3.5 out of 5.0 stars
Anotação em 2009: Um belo clássico sobre como se dissolve, como vai pro brejo um casamento – e, de quebra, também sobre o choque de civilizações, a americana versus a européia.
Duas características, em especial, voltaram a me impressionar ao rever o filme agora, em 2009 (eu tinha visto uma vez nos anos 80, e outra em 2002). A primeira é aquela coisa de como o cinema, antes dos anos 70, 80, falava mais para o público adulto, sobre questões pertinentes aos adultos. É esta verdade que volta e meio constato: nas últimas décadas, o cinema ficou menos inteligente, mais imbecil, entre outros motivos porque passou a querer agradar às platéias adolescentes, que tinham se tornado a faixa etária que mais bota dinheiro na bilheteria.
E também porque passou a querer agradar a platéias cada vez maiores, para compensar as produções cada vez mais caras, o cinemão passou a nivelar por baixo, como diz Roger Ebert, o crítico que gosta de ver filmes: “As produções atuais objetivam primordialmente atingir o grande público, nivelando-o por baixo, especialmente nestes últimos tempos em que Hollywood está orientada pelo mercado e que a sua máquina domina o cinema mundial. ‘Se você explorar três conceitos num só filme, a regra será violada e o público desaparecerá’, declarou Sean Penn à platéia durante o Festival de Edimburgo de 2001.”
Este Fogo de Outono/Dodsworth é de muito antes destes tempos voltados para os muito jovens e só para as platéias muito amplas, que, na visão dos produtores de hoje, são necessariamente pouco inteligentes. É de 1936; tem, em 2009, 73 anos de idade. Foi feito apenas nove anos depois que o cinema aprendeu a falar. Três anos antes do início da Segunda Guerra.
E aí é que impressiona a segunda característica marcante do filme. Ele não envelheceu. Não ficou datado. Retrata uma realidade dos anos 30, claro. Mas, se um diretor como, digamos, James Ivory, ou Joe Wright, quisesse filmar hoje o romance Dodsworth, do escritor Sinclair Lewis, o primeiro americano a ganhar no Nobel de Literatura, não faria, provavelmente, um filme muito diferente deste aqui. Porque William Wyler fez um filme sem modismos – fez um clássico, que permanece sempre.
Quando a ação começa, o protagonista, o Samuel Dodsworth do título original – interpretado magistralmente por Walter Huston (1884-1950), o pai do grande cineasta John Huston e avô dos atores Anjelica e Danny – acaba de vender a fábrica de automóveis que construiu e fez crescer ao longo de 20 anos com empreendedorismo, perseverança, trabalho duro e dedicação total.
A primeira tomada é uma beleza – ainda e sempre uma beleza, mais de 70 anos e tanto Matrix, tanta peripécia de câmara depois. Um plano geral de uma gigantesca sala; a câmara mostra um homem de pé, de costas, diante de uma grande parede envidraçada; ao fundo, do lado de lá da sala do dono da empresa, vê-se a imensa fachada da fábrica, onde se lê seu nome, Dodsworth. (Se a empresa de Henry Ford pode ter seu sobrenome, por que não a de Sam Dodsworth?) A câmara vai se aproximando do homem – que o espectador vê sempre de costas – e da parede envidraçada; então a câmara se vira um pouco para a esquerda dele, um pouco para baixo, até a mesinha onde há um telefone e um jornal aberto com a notícia da venda na manchete: “Dodsworth Motors vendida à U.M.C.”
Na tomada seguinte, vemos o industrial passando no meio do pátio onde se reúnem centenas, milhares de operários. A câmara vai atrás dele, mostrando os rostos dos operários – ainda não vemos seu rosto. Os operários se despedem dele com muitas demonstrações de afeto – e já de saudade.
Na tomada seguinte vemos finalmente Sam Dodsworth, sentado no banco de trás de seu carro, jornal no colo. Seu rosto não mostra alegria, felicidade; ao contrário, a expressão é dura, pesada, tensa; ele se vira para trás no banco do carro para olhar a fábrica que construiu e que está deixando para não voltar mais.
Na seqüência seguinte, acompanharemos um diálogo entre Dodsworth e sua mulher, Fran (Ruth Chatterton, perfeita para o e no papel). As malas do casal estão prontas para a viagem que farão em seguida para a Europa. Ela pergunta como ele se sente, ele responde: “Como sentiria qualquer homem que vendeu 20 anos de sua vida?” Em seguida ela dirá: “Se não estivéssemos amarrados a esta pequena cidade do Meio-Oeste…”, e ele vai interrompê-la para dizer: “Fran, não comece a criticar Zenith”.
A conversa dos dois é interrompida com a chegada de um casal de amigos, Tubby (Harlan Briggs) e Matey (Spring Byington). Tubby, amigo de Dodsworth desde o colégio, agora seu banqueiro, está furioso com a decisão do outro de vender tudo e não aceitar a oferta dos novos donos da empresa de ser vice-presidente e continuar no comando de toda a fabricação de carros.
“Americanos como você e eu não podem desistir, Sam. Temos que continuar trabalhando até morrer”, diz Tubby, num momento em que as duas mulheres deixaram a sala.
