Alguém Tem Que Morrer / Alguien Tiene que Morir

Nota: ★★☆☆

(Disponível na Netflix em maio de 2022.)

O título parece indicar uma daquelas séries policiais sobre máfias, quadrilhas ou serial killers, mas não é nada disso. Alguien Tiene que Morir, co-produção México-Espanha de 2020, uma minissérie extremamente mini exibida pela Netflix, é um drama familiar em que a política é o elemento principal.

Fala de homossexualidade, de perseguição cerrada e violentíssima aos homossexuais, mas o tema básico é a ditadura, a vida e o comportamento das pessoas sob a ditadura. Assim, Alguien Tiene que Morir é especialmente importante em países em que o governo e um bom número de pessoas flertam com o fim da democracia, como o Brasil do tempo do desgoverno Bolsonaro.

A ação da microssérie escrita e dirigida pelo jovem mexicano Manolo Caro se passa na Madri de meados dos anos 1950, quando a Espanha estava mergulhada na ditadura fascista do generalíssimo Francisco Franco. É uma bela série, um bela obra cinematográfica – mas deixa um gosto especialmente amargo.

É impressionante, chocante, apavorante como são próximos o fascismo daquela trágica ditadura na Espanha e todo o ideário da extrema direita brasileira dos tempos sombrios do bolsonarismo. A mesma obsessão por armas de fogo. A mesma obsessão de “defender a pureza das famílias” com a mais nojenta, repelente homofobia. Exatamente a mesma escala de valores que privilegia o poder, a força, a violência, a “macheza”. Que admira a morte, e tem profundo desprezo pela vida de todos os seres humanos que não são os seus familiares diretos.

Um torturador que também fazia tenebrosas transações

A trama gira em torno de duas famílias, os Falcón e os Aldama, que sempre foram próximas uma da outra. Na época em que se passa a ação, meados dos anos 50, os chefes das famílias, Gregorio Falcón e Santos Aldama, além de amigos, são parceiros em tenebrosas transações – algo que acontece, sim, nas democracias, como a gente bem sabe, mas que são inatacáveis nas ditaduras, como muita gente no Brasil parece ter se esquecido.

Gregorio (o papel de Ernesto Alterio, na foto acima) é alto funcionário do governo fascista – tem o cargo de subdiretor geral de Segurança. A rigor, sua principal tarefa deveria ser ir atrás dos antifascistas de todos os tipos, republicanos, independentes, sobretudo os “vermelhos”, como alguns personagens se referem aos esquerdistas, socialistas, comunistas de todos os matizes. Mas o que a série parece mostrar é que, ali por 1954, 1955, não sobravam mais antifascistas para as forças de “Segurança” caçarem – e então veremos que Gregorio e seus policiais se dedicam a catar maricónes, e, uma vez presos aqueles inimigos da pureza da sociedade espanhola, a espancá-los, torturá-los barbaramente, até que finalmente confessassem estar dispostos a virar héteros – caso conseguissem sobreviver.

Gregorio não ficava apenas em seu belo escritório dando ordens. Gostava, como um Brilhante Ulstra, de meter ele mesmo a mão na massa – e então há uma pavorosa sequência em que o vemos enfiar na boca de um acusado de ser maricón uma papa recheada de baratas.

Torturar seguramente dava prazer a Gregorio, mas grana, bufunfa, que é melhor ainda, isso ele conseguia na transação tenebrosa com o amigo Santos (Juan Carlos Vellido). Santos era um industrial, tinha fábricas de calçados, e ia bem de vida – mas queria expandir ainda mais seus negócios, abrir novas fábricas. E subornava o amigo Gregorio com uma grana milionária para que ele indicasse para trabalhar nas suas fábricas presos condenados pelos muitos crimes enxergados por uma ditadura fascista. Para trabalhar, é claro, como escravos – 14 horas por dia, com pagamento absolutamente mínimo, se é que havia pagamento algum.

