(Disponível no Cine Antiqua do YouTube em 1/2023.)
A trama é ótima: em San Francisco, homem presencia um assassinato cometido por gângster, a polícia pede que ele faça a identificação do assassino e sirva como testemunha. Com medo, o homem foge – e vão atrás dele a mulher, a polícia e o assassino.
Tão boa quanto a trama deste Woman on the Run (1950), no Brasil Na Noite do Crime, com Ann Sheridan no papel central, é a forma com que o diretor e co-roteirista Norman Foster conta a história: com inteligência, agilidade, uma maravilhosa atenção a bons detalhes e uma extraordinária fotografia (de Hal Mohr) que transforma a cidade de San Francisco em um dos principais personagens do filme.
Detalhes. Cada vez mais me convenço de que bons filmes são feitos de bons detalhes. O detalhe do isqueiro do assassino é de fato uma beleza.
O filme abre com um homem passeando com seu cachorro, tarde da noite. Veremos que se chama Frank Johnson (o papel de Ross Elliott, na foto abaixo), é um pintor de algum talento, mas sem sorte e fama, que, para ganhar a vida, trabalha como decorador de vitrines em uma grande loja da cidade. O cachorro, veremos também, logo em seguida, se chama Rembrandt.
Em um carro parado na rua, dois homens conversam, mas a câmara só mostra um deles, em close-up. É um rosto gordo, e o homem está com a palavra:
– “Não vou voltar ao assunto, Danny Boy. Eu estava entre a polícia e Smiley Freeman, e agora sou alvo de ambas as partes. Eu sei que você pegou US$ 20 mil de Smiley para esconder a arma do crime. Você tem um cigarro, Danny Boy?”
Enquanto tira um cigarro do maço desse Danny Boy que não vemos, o homem gordo continua: – “Minha proposta é muito simples. Dividimos os US$ 20 mil; US$ 5 mil para você, US$ 15 mil para mim, e eu retiro a arma do laboratório. Viver e deixar viver, é meu lema.”
Super close-up do isqueiro que Danny Boy oferece ao homem que está tentando extorquir dinheiro dele. Corta, e vemos novo close-up do rosto do cara gordo que faz a proposta de extorsão. E ele diz: – “Não faça essa cara… Isso me entristece…”
Ouvimos o barulho de um tiro, o rosto do homem se contorce de dor. A porta do carro é aberta, o homem cai no chão pedindo para que Danny Boy não o mate – e Danny Boy atira de novo nele à queima-roupa.
Rembrandt, o cachorro do pintor Frank que está ali perto, late. O assassino olha para Frank, Frank pode ver o rosto do assassino – que atira duas vezes, mas erra, e em seguida entra no seu carro e sai da cena do crime em disparada.
A polícia é chamada.
– “Você é casado?” – “De uma certa maneira.”
Os policiais identificam a vítima: é Joe Gordon (Tom Dillon), o bandido que havia testemunhado um assassinato cometido pelo conhecido gângster Smiley Freeman, e deveria comparecer a um tribunal dali a alguns dias para testemunhar contra ele.
O inspetor Ferris (Robert Keith, ótimo no papel), o chefe do grupo de policiais encarregado do caso, interroga a testemunha. – “Eu vi o rosto dele quando atirou em mim”, diz Frank. Seria capaz de reconhecê-lo?, pergunta o inspetor. Seria capaz de prestar testemunho?
– “Gordon era nossa testemunha. Agora é você. Identifique o assassino e nós faremos o resto”, diz o inspetor.
Frank, é claro, não faz uma cara muito boa diante dessa perspectiva.
Então o inspetor Ferris faz uma pergunta normal –
e Frank dá uma resposta surpreendente:
– “Você é casado?”
– “De uma certa maneira.”
“In a way” é a resposta de Frank. De uma certa maneira. Mais ou menos.
O inspetor, com toda razão, acha aqui esquisito: – “Como assim, de uma certa maneira? Você é casado ou não?”
Sim, ele é casado. Mas a questão é que o casamento de Frank com Eleanor não anda nada bem. Os dois andam se estranhando, andam muito distantes um do outro – e isso será um dos temas mais importantes da história que virá a seguir.
Com medo de testemunhar num caso que envolve um gângster poderoso, famoso, Frank aproveita um momento de distração dos policiais e foge. Assim, no que virá a seguir, veremos Frank muito pouco. Eleanor Johnson, a woman on the run do título original, a mulher em fuga, é que será a protagonista da história. Ela vem na pele de Ann Sheridan, essa atriz fascinante.
