Femme Fatale

Nota: ★★★☆

(Disponível em DVD.)

Em Femme Fatale, de 2002, Brian De Palma exagera em todos os quesitos, todas as suas manias e todo o seu brilho. Exagera no quanto a femme fatale é fatal, exagera no voyeurismo, exagera nos seus deslumbrantes movimentos de câmara, exagera na demonstração de amor ao cinema, exagera na mania pelo split screen, a tela dividida, e pela câmara lenta – e exagera no intrincado da trama.

Exagera tanto no intrincado da trama que transformou isso um ponto de marketing. Em entrevistas para o making-off de propaganda do filme, Brian De Palma, autor solitário do argumento e do roteiro, diz, todo orgulhoso: “É um filme em que você nunca sabe onde está. Você acha que entendeu e aí tudo muda de novo. Você vai e vem.”

A estratégia de marketing não parece ter sido boa: o filme custou US$ 35 milhões e rendeu menos da metade disso, US$ 16 milhões. Foi o terceiro fracasso de bilheteria consecutivo da carreira do grande diretor, depois de Olhos de Serpente (1998) e Missão: Marte (2000) – e é importante falar disso, mas volto ao tema fracasso na bilheteria mais tarde.

Antes, gostaria de insistir na coisa do exagero.

A palavra “exagero” é pouco para Brian De Palma.

Demorei alguns dias entre rever este Femme Fatale e finalmente conseguir começar a escrever sobre ele. Ao longo desses dias, ficou rodando na minha cabeça a palavra “paroxismo”. É mais elegante, mais intrincada do que simplesmente “exagero”.

Femme Fatale é um filme chegado ao paroxismo.

De Palma encenou uma noite de gala em Cannes

Em 2000, pela primeira vez De Palma havia apresentado um filme no Festival de Cannes, o seu Missão: Marte. O filme não participou da Mostra Competitiva, foi hors-concours, mas o diretor, então com 60 anos, desfrutou a glória e o charme de caminhar ao lado de sua companheira pelo tapete vermelho de La Croisette.

Não que fosse um iniciante nos grandes festivais europeus. Quatro de seus filmes foram apresentados no de Veneza, e o de Berlim exibiu dois. Mas é bem provável que, entre os três, que são os mais importantes do mundo, o de Cannes seja de fato o mais charmoso.

O fato é que aquela coisa do tapete vermelho de Cannes ficou na cabeça dele – e seu filme seguinte, este Femme Fatale aqui, começa, após um rápido intróito, exatamente em uma exibição de um filme em um Festival de Cannes especialmente encenado para as câmaras de De Palma e do diretor de fotografia Thierry Arbogast.

É absolutamente fantástico. Brian De Palma criou para seu Femme Fartale todo o ambiente da apresentação de um filme no Festival de Cannes!

E enfiou, na sua história de ficção, o diretor Régis Wargnier, a atriz Sandrine Bonnaire e até mesmo o lendário Gilles Jacob, que durante anos e anos foi o diretor geral do Festival de Cannes. Na trama criada por De Palma, Régis Wargier, acompanhado de Sandrine Bonnaire, chega à Croisette para assistir à exibição de seu épico político Est-Ouest, no Brasil Leste/Oeste – O Amor no Exílio – e a câmara vai mostrar para o espectador o começo da exibição do filme. Vemos a abertura de Leste/Oeste, ouvimos um trecho da trilha sonora do filme, escrita pelo escocês Patrrick Doyle, vemos o diretor e a atriz sentados na platéia.

Há aí uma pequena brincadeira na metalinguagem: na vida real, Leste/Oeste, de 1999, não concorreu a prêmio no Festival de Cannes. Teve 14 indicações, inclusive ao Oscar de Melhor Filme e a quatro César, o Oscar francês – mas não concorreu em Cannes…

Bem, mas na ficção criada por De Palma, na chegada de Régis Wargnier e Sandrinne Bonnaire ao tapis rouge da Croisette para a exibição de Est-Ouest, desfila junto com eles uma starlet coberta por pouquíssima roupa e muitos, mas muitos diamantes.