Toda a microssérie tem menos de 2h30

Tanto os Falcón quanto os Aldama eram sócios de um grande clube de atiradores, especializado na caça aos pombos. Um perfeito clube da elite madrilenha do franquismo. Veremos que 50 anos antes, a mãe de Gregorio, Amparo (o papel de uma Carmen Maura, na foto acima, perfeita como uma crápula, uma filha da puta absoluta), havia sido campeã juvenil de tiro ao pombo, e seus dois netos, Cayetana e Alonso, haviam sido educados para treinar, treinar, treinar na nobre arte de assassinar pombos que antes haviam tido suas aves parcialmente cortadas para facilitar o trabalho dos assassinos.

Cayetana é interpretada pela jovem Ester Expósito, e Alonso, por Carlos Cuevas. O rapaz tem um desempenho não mais que mediano como o filho do empresário sem caráter que honra a tradição familiar. Já a moça Ester me pareceu muito bem no papel da filha absolutamente sem caráter do ricaço sem caráter e uma mãe sem caráter, Belén (o papel de Pilar Castro).

A série abre com uma rápida sequência em que Cayetana e o irmão Alonso estão no clube, treinando a pontaria. Cayetana comenta com Alonso que naquela noite a família vai jantar na casa dos Falcón. O que, ele não está sabendo? Sim, vai haver um jantar das duas famílias – para comemorar a volta do filho do casal Falcón, Gabino (Alejandro Speitzer, na foto abaixo), que havia passado os dez últimos anos no México.

Essa rápida sequência de abertura termina com os créditos iniciais – uma bela criação, um grafismo inteligente com um efeito de pombos voando em cima do título da série.

O mesmo esquema – uma rápida, impactante sequência de abertura, seguida pelos créditos iniciais – é repetido nos outros dois episódios da microssérie, de cerca de 50 minutos cada um. O que dá um total de apenas 149 minutos, ou um minuto menos que duas horas e meia. O tamanho de um filme um pouco maior que o tamanho padrão de entre 90 e 110 minutos. Há trocentos mil filmes menores que o total dos três episódios deste Alguien Tiene que Morir.

O filho volta do México com um amigo, um bailarino

Gabino, o único filho de Gregorio Falcón e sua mulher Mina (o papel de Cecília Suárez, uma atriz fascinante), o único neto da matriarca Amparo, está voltando à Espanha depois de passar dez anos no México.

Chega – sem ter previamente avisado a família – com um amigo mexicano, Lázaro (Isaac Hernández). Lázaro é um bailarino.

Adentra a rica casa do subdiretor geral de Segurança do governo do generalíssimo Francisco Franco, o cara que gosta de pessoalmente torturar maricónes, um bailarino – essa coisa que, para os homofóbicos, especialmente os mais babantes, significa veado, bicha, boiola.

Só isso já seria motivo de muito drama familiar – mas para o autor Manolo Caro ainda era pouco. Muito pouco.

As famílias Falcón e Aldama pareciam já haver combinado que Gabino e Cayetana se casariam. Aquela coisa absolutamente típica, tradicional, de as famílias decidirem os casamentos, a partir dos interesses dos negócios que envolviam as duas partes.

A princípio, Cayetana parece até se divertir com esse jogo.

Mas, como diz o clichê que goza o freudianismo, às vezes acontece que um charuto não é um falo – é apenas um charuto.

Ou, como mostrava semanalmente na revista O Cruzeiro com brilho o cartunista Carlos Estévão, as aparências enganam.

E relatar mais do que já foi relatado até aqui acho que seria spoiler.

Mas é fundamental dizer que não são os maridos, Gregorio e Santos, os protagonistas da história. Nem os dois filhos de Santos, esses sem caráter algum Cayetana e Alonso.

A trama se dá, principalmente, em torno dos dois amigos, Gabino e Lázaro, de Amparo, a avó de Gabino interpretada por Carmen Maura, e, sobretudo, sobretudo, em torno de Mina, a mulher de Gregorio, mãe de Gabino, sogra de Amparo.

