para baixo, para mostrar a piscina – e vemos que ali há um corpo de homem. E depois vemos outro, e outro.

Três homens mortos na bela piscina da gigantesca, belíssima casa do casal Teresa e Tano.

A câmara mergulha na piscina enquanto rolam os créditos iniciais.

Ao fim dos créditos, há um corte esperto, inteligente, e na tomada seguinte crianças estão pulando naquela mesma piscina; é de dia, está havendo uma grande festa oferecida por Tano e Teresa, e um letreiro informa: “Alguns meses antes”.

Nos créditos, antes do título do filme, enquanto a câmara passeia sob a água, entre os corpos dos mortos, rolam os nomes de oito atores, em ordem alfabética do sobrenome, desde Ernesto Alterio até Juana Viale. Quatro mulheres, quatro homens – quatro casais. Quatro casais de moradores daquele condomínio fechado, de luxo – todos eles muito amigos. Naquela noite de quinta, madrugada de sexta em que a ação começa, os quatro homens haviam ficado juntos, como faziam todas as semanas, enquanto as mulheres – as viúvas das quintas-feiras – saíam para jantar fora.

A festa que o casal Tano e Teresa dão, e que vemos logo após os créditos iniciais, é uma perfeita ocasião para ficarmos conhecendo aquelas pessoas – os oito protagonistas da história.

A partir daí, o filme vai alternar acontecimentos antes daquela quinta-feira fatídica com eventos após a descoberta dos três corpos na piscina.

O estilo de Marcelo Piñeyro é sóbrio, sem frescuras visuais, invencionices, fogos de artifício – além daquela coisa de a câmara ficar nadando entre os mortos na piscina, durante os créditos iniciais. Tirando isso, tudo é absolutamente sóbrio, em termos visuais.

O único truque do filme não é visual – é exatamente a coisa de ir e vir no tempo. O espectador percebe, é claro, quando há os flashbacks, a volta para os dias anteriores à morte dos três homens – mas o roteiro (de autoria do próprio realizador e de Marcelo Figueras) faz questão de misturar os tempos, as voltas ao passado e os dias posteriores à tragédia, de forma tal que às vezes demoramos alguns segundos para perceber que houve um corte no tempo.

E os cortes no tempo são muitos, e frequentes, e duram o tempo todo.

O filme nos leva a crer que não foi acidente

Logo no início, ali pelos primeiros 10, 15 minutos, o filme mostra para o espectador que a morte dos três homens foi considerada acidental: por algum motivo, o aparelho de som e uma luminária caíram na piscina, houve uma descarga elétrica e a morte foi imediata. Em um diálogo é dito que peritos examinaram o local e constataram que foi acidente.

Com talento, competência, no entanto, o filme vai deixando no espectador a dúvida: mas será mesmo? Não teria sido um crime bem pensado, bem planejado, bem executado, para que parecesse um acidente?

Em algum momento, o espectador terá certeza de que não foi acidental coisa nenhuma. Mary e eu tivemos certeza disso desde sempre. Seguramente a reação de todos os espectadores será mesmo essa. Há talento e competência dos realizadores para nos levar a isso…

Vou fazer um rápido registro sobre os quatro casais; espero conseguir ser sucinto.

Tano (o papel de Pablo Echarri) e Teresa nos são apresentados como a realeza daquele condomínio de ricos. São muito ricos como todos ali, mas talvez sejam um pouco mais ricos do que os outros – Tano é o CEO de uma grande multinacional –, e são belos, elegantes, descolados, e têm um casal de filhos ainda crianças igualmente lindos.

Mas eventualmente Tano perderá o emprego dos sonhos, e passará a ganhar dinheiro com algo meio sujo, imoral, que envolve ficar com o dinheiro do seguro de vida vendido por ele a idosos doentes.

Martín (o papel de Ernesto Alterio) é advogado de uma grande corporação, com altíssimo salário. Na verdade, foi; a empresa enfrentou problemas, teve que fazer cortes, Martín perdeu o emprego. Mas ainda não teve coragem de contar isso para a mulher, Lala (Gloria Carrá), uma dondoca um tanto chata, um tanto insatisfeita, insaciável.

O casal tem uma filha absolutamente aborrescente, chegada a uma droga e a vender droga para outros adolescentes. Chama-se Trina (o papel de Vera Spinetta), e enfrentará um duro revés bem depois da metade da narrativa.