Por imaginar que em algum momento o fugitivo Frank vai procurar Eleanor pedindo ajuda, o inspetor Ferris e seus homens ficarão no pé dela o tempo todo. Esperta, danadinha, Eleanor vai conseguir fugir dos policiais em mais de uma oportunidade – e daí o título original do filme, mulher em fuga.
Tanto no pé dela quanto a polícia estará também um repórter de jornal sensacionalista bastante conhecido pelo inspetor Ferris e seus homens, um tal Leggett, que quer porque quer uma entrevista exclusiva com a testemunha do assassinato de Joe Gordon. O repórter é o papel de Dennis O’Keefe, o ator mais famoso do elenco depois da própria Ann Sheridan. O nome dele aparece junto com o dela nos cartazes, e antes do título, nos créditos iniciais – é o tal do top billing, algo pelo qual os atores e seus agentes lutavam com todas as forças.
O isqueiro do assassino, que havíamos visto na primeira sequência do filme, vai reaparecer mais tarde.
Woman on the Run é um filme curtíssimo, de apenas 77 minutos. Quando estamos com 36 dos 77 minutos, ficamos sabendo quem é Danny Boy, o assassino.
Um belo roteiro, uma maravilhosa câmara
Detalhes interessantes, fascinantes, saborosos. Um dos detalhes mais gostosos deste bom filme policial é a loura bêbada sem nome – o papel de Joan Shawlee, uma atriz que participou de 104 títulos entre 1945 e 1985, e creio que nunca teve a oportunidade de ser a protagonista. Ela esteve em Quanto Mais Quente Melhor (1959), aquela obra-prima de Billy Wilder, como uma das moças da orquestra de mulheres em que toca Sugar Kane-Marilyn Monroe, e também em Se Meu Apartamento Falasse (1960), outra obra-prima do mestre Wilder, em que faz Sylvia, provavelmente uma colega de trabalho ou amiga de Fran Kubelik-Shirley MacLaine.
A loura está bebendo em um bar por onde passam Eleanor e o insistente repórter Leggett, à procura de informações sobre Frank. É um pub irlandês, Sullivan’s Grotto. Eleanor se senta diante do balcão – e perto dela está a loura. – “Por que você não usa chapéu?”, pergunta a loura, com a voz embaralhada dos bêbados. – “Fico ridícula de chapéu”, responde Eleanor.
É uma sequência importante na trama, porque, enquanto Eleanor está no Sullivan’s Grotto, tentando obter informações do barman e sendo às vezes interrompida pela loura bêbada, está acontecendo um fato gravíssimo do outro lado da rua, no Jardins do Oriente, um nightclub de chineses que Eleanor e Frank no passado haviam visitado com frequência. Estamos aí com 40 minutos do filme, e revelar o que acontece no Jardins do Oriente seria spoiler.
É uma bela sacada do roteiro mostrar o que está rolando no Sullivan’s Grotto – uma loura bêbada se intrometendo na conversa, algo sem qualquer importância –, e não apresentar para o espectador as imagens do que está acontecendo no Jardins do Oriente, que é fundamental na trama. O espectador pode muito bem imaginar o que está acontecendo lá – mas o que ele vê na tela é Eleanor falando com o barman do pub irlandês.
O barman conta para ela que Frank tinha estado ali, sim, na noite anterior. E pergunta se ele estava com algum problema. – “Ele não veio para casa ontem à noite”, ela conta.
Ao que a loura bêbada se intromete mais uma vez: – “Eles são todos iguais. Eu procurei o meu por três anos.”
Instantes depois, no meio da rua, pessoas observam o corpo de Suzie (Reiko Sato), a dançarina do nightclub chinês, estendido no asfalto. A câmara – em outra bela sacada do roteiro – poupa o espectador de ver o corpo da moça morta; mostra apenas os transeuntes que pararam para ver a cena.
Um belo roteiro, sem dúvida alguma. Um isqueiro que identifica o assassino. Uma loura bêbada que vemos enquanto um novo crime está sendo cometido do outro lado da rua. E ainda haverá, quando a narrativa se aproxima do fim, a sequência na montanha-russa do parque de diversões em que Eleanor iria finalmente se encontrar com o marido – e onde estava também, o espectador está cansado de saber disso, o assassino.
É uma sequência absolutamente extraordinária essa da montanha-russa. Um tour-de-force da câmara do diretor de fotografia Hal Mohr. Eu ousaria dizer que Alfred Hitchcock e seu admirador Brian De Palma, dois dos realizadores que mais brilhantemente usaram movimentos de câmara na História do cinema, aplaudiriam de pé como na ópera o trabalho desse Norman Foster.
Um pouco sobre Norman Foster – e Ann Sheridan
Quem mesmo?
Pois é. Eu nunca tinha ouvido falar desse diretor na vida (ou, se tinha, havia esquecido, o que dá na mesma).
Norman Foster, nascido em Indiana em 1903. Dirigiu 59 títulos, entre 1936 e 1976, o ano de sua morte, aos 72 anos. Foi casado com Claudette Colbert entre 1928 e 1935, quando ela estava no auge da carreira, premiada com o Oscar de melhor atriz por Aconteceu Naquela Noite (1934), o grande clássico de Frank Capra.
“Um artesão competente e seguro”, diz dele Rubens Ewald Filho em seu Dicionário de Cineastas – e mais uma vez tiro meu chapéu para o Rubinho, como todos nós o chamávamos na redação do Jornal da Tarde. Não me lembro de ter visto outros filmes dele, mas, pelo que demonstra neste ótimo Woman on the Run, Norman Foster era exatamente isso: um artesão competente e seguro.
Interessante: o IMDb não destaca este Woman on the Run como um dos filmes mais marcantes do diretor. O site enciclopédico cita Letter to Loretta (1953), I Cover Chinatown (1936) e Mr. Moto em Férias (1939) como seus filmes mais conhecidos.
Da mesma maneira, o IMDb não coloca este filme entre os quatro mais marcantes, mais conhecidos de Ann Sheridan – lugar reservado para Dentro da Noite/They Drive by Night (1940), Em Cada Coração um Pecado/Kings Row (1942), Melodia do Amor/Shine on Harvest Moon (1944) e A Sentença/Nora Prentiss (1947).
O filme de Norman Foster também não está entre os cinco de Ann Sheridan destacados no livro Leading Ladies – The 50 Most Unforgettable Actresses of the Studio Era. Ali estão – além dos citados pelo IMDb Kings Row, Shine On, Harvest Moon e Nora Prentiss – as comédias Satã Janta Conosco/The Man Who Came to Dinner (1941) e A Noiva era Ele/I Was a Male War Bride (1949).
Todos os cinco filmes destacados tanto pelo IMDb quanto pelo livro Leading Ladies são, portanto, anteriores a este Woman on the Run.
Nascida no Texas em 1915, Ann Sheridan começou bem cedo no cinema, com um contrato com a Paramount aos 18 anos, após vencer o concurso “Search for Beauty”, em busca da beleza. Entre 1934 e 1936, apareceu em papéis minúsculos em mais de 20 filmes – em vários deles, viam-se dela apenas partes do belo corpo, emprestados para compor a figura de outras atrizes. Em 1936, aos 21 anos, passou a trabalhar na Warner Bros., estúdio que deu a ela o apelido de “Oomph Girl”, algo que ela sempre detestou. (Aprendo agora que “oomph” significa energia, poder de muita atividade.)
“Ann encontrou um lar sólido na Warner Bros, onde ficou por mais de uma década”, diz o livro Leading Ladies. Começando nos filmes B, ela abriu seu caminho até o estrelato usando sua habilidade para interpretar tanto mulheres brincalhonas quanto senhoras sofisticadas. Sua grande chance veio quando ela interpretou uma garota atraída pela vida flamejante prometida pelo ex-presidiário interpretado por James Cagney em Angels in Dirty Faces (1938, no Brasil Anjos de Cara Suja). O estúdio começou a usar o epíteto de ‘The Oomph Girl’ capitalizando seu jovial sex appeal na comédia de aventura Torrid Zone (1940, no Brasil Zona Tórrida).”
Ann Sheridan era uma atriz de muitas caras. Em muitos de seus filmes tem um rosto lindo, de beleza perfeita, jovial, radiante. Aqui, com apenas 35 anos de idade, parece uma senhora de bem mais de 40, endurecida pela vida; o rosto não é daquela perfeição Barbie, mas de uma beleza de pessoa forte.