Ah, sim, e tem importância fundamental Rosario, a empregada na casa dos Falcón. Rosario é interpretada por Mariola Fuentes -= e confesso que me assustei ao ver que Mariola Fuentes trabalhou em três filmes de Pedro Almodóvar, Carne Trêmula (1997), Fale com Ela (2002) e Abraços Partidos (2009).

Mas Mina, sobretudo, é que mais importa. Mina é a personagem central da trama.

Uma mexicana que se sente prisioneira

Há umas coisas que são engraçadas no cinema. O sotaque dos atores, por exemplo.

É evidente que, para as audiências de Espanha e México, os países co-produtores da minissérie, e que são referenciados o tempo todo na ação – tudo acontece na Espanha, Gabino está voltando após dez anos no México, e chega com um amigo mexicano –, seguramente fica muito claro que Mina é mexicana, e que Gabino voltou do México com sotaque mexicano.

Já os não hablantes de Español, ou Castellano, não são obrigados a perceber isso logo de cara. De forma alguma.

Foi só no segundo dos três episódios que entendi que Mina é mexicana. Ela conta isso num diálogo: muito jovem, viajou do México para a Espanha – e ali se apaixonou por um espanhol, Gregorio. Casaram-se, e ela ficou lá.

Aí, quando Gabino, seu único filho, estava entrando na adolescência, ela o mandou para o México, onde foi acolhido pelas tias. Há um diálogo em que Mina diz que fez isso para proteger o filho, porque a vida ali na Espanha não estava nada boa.

Ahnnnn… Na minha opinião, há aí, nessa questão específica da família Gregorio-Mina-Gabino, algo que o autor Manolo Caro e seus três co-roteiristas (Maria Jose Cordova, Rafael Ley, Carlos Taibo) não conseguiram resolver de forma muito redonda. Vejamos: a jovem Mina chegou à Espanha a passeio, conheceu Gregorio, se apaixonou, ficou. Até aí, tudo bem. Acontece que hoje – “hoje” correspondendo, claro, à época da ação, meados dos anos 50 – Mina se sente uma prisioneira. Uma mulher que é estuprada pelo marido que a rigor ela agora repele.

Como não repelir um sujeito que é torturador, um fascista torturador?

Mia – a série vai mostrando isso claramente – não tem absolutamente nada a ver com fascismo, ditadura. Muito ao contrário.

Então acho que estes são problemas que o roteiro não resolve: por que Mina nunca tentou escapar daquela prisão, daquele país mergulhado em uma ditadura que ela não suportava? E por que Gregorio, machista, dominador, aceitou a idéia de o filho único ir crescer num país que ele considerava uma colônia atrasada, Terceiro Mundo?

Bem. São questões, a rigor, feitas por um Idiota da Objetividade, aquele personagem das crônicas de Nelson Rodrigues.

O importante é que o personagem de Mina é rico, complexo, multifacetado.

Assim que pôde, conseguiu mandar o filho para longe daquela atmosfera duplamente sufocante, o país enfurnado na ditadura bravíssima, crudelíssima, e a casa em que o marido torturador fascista a mantinha prisioneira.

Estuprada pelo marido que ela gostaria de repelir, é um vulcão de desejo quando vê um homem que, ao que tudo indica, não trata a mulher como um cavalo.

Espanhóis e mexicanos de talento

Cada vez mais creio que os grandes filmes são feitos de pequenos detalhes – e há um pequenino detalhe, no primeiro dos três episódios da minissérie, que me impressionou demais.

É na sequência do jantar reunindo das duas famílias, os Falcón e os Aldama, para comemorar a volta de Gabino. Lá pelas tantas, um talher cai no chão, perto de Mina. Rosario, a criada, vem rapidamente para apanhar o talher no chão, mas, ao mesmo tempo, Mina se abaixa para pegar o objeto. Um gesto natural, normal.

Mais tarde, a sogra dela, essa Amparo que é o puro espírito dos ricos sem consideração alguma para com quem é “inferior”, reclama, cobra a nora: mulher da alta sociedade não pode jamais – diz ela – fazer o trabalho dos servos. Imagine, abaixar-se para pegar um talher no chão! Que vergonha!