Um apresentador, mestre-de-cerimônias, fala para os jornalistas e o público aglomerado à entrada do Palais des Festivals para ver as celebridades: – “Pisando o tapete vermelho o realizador Régis Wargnier, diretor de Est-Ouest, presente para a exibição de seu filme, acompanhado pelo seu produtor, Yves Marmion, e a linda atriz Sandrine Bonnaire. À sua direita está Veronica, vestindo uma incrível roupa em forma de serpente, do estilista Elli Medeiros. O motivo de ela estar rodeada de seguranças é que está usando um conjunto de jóias cujo valor é inestimável. Estão me dizendo que as jóias são adornada por 500 diamantes, pesando 385 quilates, com valor estimado em mais de US$ 10 milhões.”

Ao lado do realizador Wargnier e de Sandrine Bonair, essa Veronica (o papel da dinamarquesa Rie Rasmussen, em sua estréia no cinema) atrai todas as atenções. Não apenas porque veste pouquíssima roupa e um conjunto de jóias de mais de US$ 10 milhões mas também porque move seu extraordinário corpo sinuosamente, sem parar, como uma serpente.

Mas não é Veronica-Rie Rasmussen a femme fatale do título. Nessa sequência ela está apenas vestindo as jóias que uma quadrilha pretende roubar, ali mesmo no Palais des Festivals. A femme fatale do título trabalha para a quadrilha, e sua atuação será fundamental para que o roubo dê certo. No tapete vermelho ela está se fingindo de fotógrafa de algum órgão de imprensa. Veremos que se chama Laure, e é interpretada por outra novata, estreante, até então modelo, Rebecca Romijn-Stamos, que, apesar do sobrenome, nasceu em Berkeley, Califórnia, filha de um holandês e uma americana descendente de holandeses.

A mais podre, a mais manipuladora, a mais cruel

“Ela é uma femme fatale”, chove no molhado Brian De Palma sobre a protagonista da história, em uma das entrevistas para o making-off assinado pelo especialista no assunto Laurent Bouzereau. “As pessoas têm que olhar para ela e ficar de queixo caído. Isso para começo de conversa. Ela tem que ser linda, desesperadamente sensual, e uma atriz fantástica, o que é muito difícil de achar. Se descobríssemos alguém ainda não conhecido seria mais notável ainda. Uma história conhecida traz qualidades conhecidas à sua mágica particular. Então surgiu Rebecca, e impressionou todo mundo. Ela fez um trabalho fantástico.”

Uma hora lá, no filme, Laure se define: – “I’m a bad girl. Rotten to the heart.” Sou uma garota má. Podre até o coração.

No making of, Rebecca Romijn-Stamos define Laure: – “Ela não presta. É uma manipuladora, uma vagabunda. É cruel, traiçoeira – e está sempre à frente dos outros.”

Exagero. Não, mais que isso – paroxismo. A Laure criada pela imaginação de Brian De Palma e que vemos na pele dessa Rebecca Romijn-Stamos de beleza fantástica é o paroxismo do conceito de femme fatale.

Femme Fatale abre com uma das mais marcantes, impressionantes, inesquecíveis femmes fatales dos filmes noir – a Phyllis Dietrichson interpretada por Barbara Stanwyck em Pacto de Sangue/Double Indemnity. Está passando Pacto de Sangue na TV, com som original – ouvimos as vozes inconfundíveis de Fred MacMurray e la Stanwyck, e uma loura está assistindo. A loura, claro, é Laure, Rebecca Romijn-Stamos.

A Phyllis Dietrichson interpretada por Barbara Stanwyck no maravilhoso filme de Billy Wilder de 1944 é uma das mais clássicas femmes fatales do cinema noir, esse gênero que não existiria se não houvesse as femmes fatales. Tão clássica, marcante, impressionante, inesquecível quanto sua companheira e contemporânea Cora Smith interpretada por Lana Turner em O Destino Bate à Porta/The Postman Always Rings Twice, que o diretor Tay Garnett lançou em 1946. Bem, afinal, Phyllis e Cora são criações do mesmo escritor, James M. Cain, nome fundamental do cinema noir e do universo das femmes fatales.

Quando Lawrence Kasdan lançou Corpos Ardentes/Body Heat, em 1981, algumas décadas depois do apogeu do filme noir, fiquei convencido de que aquela Matty Walker de Kathleen Turner era A femme fatale definitiva, pior, muito pior que Phyllis Dietrichson e Cora Smith, muito mais… Como é mesmo? Muito mais má, podre até o coração, manipuladora, vagabunda, cruel, traiçoeira que suas colegas anteriores.

Mas aí veio Brian De Palma com sua Laure feita por Rebecca Romijn-Stamos.