Ronnie e Mavy se dão bastante bem, apesar dos problemas que enfrentam. (São os papéis de Leonardo Sbaraglia e Gabriela Toscano.) Ronnie está desempregado, e quem sustenta a família é Mavy, que é corretora imobiliária. Juan, o filho adolescente do casal (Camilo Cuello Vitale), é problemático, solitário, às vezes parece autista. Apesar de todas as diferenças entre eles, Juan se dá bem com Trina, a filha de Martín e Lala.

Esses três casais são de pessoas aí na faixa dos 40 anos para cima. O quarto casal é mais jovem – Gustavo e Carla têm cerca de uns 30 e poucos, e chegaram não faz muito tempo ao condomínio. (São interpretados por Juan Diego Botto e Juana Viale,)

Não fica claro de onde vem o dinheiro de Gustavo, mas o que se mostra é que ele tem muito dinheiro. Veremos que é um sujeito tenso, dado a explosões de violência.

O diretor Piñeyro e a autora Piñeiro têm bela parceria

O espectador mais distraído poderá não perceber, mas faz todo sentido o filme informar a data da ação logo na abertura. Foi no final de 2001, poucos dias antes do 17 de dezembro, que o governo do presidente Eduardo Duhalde e do ministro da Economia Domingo Cavallo tomou uma série de medidas para tentar enfrentar a gravíssima crise econômica em que a Argentina estava mergulhada. O pacote, que ficou conhecido como corralito, tinha alguma semelhança com o famigerado Plano Collor: o governo na prática confiscou os depósitos bancários e os investimentos da população, permitindo que cada pessoa retirasse apenas uma pequena quantia por semana.

O corralito já foi assunto de pelo menos outro bom filme argentino – A Odisséia dos Tontos (2019), de Sebastián Borensztein. Deve seguramente ter havido outros.

As dificuldades provocadas pelo corralito – mesmo entre os ricos – são tema importante na trama deste Las Viudas de los Jueves. Os personagens comentam sobre o confisco do dinheiro depositado nos bancos; vêem na TV os noticiários mostrando os grandes protestos nas ruas de Buenos Aires contra as medidas do pacote econômico. Um guarda da portaria aconselha a família de Ronnie e Mavy a não sair do condomínio fechado e evitar ir em direção à capital por causa da violência dos protestos.

Quando o filme foi lançado em 2009, apenas oito anos após os acontecimentos de dezembro de 2001, seguramente a loucura que haviam sido aqueles dias ainda estava bem fresca na memória dos argentinos. Imagine-se em 2005, quando o livro no qual o filme se baseia foi lançado.

Las Viudas de los Jueves foi o segundo romance de Claudia Piñeiro, escritora nascida em 1960 em cidade da Grande Buenos Aires e formada em Ciências Econômicas pela Faculdade de Buenos Aires. E foi sucesso de público e crítica; venceu o Premio Clarín de Novela de 2005, e recebeu de José Saramago esta síntese: “Uma análise implacável de um microcosmo social em acelerado processo de decadência”.

Em 2021 o diretor Marcelo Piñeyro voltaria a dirigir obra escrita por Claudia, a série de oito episódios Vosso Reino. Isso e o sobrenome dos dois poderiam levar a pensar em um possível parentesco entre os dois. Não, não há proximidade entre o diretor e roteirista Marcelo e a escritora e roteirista Claudia – a não ser a afinidade artística e seguramente a política. Até porque os sobrenomes, embora parecidos, se escrevem de formas diferentes – Marcelo é Piñeyro e Claudia é Piñeiro.

A afinidade entre os dois artistas, no entanto, parece bem clara, bem nítida. Suas obras têm um óbvio viés político e social – e é uma visão de mundo progressista, anticonservador, “de esquerda”.

Marcelo Piñeyro primeiro me encantou com Kamchatka, de 2002, uma beleza de filme doce e amargo, sensível, que mostra a vida na Argentina da ditadura militar dos anos 70 através dos olhos de um garoto de 10 anos de idade, filho de um advogado e uma cientista (interpretados por Ricardo Darín e Cecília Roth) que são obrigados a sair de Buenos Aires e se esconder em uma casa no interiorzão do país.