Manolo Caro, diretor, autor da história, roteirista. Os atores Cecilia Suárez, Ernesto Alterio, Alejandro Speitzer, Isaac Hernández, Ester Expósito, Carlos Cuevas, Juan Carlos Vellido, Pilar Castro.

Embora veja muitos filmes e séries espanholas, embora o cinema espanhol seja o de que mais gosto, hoje e nos últimos muitos anos, depois daquele feito nas Ilhas Britânicas, não reconhecia nenhum desses nomes aí. O único nome familiar era o de Carmen Maura.

Ela está muito bem como Amparo, mulher em tudo por tudo detestável, nojenta, repulsiva. Todo o elenco me pareceu muito bem dirigido – talvez com a exceção, como já foi citado, do jovem Carlos Cuevas, que faz Alonso.

Mas a melhor interpretação, a que mais impressiona é sem dúvida a de Cecilia Suárez, que faz Mina, a protagonista (na foto acima).

Cecilia Suárez é mexicana de Tampico, nascida em 1971. Estudou teatro na Universidade de Illinois, nos Estados Unidos, e foi a primeira atriz de língua espanhola a ser indicada ao Emmy Internacional de melhor atriz (pelo seu trabalho na série Capadocia). Um de seus papéis mais famosos é o de Paulina na série La Casa de las Flores – que também foi dirigida por Manolo Carlo.

Essa moça me deixou muito impressionado – assim como outro mexicano, esse Isaac Hernández, que faz o bailarino Lázaro. Garoto novo, nascido em 1990 em Guadalajara, tem uma carreira extraordinária como bailarino: foi premiado em 2018 com o troféu principal de sua disciplina pela Associação Internacional de Dança de Moscou, e, agora em 2022, era o principal bailarino do English National Ballet. ​

Manolo Caro, Cecilia Suárez, Isaac Hernández. Mexicanos talentosos!

Esta é uma série que merece ser vista. É dura, é triste, em especial, repito, para nós, brasileiros, neste momento triste da nossa História. Mas é um belo produto.

Anotação em maio de 2022

Alguém Tem Que Morrer/Alguien Tiene que Morir

De Manolo Caro, criador, diretor, México-Espanha, 2020

Com Cecilia Suárez (Mina Falcón)

Ernesto Alterio (Gregorio Falcón, o marido de Mina),

Alejandro Speitzer (Gabino, o filho),

Isaac Hernández (Lázaro, o bailarino amigo de Gabino), Carmen Maura (Amparo, a mãe de Gregorio), Mariola Fuentes (Rosario, a empregada da casa de Mina), Ester Expósito (Cayetana Aldama, a filha de Santos e Belén), Carlos Cuevas (Alonso Aldama, o filho de Santos e Belén), Juan Carlos Vellido (Santos Aldama, o empresário amigo de Gregorio), Pilar Castro (Belén, a mulher de Santos),

e Eduardo Casanova (Carlos), Manuel Morón (Don Federico), Javier Pereira (Enrique), Iván Sánchez Sánchez (Jaime), Abril Montilla (Isabel), Javier Morgade (Martín), Miri Pérez-Cabrero (Cristina), Eloi Costa (Pedro), Bruno Sevilla (Javier), Laura Vecino (Pilar), Asier Flores (Gabino criança), Paku Granxa (Marisol), Lupe Cartié Roda (Beatriz), Marcos Mateo Ochoa (Javier), Oscar Emmanuel Fabela (Carlos)

Roteiro Manolo Caro, Fernando Pérez, Monika Revilla

Série criada por Manolo Caro

Fotografia Ángel Amorós

Música Lucas Vidal

Montagem Miguel Musálem

Direção de arte María Clara Notari

Figurinos Paola Torres

Produção Manolo Caro, Maria Jose Cordova, Rafael Ley, Carlos Taibo, Netflix.

Cor, 149 min (2h29 min)

***

 

2 Comentários para “Alguém Tem Que Morrer / Alguien Tiene que Morir”

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *