Em Cada Coração um Pecado / Kings Row

Nota: ★★½☆

(Disponível no Cine Antiqua do YouTube em 11/2022.)

Kings Row, no Brasil Em Cada Coração um Pecado, de 1942, é um clássico que tem grande importância, por um bom número de razões. A começar pelo fato de ter sido feito: o próprio roteirista encarregado pelo produtor Hal B. Wallis, Casey Robinson, achava que seria impossível adaptar o romance para o cinema. A mesma opinião de Joseph Breen, o sujeito que dirigia o Hays Office, a instituição que cuidava para que o código de autocensura dos estúdios fosse seguido.

O livro Kings Row, de autoria de Henry Bellamann, que havia sido lançado em 1940, era extremamente, mas extremamente controvertido. Tratava de sexo fora do casamento, incesto, ninfomania, eutanásia, homossexualidade, sadismo – todos eles temas que não eram tolerados pelo Código Hays.

Eis um trecho de um memorando de Joseph Breen, diretor do Production Code Authority, o nome oficial do Hays Office:

“Tentar traduzir tal história para a tela, mesmo que ela seja reescrita para ficar conforme as disposições do Código de Produção, é, no nosso julgamento, um empreendimento muito questionável do ponto de vista do bem-estar da indústria.”

Pois o filme não apenas foi feito – depois de diversas versões do roteiro serem apresentadas ao Hays Office – como recebeu três indicações ao Oscar de 1942, inclusive os das duas categoriais mais importantes, melhor filme e melhor diretor para Sam Wood. A terceira indicação foi na categoria de fotografia, para o grande James Wong Howe.

Muita gente achava, na época, que Ann Sheridan e Ronald Reagan (os dois à esquerda na foto abaixo) não tinham condições de interpretar dois dos principais personagens da história – e, no entanto, as atuações dos dois foram elogiadíssimas. É praticamente unânime a avaliação de que a interpretação do ator que depois viria a ser o 40º presidente dos Estados Unidos foi a melhor de sua carreira; ele mesmo sempre disse que achava isso, e usou como título de sua autobiografia, lançada em 1965, uma das falas de seu personagem no filme.

A trilha sonora, composta por Erich Wolfgang Korngold, foi elogiadíssima. É tida como a inspiração para o tema principal dos filmes Guerra nas Estrelas, composto por John Williams, e foi executada na cerimônia de posse de Ronald Reagan na Presidência.

No site agregador de opiniões Rotten Tomatoes, o filme tem a aprovação de 100% das críticas consultadas pelo site. Entre os leitores do site, ou seja, na votação popular, a aprovação é de 78%. No IMDb, tem a nota 7,5, média da avaliação de mais de 4,6 mil leitores.

Creio que tudo isso justifica plenamente a afirmação inicial de que este é um filme importante.

“Em vez de ternura e saúde, temos medo, hipocrisia,.,,”

Apesar de todas as adaptações feitas pelo roteirista Casey Robinson para tornar mais leve, mais suave, mais “limpa” a história criada por Henry Bellamann, Kings Row mostra para o espectador uma visão nada, mas nada rósea, positiva, da vida numa pequena cidade do interior dos Estados Unidos. Muito antes ao contrário. Como muito bem definiu Pauline Kael no início de sua crítica: “A típica visão nostálgica da vida numa cidadezinha americana virada pelo avesso: em vez de ternura e saúde, temos medo, hipocrisia, sadismo e insanidade.”

Aí vai a continuação da crítica de Dame Kael: “Aceitando com tranquilidade as muitas variedades de comportamento psicopata como simples realidades da vida, este filme tem seu próprio fulgor sentimental, mas os incidentes melodramáticos são surpreendentemente interessantes. A época é princípios do século XX, e o herói (Robert Cummings, na foto abaixo e à direita na foto acima) se interessa pelas novas idéias de Sigmund Freud. (O que é uma infelicidade: quando Cummings, olhos brilhando de idealismo, emite opiniões ingênuas sobre Freud, praticamente qualquer platéia contemporânea sairá do cinema.) Mas o diretor, Sam Wood, obtém algumas atuações admiravelmente bem definidas de outros atores: Ann Sheridan está radiante no papel de uma moça do lado pobre da cidade, e a Cassie assustada e apaixonada de Betty Field (na foto abaixo) é uma vinheta inesquecível. Charles Coburn e Claude Rains são os médicos da cidadezinha; Coburn adora fazer amputações sem anestesia (sua vítima especial é Ronald Reagan), e Rains mantém a filha trancada em casa. O elenco também inclui Judith Anderson, Maria Ouspenskaya, Nancy Coleman e Karen Verne.”

Em cada um de seus 15 mil verbetes, o monumental Guide des Films de Jean Tulard sempre faz primeiro uma sinopse do filme para, em seguida, apresentar uma avaliação. Em geral uso aqui apenas a avaliação, mas no caso deste Crimes Sans Chatiment, crimes sem castigo, como o filme se chamou na França, vou usar também a sinopse, o que me desobriga a escrever um resumo da história. Lá vai – com uns toques meus entre parênteses e em itálico:

“Parris Mitchell (Robert Cummings), estudante de medicina, se apaixona por Cassandra (Betty Field), filha do dr. Tower (Claude Rains), com o qual ele trabalha. (“Com o qual ele estuda” seria mais exato.) Mas quando o dr. Tower descobre que, como sua mãe, Cassandra está perto de perder a razão, ele a mata e se suicida. O melhor amigo de Mitchell, Drake (Ronald Reagan), está apaixonado pela filha do dr. Gordon (a filha é o papel de Nancy Coleman; o dr. Gordon é interpretado por Charles Coburn), que se opõe a essa união. Quando acontece um acidente com Drake, o dr. Gordon amputa as duas pernas dele, o que não era necessário. Parris se esforça para devolver ao amigo o amor pela vida.

“Um filme noir, muito duro, denunciando o grande poder dos médicos da época e que causou sensação. Ele poderá parecer hoje um tanto palavroso, mas os personagens de Claude Rains e de Charles Coburn se mantêm fascinantes.”

“Assassinato, loucura e sadismo na comunidade”

Eis o que diz Leonard Maltin, que dá 3.5 estrelas em 4 para o filme:

“Esse precursor de Peyton Place (A Caldeira do Diabo) ainda retém a força de sua varredura da vida em uma pequena cidade do Meio Oeste pré-Primeira Guerra Mundial, com os destinos de muitos de seus habitantes entrelaçados. Bela trilha sonora de Erich Wolfgang Korngold é do nível da produção caprichada e das ótimas caracterizações. Digno de nota, também, pela melhor atuação de Reagan. Roteiro de Casey Robinson, do livro best-seller de Henry Bellamann. Também disponível em versão colorizada por computador.”

Vixe! Existiu muito disso, ali pelos anos 80 e 90: versões de filmes em preto-e-branco colorizadas por computador. O que, no caso de um filme com a fotografia magnífica de James Wong Howe, é crime hediondo.

O livro The Warner Bros. Story traz um verbete bem longo sobre o filme, rico em informações.. Lá vai:

Kings Row, baseado no best-seller de Henry Bellamann, observava a vida de uma pequena cidade da América, mas, diferentemente dos meandros aconchegantes de, digamos, Our Town, de Thorton Wilder, retratava uma comunidade tocada por assassinato, loucura e sadismo. No centro da história estava Parris Mitchell (Robert Cummings), um jovem estudante de Medicina que, como resultado de tragédias que caíram sobre seu melhor amigo e sua bem amada (Drake McHugh e Cassandra Tower, os papéis de Ronald Reagan e Betty Field), assim como o médico que o encorajou nos estudos (Alexander Tower, o pai de Cassandra, o papel de Claude Rains), rapidamente descobre que Kings Row não é ‘o bom lugar onde se viver’, ao contrário do que ele antes acreditava. Dispondo do melhor dos talentosa do estúdio – tanto em frente quanto atrás das câmaras –, o produtor Hal B. Wallis deu ao diretor Sam Wood um time de puro-sangues que levou o projeto ao triunfo. Casey Robinson foi encarregado da tarefa de resumir em 127 minutos os eventos que se espelhavam pelo romance, James Wong Howe fotografou com brilhantismo e, no processo, pareceu sondar a própria alma de Kings Row e de seus habitantes (se é que eles tinham alma): William Cameron Menzies desenhou o filme e, junto com o diretor Wood, contribuiu para sua poderosa estrutura. Erich Wolfgang Korngold produziu uma trilha sonora maciça, sombria, que abrangeu de forma impressionante o vasto compêndio de emoções em exibição. As atuações também foram esplêndidas, e frustraram os cínicos que haviam presumido que Ronald Reagan como o melhor amigo de Cummings e Ann Sheridan, como a garota ‘do outro lado dos trilhos’ com quem ele se casa, eram pesos leves demais para seus papéis. Os mesmos cínicos, no entanto, estavam certos sobre Robert Cummings, que, como Parris, não tinha a autoridade que o papel demandava. Outras ótimas atuações foram as de Betty Field, Charles Coburn, Judith Anderson, Claude Rains, Nancy Coleman e Maria Ouspenskaya. Preocupado com a natureza sombria do filme, em uma época de guerra, o estúdio adiou o lançamento por um ano. A guerra ainda estava acontecendo quando ele foi lançado, e seus temores não eram inteiramente infundados, já que o filme teve um sucesso apenas moderado.”

O livro Cinema Year By Year 1894-2000, que fala sobre as principais obras e acontecimentos como se fossem notícias de jornal da época, é gigantesco, belíssimo – mas, no verbete sobre Kings Row, mostra que seus autores não têm vergonha de copiar outras obras. Isso fica bastante claro, já que repete frases inteiras do livro sobre a Warner Bros – sem dar o devido crédito. Impressionante.

Kings Row, baseado no best-seller de Henry Bellamnn, observa a vida numa pequena cidade da América e mostra uma comunidade tocada por assassinato, loucura e sadismo. Dirigida por Sam Wood, fotografada por James Wong Howe, desenhada por William Cameron Menzies, com trilha sonora de Erick Korngold, Kings Row não poderia deixar de ser entretenimento da mais alta qualidade. As atuações nesse melodrama apaixonante de 127 minutos também são de primeira, particularmente as de Ronald Reagan e Ann Sheridan, que frustraram os cínicos que presumiam que eles seriam pesos leves demais para seus respectivos papéis.”

Na minha opinião, não é um bom filme

Muito bem. Tudo isso posto, quero registrar que, ao rever o filme agora (tinha visto uma vez em 1988, mas na época não anotei comentário algum, e me lembrava de pouca coisa), fiquei chocado.

Achei tudo, mas tudo por tudo, da parte inicial, em que os personagens da trama ainda são crianças, ruim demais, um horror, um pavor. A vontade era de simplesmente parar. Fui em frente, no entanto.

O filme é importante, sem dúvida, e merece respeito – por isso transcrevi aqui informações e opiniões de gente respeitável sobre ele. Registro que não acho que seja um bom filme, de forma alguma – e o fato de o roteirista Casey Robinson ter sido obrigado a fazer profundas modificações na história para abrandá-la e permitir que o filme fosse produzido evidentemente explica muitos de seus defeitos.

Mas não tenho paciência para registrar minhas impressões sobre o filme. Falta paciência e sobra preguiça.

Caso o eventual leitor tenha interesse em saber mais sobre o filme, o texto sobre ele na Wikipedia é extenso e extremamente informativo.

Anotação em novembro de 2022

Em Cada Coração um Pecado/Kings Row

De Sam Wood, EUA, 1942

Com Robert Cummings (Parris Mitchell),

Ronald Reagan (Drake McHugh),

Ann Sheridan (Randy Monoghan)

e Betty Field (Cassandra Tower), Claude Rains (Dr. Alexander Tower), Charles Coburn (Dr. Henry Gordon), Judith Anderson (Mrs. Harriet Gordon), Nancy Coleman (Louise Gordon), Kaaren Verne (Elise Sandor), Maria Ouspenskaya (Mme. Von Eln), Harry Davenport (coronel Skeffington), Ernest Cossart (Pa Monoghan, o pai de Randy), Pat Moriarity (Tom Monoghan, o irmão de Randy), Ilka Gruning (Ann, a empregada da avó de Parris), Minor Watson (Sam Winters), Ludwig Stossel (Dr. Berdoff), Erwin Kalser (Mr. Sandor), Egon Brecher (Dr. Candell), Ann Todd (Randy criança), Douglas Wheat (Drake criança), Scotty Beckett (Parris criança), Mary Thomas (Cassandra criança), Joan Duval (Louise criança), Danny Jackson (Benny Singer), Henry Blair (Willie), Leah Baird (tia Mamie), Eden Gray (Mrs. Tower), Julie Warren (Poppy Ross), Mary Scott (Ginny Ross), Bertha Powell (Esther), Walter Baldwin (policial)

Roteiro Casey Robinson

Baseado no romance de Henry Bellamann

Fotografia James Wong Howe

Música Erich Wolfgang Korngold

Montagem Ralph Dawson

Desenho de produção William Cameron Menzies

Produção David Lewis, Warner Bros.

P&B, 127 min (2h07)

R, **1/2

Título na França: Crimes sans Châtiment. Na Itália: Delitti senza Castigo. Em Portugal: Em Cada Coração um Pecado.

4 Comentários para “Em Cada Coração um Pecado / Kings Row”

  1. Adorei suas resenhas, inclusive do Muito Alem do Jardim. Um filme que compartilho c a familia toda e amigos, meio que os obrigo a ver. E todos se apaixonaram.

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