Uma sequência de roubo estonteante

Laure está vendo Phyllis Dietrichson-Barbara Stanwyck atirar em Walter Neff-Fred MacMurray, o pacato vendedor de seguros que ela enfeitiçou para que matasse seu marido – e daí a pouco entra no quarto Black-Tie, o bandidão interpretado por Eriq Ebouaney, que tem esse apelido porque parece andar sempre de black-tie. Ele repassa com Laure os planos para o roubo que deverá acontecer no dia seguinte.

Esse intróito – Laure vendo Pacto de Sangue/Double Indemnity, entra Black-Tie, vão rolando os créditos iniciais – dura 4 minutos. Corta, vemos o tapete vermelho na Croisette diante do Palais des Festivals com o último letreiro dos créditos – “Written and directed by Brian De Palma”. Está começando a fantástica sequência do roubo do conjunto de jóias de US$ 10 milhões de dólares.

É de fato uma sequência extraordinária, fantástica – o paroxismo do talento brilhante de Brian De Palma. Dura 15 minutos, inclui uma longa sequência em que a câmara de voyeur do diretor nos mostra uma ousada cena de amor entre aquelas duas mulheres lindas, Rebecca Romijn-Stamos e Rie Rasmussen, nas peles de Laure e Veronica, num banheiro do Palais, enquanto o conjunto de jóias vai sendo tirado do corpo de Veronica e substituído por peças que imitam as originais, ao mesmo tempo em que Black-Tie vai recolhendo as originais.

Bem, pelo menos isso é que o espectador acha que está acontecendo. Ou pode ser que esteja achando. Ou talvez não. Quem sabe? Vendo aquelas duas deusas se beijando, se acariciando, praticamente se comendo, o espectador está percebendo se de fato as bilionárias jóias estão sendo trocadas por imitações?

Durante os 15 minutos da sequência do roubo, do heist, como diz De Palma nos making-off, ouvimos algo absurdamente belo. É o “Bolero” de Ravel, mas ao mesmo tempo não é exatamente o “Bolero” de Ravel. É genial, literalmente genial: é uma espécie de variação em torno da melodia conhecidérrima, forte, marcante. É um dos mais brilhantes trabalhos do compositor japonês Ryuichi Sakamoto, tão brilhante quanto a majestosa trilha que ele criou para O Último Imperador de Bernardo Bertolucci.

E é fantástico, porque aquele trecho da trilha que Sakamoto compôs para essa longa sequência do roubo, do heist, é um tanto como a própria trama deste Femme Fatale: é o “Bolero”, mas ao mesmo tempo não é. “É um filme em que você nunca sabe onde está. Você acha que entendeu e aí tudo muda de novo. Você vai e vem.”

Femme Fatale já valeria só por esses 20 primeiros minutos, os menos de 5 de intróito e os 15 da sequência no Palais des Festivals em Cannes, ao som dessa fantástica variação sakamotiana do “Bolero” de Ravel.

Mas depois tem muito mais. Racine, o bandidão número 2, interpretado por Edouard Montoute (só De Palma pra botar num bandidão francês o nome do grande poeta e dramaturgo do século XVIII!), joga Laure de um andar alto de um hotel chique, um Sheraton, e a tomada do corpo que cai faria estremecer de pavor Scottie Ferguson, o personagem de James Stewart em Um Corpo Que Cai/Vertigo (1958) de Hitchcock, o mestre que De Palma adora reverenciar.

Mais tarde os dois bandidões juntos, Black-Tie e Racine, vão lançar Laure do alto de uma ponte sobre o Sena naquelas águas um tanto turvas – mas, como é um filme de De Palma, as águas do Sena são límpidas, límpidas, e vemos aquele corpo esplendoroso de Laure-Rebecca Romijn-Stamos de repente ficar peladinho, peladinho, porque vai em seguida reaparecer numa banheira.

E, como De Palma é o voyeur dos voyeurs, há também uma dança com quase um total strip-tease de Laure-Rebecca, diante de um homenzarrão fortão a quem ela chama de Napoleon.

Antes, já havia tido um outro quase strip-tease de Laure-Rebecca, num quarto do Sheraton, diante de um Antonio Banderas que se fingia de veado.

Ih, diabo, eu não tinha falado, até agora, de Antonio Banderas.