Morreria muito jovem, com apenas 51 anos, em 1967.
Uma restauração feita graças a um amante do filme noir
O IMDb traz uma informação interessantíssima: o filme foi restaurado graças à homenagem que presta a San Francisco, aquela cidade de beleza acachapante, emocionante.
Produzida por empresa de pequeno porte, Fidelity Pictures, e apenas distribuída pela Universal, o filme, como tantas dezenas de outros não teve seus direitos autorais renovados e caiu em domínio público – e, assim, foi lançado em VHS e depois em DVD por várias companhias pequenas, em geral com péssima qualidade.
Eddie Muller, encarregado da “Noir Alley” da Turner Classic, fez uma ampla pesquisa para encontrar uma cópia antiga do filme, da época do lançamento original – e acabou achando uma de 35mm no British Film Institute. Pediu autorização para usar esse print para obter a partir dele uma cópia inteiramente restaurada; a restauração foi feita no Film and Television Archive da UCLA (Universidade da Califórnia – Los Angeles), com financiamento da própria empresa de Eddie Muller, da Film Noir Foundation e do fundo da Associação dos Correspondentes Estrangeiros em Hollywood. Woman on the Run é um dos filmes noir prediletos de Muller, por vários motivos – em especial por ter sido filmado, em grande parte, nas ruas de San Francisco, algo que não era ainda nadas usual em 1950. Ao contrário do que já acontecia no cinema italiano, em especial, naquela época os filmes de Hollywood eram totalmente rodados dentro dos estúdios.
É preciso registrar: a cópia que está disponível no Cine Antiqua dentro do YouTube é da mais alta qualidade. Parece um filme novo. Provavelmente foi feita a partir dessa restaurada por esse amante de filmes noirs, Eddie Muller.
Leonard Maltin deu ao filme 3 estrelas em 4: “Sheridan está extremamente convincente como esposa tentando encontrar o marido, testemunha de um assassinato de gangues, antes que o criminoso o faça”.
O livro The Universal Story diz o seguinte:
“Embora o crime não compense, ele pode prover emocionante entretenimento, como se demonstra em Woman on the Run, um melodrama de orçamento modesto produzido por Howard Welsch para a Fidelity Productions e com uma desglamourizada Ann Sheridan à frente do elenco. Ross Elliot fazia o marido artista, única testemunha de um crime entre gangues que, para não se envolver, desaparece, fazendo com que sua mulher tente encontrá-lo. Ela se decide a fazer a busca quando fica sabendo que ele tem uma doença cardíaca, e percebe que ainda o ama mais do que imaginava. Acompanhando a esposa em sua busca está o jornalista (interpretado por) Dennis O’Keefe. (…) Embora o elenco inclua também Robert Keith, Frank Jenks, John Qualen, J. Farrell McDonald e Thomas P. Dillon, todos eles são suplantados por San Francisco, o local em que o filme se passa, e que recebeu tratamento de estrela pelo diretor de fotografia Hal Mohr.”
Um belo filme com uma bela atriz e uma cidade maravilhosa.
Anotação em janeiro de 2023
Na Noite do Crime/Woman on the Run
De Norman Foster, EUA, 1950
Com Ann Sheridan (Eleanor Johnson),
e Dennis O’Keefe (Leggett), Robert Keith (inspetor Ferris), Frank Jenks (detetive Shaw), Ross Elliott (Frank Johnson, o marido de Eleanor), John Qualen (Mailbus, o colega de Frank), J. Farrell MacDonald (o capitão amigo de Frank), Tom Dillon (Joe Gordon, a vítima de Danny Boy), Joan Shawlee (a loura bêbada), Steven Geray (Dr. Hohler, o médico de Frank), Reiko Sato (Suzie, a dançarina chinesa), Victor Sen Yung (Sammy, o dançarino chinês)
Roteiro Alan Campbell, Norman Foster
Baseado em história de Sylvia Tate
Fotografia Hal Mohr
Música Emil Newman, Arthur Lange
Montagem Otto Ludwig
Direção de arte Boris Levin
Figurinos Martha Bunch, Travilla
Produção Howard Welsch, Fidelity Pictures. Distribuição Universal.
P&B, 77 min (1h17)
***1/2
Título na França: “Dans l’ombre de San Francisco”. Em Portugal: “Eu Vi um Crime”.
Um comentário para “Na Noite do Crime / Woman on the Run”