Depois veio El Método, que ele filmou na Espanha – um espanto, uma beleza, um dos mais contundentes, virulentos ataques à desumanização e à concorrência entre as pessoas na sociedade capitalista que já vi no cinema.

A série Vosso Reino, de 2021, com roteiro original assinado por Marcelo e Claudia, é um mergulho na política. Mostra a montagem de uma chapa presidencial de direita, orquestrada por um grupo conservador com ligações com a direita dos Estados Unidos, formada por um empresário e um pastor evangélico de imenso sucesso entre os menos favorecidos e menos escolarizados.

O “crime” dos personagens é não serem pobres

É exatamente por causa da grande qualidade, da consistência, da seriedade dessas três obras anteriores de Marcelo Piñeyro que este Las Viudas de los Jueves me deixou certo gostinho de decepção.

Não que o filme seja ruim – de forma alguma. É um filme sólido, bem realizado, feito com talento e competência em cada aspecto técnico – fotografia, direção de arte, montagem. O elenco está uniformemente bem.

É um bom afresco sobre um pedaço da sociedade argentina do início dos anos 2000, um bom retrato da vida dos novos-ricos em um país que enfrenta uma crise econômica atrás da outra.

A questão, me parece, é que o filme não consegue dar um conteúdo mais sério, mais consistente, mais político mesmo, à crítica dura que faz àquela gente, aqueles quatro casais que focaliza.

São, seguramente, pessoas alienadas da dura realidade de injustiça social do país. Vivem de costas para a dureza que é a vida de boa parte da população, protegidos da pobreza pelos muros de seu condomínio chique – seu country. São egoístas, sim. Suas vidas são muito mais vazias do que elas mesmas consideram.

Mas esse é todo o seu “crime”. Não são ativistas de direita, não são porta-vozes de uma visão retrógada nos costumes. Não defendem a ditadura, não pedem a volta dos militares, o extermínio dos “comunistas”. Até onde o filme mostra, não exploram os mais pobres.

Seu “crime” é serem ricos.

E, diacho, simplesmente ter dinheiro não chega a ser assim um crime hediondo – a não ser naquela visão presente em tantos filmes italianos e franceses segundo a qual só os pobres são bons, e da classe média para cima é todo mundo doente da cabeça e do pé.

Nisso, nesse ataque a essas pessoas simplesmente por serem ricas num país e num continente de imensa pobreza, o filme me pareceu pequeno, menor. Coisa de esquerdismo infantil.

Bem, mas essa é apenas a minha opinião, que vale tanto quanto a de qualquer pessoa – e o filme tem sido bastante elogiado, sem ressalvas.

Para mim, é um bom filme – mas com essa ressalva que tentei explicar, não sei se a contento. Um bom filme – mas menor que as outras obras desse grande realizador.

Anotação em julho de 2022

Viúvas Sempre às Quintas/Las Viudas de los Jueves

De Marcelo Piñeyro, Argentina-Espanha, 2009

Com Ana Celentano (Teresa), Pablo Echarri (Tano),

Ernesto Alterio (Martín), Gloria Carrá (Lala), Vera Spinetta (Trina, a filha de Martín e Lala),

Leonardo Sbaraglia (Ronnie), Gabriela Toscano (Mavy), Camilo Cuello Vitale (Juan, o filho de Ronnie e Mavy),

Juan Diego Botto (Gustavo), Juana Viale (Carla),

e Roberto Antier (Apoderado), Gabo Correa (Sergio), Adrián Navarro (o guarda), Paula Burgos (Manuela), Abril Cargiulo (Sofía), Begoña Domínguez (Cinthia), Elena Gowland (Luisina), Sergio Paglini (Lumpire), Alejandro Polledo (o padre)

Roteiro Marcelo Figueras, Marcelo Piñeyro

Baseado no romance homônimo de Claudia Piñeiro      

Fotografia Alfredo Mayo

Música Roque Baños

Montagem Juan Carlos Macías

Casting Natalia Smirnoff

Direção de arte Jorge Ferrari, Juan Mario Roust

Produção Gerardo Herrero, Castafiore Films, Haddock Films, Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales (INCAA), Instituto de la Cinematografía y de las Artes Audiovisuales (ICAA), Televisión Federal, Tornasol Films.

Cor, 122 min (2h02)

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