O latin-lover que se finge de veado

“Tivemos sorte de poder contar com Antonio Banderas”, conta De Palma, numa das entrevistas para os making-off. “Ele faz muitas cenas difíceis, porque é a mosca que é atraída para a rede da aranha.”

É isso. Basicamente é isso. Banderas faz a mosca que é atraída para a rede da aranha. O pato, o sucker que em geral cai de quatro diante da femme fatale, o bobalhão que ela usa para conseguir seus objetivos. Em Pacto de Sangue, Phyllis Dietrichson-Barbara Stanwyck tinha o vendedor de seguros Walter Neff-Fred MacMurray. Em O Destino Bate à Porta, Cora Smith-Lana Turner tinha o andarilho-homem sem destino Frank Chambers-John Garfield. Em Corpos Ardentes, Matty Walkers-Kathleen Turner tinha o advogadozinho de cidade pequena Ned Racine-William Hurt. (Ei, olha o Racine aí!)

A cada femme fatale tem que corresponder um pato, um sucker. Em Femme Fatale é Nicolas Bardo-Antonio Banderas, um paparazzo. Lá pelas tantas oferecem a Nicolas Bardo um determinado trabalho, fotografar a mulher do novo embaixador dos Estados Unidos na França, Mr. Watts (o papel de Peter Coyote), e ele cumpre a pauta com brilho. Mas aí parece que se arrepende, fica com pena da moça que acha que está apanhando do marido, e aparece no Sheraton, fingindo-se de veado, cheio de trejeitos de veado, voz de veado.

É uma sequência deliciosa, hilariante. Antonio Banderas, aquele latin-lover, fingindo que é veado. E Laure-Rebecca vai tirando a roupa. E aí, pela centésima vez, o cinema cita The Graduate, A Primeira Noite de um Homem. Naquela beleza de filme que marcou uma geração inteira, a Mrs. Robinson de Anne Bancroft mostra as coxas maravilhosas para o bobalhão recém-formado Ben Braddock-Dustin Hoffman, e o rapaz, mais ingênuo que um anjo de Botticelli, pergunta: – “Mrs. Robinson! Are you trying to seduce me?”

Laure-Rebecca vai tirando a roupa. Não sei como ela percebeu que o paparazzo não é veado, está só fingindo ser veado, mas ela vai tirando a roupa. E aí Nicolas Bardo-Antonio Banderas, com uma voz bem de veado, pergunta, imitando Ben Braddock-Dustin Hoffman: – “Are you flirting with me?”

E daí um minuto ele crau! nela – ou os dois crau! um no outro. Mas na sequência seguinte ela crau! nele, este “crau!” aqui significando foder no sentido figurado.

Antonio Banderas estava no auge da fama

Em 2002, o ano de lançamento do filme, a carreira de Banderas nos Estados Unidos estava no auge. O ator de belos filmes de Pedro Almodóvar e outros bons diretores espanhóis havia trabalhado nas produções americanas Filadélfia (1993), Entrevista com o Vampiro (1994), Casos e Casamentos (1995), A Balada do Pistoleiro (1995), A Máscara de Zorro (1998), Pecado Original (2001). Era um nome que atraía público no mercado americano, o maior do mundo.

Mas não foi por isso que De Palma o convidou para o papel do paparazzo pato – ou, pelo menos, não só. Parece que foi uma indicação de Melanie Griffith, que, na época, era a senhora Banderas. (Eles foram casados no papel entre 1996 e 2015.) Melanie Griffith, filha de Tippi Hedren, a loura de Os Pássaros (1963) e Marnie (1964), havia trabalhado sob a direção de De Palma em Dublê de Corpo (1984), a homenagem do diretor a Janela Indiscreta (1954).

Uma quadrilha drummondiana: De Palma, que é um eterno reverenciador de Hitchcock, que filmou com Tippi, que é mãe de Melanie, que trabalhou com De Palma e casou com Banderas, que também trabalhou com De Palma.

Deve seguramente haver muitas outras informações gostosas, coincidências, curiosidades, na página de Trivia do IMDb sobre o filme – são 30 itens. Mas nem vou me aventurar muito por ali.

De Palma não consegue produtor nos EUA!

A carreira de Brian De Palma foi uma montanha-russa.  Like a roller-coster. Cheia de altos e baixos, peaks and valleys, como gostava de dizer minha amiga Myriam Lúcia.

É um grande e estranho fenômeno.

Quando vi Paixão/Passion, seu filme de 2012, escrevi que De Palma nem precisaria ter feito Carrie, a Estranha (1976), Os Intocáveis (1987), O Pagamento Final (1993), Olhos de Serpente (1998) e Dália Negra (2006) – todos eles bons filmes, no mínimo, no mínimo. Só por ter feito Vestida para Matar (1980), Um Tiro na Noite (1981) e Dublê de Corpo (1984) ele já teria garantido seu lugar na História como um grande cineasta.

Mas, diabo, ele fez Carrie, a EstranhaOs IntocáveisO Pagamento FinalOlhos de SerpenteDália Negra. Fez Scarface (1983), Pecados de Guerra (1989). Fez o primeiro Missão: Impossível (1996).

É um dos mais brilhantres realizadores do cinema americano da segunda metade do século XX em diante.

“Brian De Palma tem sido criticado por imitar Sir Alfred Hitchcock, mas, para as platéias mais novas, ele é o um grande mestre do suspense”, diz o livro 501 Movie Directors, organizado por Steven Jay Schneider. “Seus melhores momentos cinemáticos – muitas vezes grandes, lentas visões de tensão e violência – são alguns dos mais memoráveis da História do cinema.” E mais adiante: “É quando De Palma se movimenta nos filmes de gângster e de ação que seus talentos brilham mais fortemente.”

Diz o mestre Jean Tulard em seu Dicionário de Cinema – Os Diretores, uma obra, é necessário registrar, que não pega nada do que foi feito nos últimos 20 anos:

“Violência e terror: Brian De Palma alimenta-se na obra de Alfred Hitchcock e mais particularmente em Janela Indiscreta. O voyeurismo é nele essencial. Vestida para Matar é uma síntese da arte de Brian De Palma: virtuosismo técnico nas cenas do museu, voyeurismo constante, uma ação permanente sobre os nervos do espectador.”

A edição que tenho do Dicionário de Tulard não pega os trabalhos dos últimos 20 anos, mas faz uma observação que me parece interessantíssima:

“Deve-se ainda acrescentar que a denúncia das taras da sociedade americana, com Pecados de Guerra, e, principalmente, com o engraçadíssimo A Fogueira das Vaidades, custou a ele observações severas dos críticos de seu país.”
Autor de filmes de imenso sucesso até 1996, o ano do primeiro Missão: Impossível, De Palma realizou em seguida vários filmes que foram grandes fracassos.

Não há muitos casos de grandes realizadores americanos que de repente passam a ter imensa dificuldade para produzir novas obras. Só me lembro de mais um assim – o de Peter Bogdanovich.

Me animei a preparar uma filmografia de De Palma – levando em consideração apenas os longa-metragem, deixando de lado os curtas do início de carreira e os muitos vídeos que ele produziu, em especial para Bruce Springsteen, nos anos 80.

Os números são impressionantes.

Nos 30 anos entre 1968, em que fez seus primeiros longas, Murder à la Mod e Quem Anda Cantando Nossas Mulheres/Greetings, e 1998, o ano de Olhos de Serpente, De Palma realizou 24 longa-metragens.

Nos 21 anos entre 2000, de Missão: Marte, e este 2021 em que escrevo, foram apenas seis longas.

E nenhum desses seis longas foi uma produção americana.

Missão: Marte é co-produção EUA-França. Este Femme Fatale aqui é co-produção França-Suíça-EUA. Dália Negra (2006) é EUA-Alemanha-Inglaterra-Israel-Bulgária-França. Guerra Sem Cortes (2007) é EUA-Canadá. Paixão (2012) é França-Alemanha-Armênia-Mônaco. E Domino (2019) é Dinamarca-França-Bélgica-Itália-Holandsa-EUA-Inglaterra.

Em seu país, o país mais rico do mundo, Brian De Palma não consegue financiamento para produzir seus filmes. As indicações são de que, para fazer um novo filme, o grande realizador precisa sair mendigando por diversos países, para juntar o total necessário para filmar.

Que coisa pavorosa.

Anotação em dezembro de 2021

Femme Fatale

De Brian De Palma, França-Suíça-EUA, 2002

Com Rebecca Romijn-Stamos (Laure / Lily),

Antonio Banderas (Nicolas Bardo, o fotógrafo)

e Peter Coyote (Watts, o milionário americano), Eriq Ebouaney (Black Tie, o bandidão), Edouard Montoute (Racine, o outro bandidão), Rie Rasmussen (Veronica, a moça dos diamantes), Thierry Frémont (Serra), Gregg Henry (Shiff, o segurança da embaixada), Fiona Curzon (Stanfield Phillips), Daniel Milgram (Pierre / Bartender), Jean Chatel (comentarista no Festival de Cannes), Stéphane Petit (guarda-costas), Olivier Follet (guarda-costas), Éva Darlan (Irma), Salvatore Ingoglia (o motorista de caminhão), Laurence Martin (Nathalie), Jo Prestia (Napoleon, o fortão no strip-tease)

e, em participações especiais, Sandrine Bonnaire (ela mesma no Festival de Cannes), Régis Wargnier (ele mesmo no Festival de Cannes), Beata Ben Ammar (convidada especial no Festival de Cannes), Gilles Jacob (ele mesmo no Festival de Cannes)

Argumento e roteiro Brian De Palma

Fotografia Thierry Arbogast

Música Ryuichi Sakamoto

Montagem Bill Pankow

Casting Kerry Barden, Suzanne Crowley, Billy Hopkins

Direção de arte Anne Pritchard

Produção Tarak Ben Ammar, Marina Gefter, Quinta Communications, Epsilon Motion Pictures. DVD PlayArte.

Cor, 114 min (1h54)

R, ***

6 Comentários para “Femme Fatale”

  1. A ênfase no uso da palavra depreciativa “veado”, é só a vontade de ser preconceituoso e homofóbico mesmo?

  2. A palavra “veado” é usada para realçar um aspecto engraçado, interessante, na interpretação de Antonio Banderas. O ator deu gigantesca ênfase aos gestos exagerados que alguns homossexuais gostavam de exibir, e que na língua portuguesa falada no Brasil sempre foram associados ao termo “veado”.
    Não tem nada a ver com homossexualidade em si – até porque o personagem de Banderas não é homossexual. Ele só finge ser, e finge exageradamente, enfaticamente – de maneira engraçada, divertida. O que ele faz, e aquilo a que me refiro, é veadagem. Nada a ver com homossexualidade.
    Só isso.
    Sérgio

  3. Não há tom jocoso, cômico, na palavra “veado”, pra se referir a gays. Do mesmo jeito que não há na palavra “macaco” ou “crioulo” pra se referir a negros. Você não ressaltaria, por exemplo, uma cena em que Al Jolson faz black face, dizendo que ele “macaqueava”, ou “dançava imitando um macaco”, ou “falava e cantava com um sotaque engraçado feito um crioulo, com as gírias, o linguajar de um crioulo”. Além disso, ao contrário do que você diz, claro que a palavra “veado” tem a ver com homossexualidade, só que em tom depreciativo, hostil, estigmatizador, que desumaniza o ser humano LGBTQIA+, do mesmo jeito que chamar de macaco desumaniza uma pessoa negra, classificando-a como um animal. Chamar de “veado” sempre foi uma forma de se referir, de modo inferior, pernicioso, agressivo, ao homossexual afetado, com trejeitos, afeminado. Tanto é assim que você mesmo deixa claro que o personagem de Banderas age dessa forma para simular a falta de interesse sexual na personagem de Rebecca. A língua portuguesa, como qualquer outro idioma, é dinâmica e sujeita às demandas e transformações sociais. Se esse termo era aceito antes e sempre foi usado assim, porque o grupo social a que ele se refere era passível de tratamento discriminatório, e tava tudo bem, não quer dizer que hoje esteja correto. O uso de uma palavra não é imutável, ainda mais se o seu caráter ofensivo passa a ser amplamente reconhecido. Se você insiste nisso, demonstra um ranço preconceituoso e a recusa de se inserir em novos tempos, permanecendo com a mentalidade de décadas, ou séculos passados. No caso, você teve a opção de escrever o texto sem usar um termo inadequado, porque desrespeitoso, dizendo apenas que naquela cena ele fingiu ser um gay ou homossexual com trejeitos, afetado, afeminado, mas não, optou por ser preconceituoso, e a repetição insistente da palavra entrega a sua intenção. Bom, é isso. Espero que eu tenha sido claro sobre esse assunto.

  4. Mas por que eu precisaria usar tantas palavras – gay ou homossexual com trejeitos, afetado, afeminado – se a língua possui uma palavra específica – veado – que significa tudo isso, de forma cabal, clara, objetiva, franca?
    Sérgio

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