E Sam: – “Quero uma vida nova para mim. Quero aprender a desfrutar da vida, agora que me aposentei. Quero me sentir livre.”
Tubby replica: – “Se você pensa que quero ver meu velho e querido amigo se tornar uma cobra de salão exilada porque Zenith não é bom o suficiente para a sua esposa…”
Fran, a esposa, volta com Matey para a sala a tempo de ouvir as críticas de Tubby. Leva na esportiva, diz um gracejo.
E o fato é que temos, com menos de dez minutos de filme, as questões básicas já explicitadas. O trabalho era a razão de viver de Dodsworth; ele adorava a fábrica e a sua cidade, mas abriu mão de tudo para satisfazer à mulher, que queria aventura, excitação, brilho, os salões, as roupas caras, a exibição de riqueza, a convivência com a sociedade européia. Não poderia haver duas pessoas mais díspares, mais opostas, com objetivos mais antagônicos.
O pobre Sam Dodworth vai comer o pão que o diabo amassou na mão de Fran.
Coincidências, ficção, realidade
Uma explicação sobre Zenith, a cidade citada acima. Zenith, naturalmente, não existe; é uma criação de Sinclair Lewis. Nascido em Sauk Centre, Minnesotta, no coração do Meio-Oeste, ele inventou Zenith para simbolizar a cidade provinciana, atrasada, de valores pequeninos, sem profundidade espiritual ou emocional. Outros de seus livros também se passam na fictícia Zenith. Décadas depois, Scott Turow seguiria seu exemplo e criaria uma cidade imaginária, também localizada no Meio Oeste, onde se passam os dramas de seus advogados, juízes, promotores e criminosos.
A atriz que faz o papel de Edith Cortwright, uma divorciada (na época, as divorciadas ainda eram alvo de preconceito) que o casal Dodsworth conhece no transatlântico Queen Mary, na sua viagem à Europa, é Mary Astor (foto ao lado), que, cinco anos depois, em 1941, estrelaria o primeiro filme dirigido pelo filho de Walter Huston, John – Relíquia Macabra/The Maltese Falcon.
O iMDB conta que, na época da produção do filme, a própria Mary Astor estava enfrentando um processo de divórcio que atraía as atenções da imprensa; nas suas memórias, a atriz escreveu que o personagem de Edith Cortright – uma solitária ilha de bom-caratismo que o pobre Dodworth encontra nas suas andanças européias – foi seu papel favorito, e que ela se apoiou no personagem para enfrentar o circo em que a imprensa transformou seu processo de divórcio: “Quando eu ia para o tribunal e enfrentava aquele tumulto… aquilo teria me destruído completamente. Eu fingia que aquilo era com Edith Cortright”, escreveu ela.
Fogo de Outono/Dodsworth teve sete indicações para o Oscar de 1937, inclusive melhor filme, melhor diretor para William Wyler, melhor ator para Walter Huston e melhor roteiro para Sidney Howard; só ganhou um prêmio, o de direção de arte para Richard Day. Quatro vezes indicado, Walter Huston só ganharia um Oscar, por O Tesouro de Sierra Madre, de 1949, no qual foi dirigido por seu filho John. John Huston depois daria à sua filha Anjelica um papel ganhador de Oscar, em A Honra do Poderoso Prizzi/Prizzi’s Honor, de 1986. Não há outro caso de cineasta que tenha dirigido pai e filha em interpretações ganhadoras de Oscar.
O choque de culturas
Quando o livro Dodsworth foi lançado, em 1929 (no mesmo ano em que John Steinbeck publicava sua primeira novela, Cup of Gold, e quatro anos depois de O Grande Gatsby de F. Scott Fitzgerald e de A Tragédia Americana de Theodore Dreiser), Sinclair Lewis já era um autor famosíssimo; seus livros anteriores haviam sido best-sellers – Main Street, Babbitt, Elmer Gantry. No ano seguinte, 1930, receberia o Nobel.
O romance foi transformado em peça de teatro por Sidney Howard; a peça estreou na Broadway em fevereiro de 1934 e teve 315 apresentações, com Walter Huston no papel de Sam Dodsworth.
Walter Huston está maravilhoso como o americaníssimo empreendedor que ama profundamente a mulher fútil, leviana, vaidosa, coquete, incapaz de compreender e aceitar a passagem do tempo, e que, por amor a ela, abre mão de tudo que o prende à vida. Expressa de maneira fantástica os momentos de excitação juvenil quando descobre alguma pequena coisa que lhe dá prazer – e os muitos momentos de aborrecimento, enfado, tédio diante daquela gente rica ou nobre do Velho Continente que não produz nada e vive de uma riqueza do passado ou simplesmente se aproveita da fortuna dos amigos americanos.
E Ruth Chatterton está perfeita como Fran; cada gesto dela indica aquilo tudo, futilidade, leviandade, completo vazio interior. Até o tipo físico dela é perfeito para o papel: Fran é uma mulher vistosa, mas está longe de ser bela; é uma americana do interior que pretende se passar por elegante e só consegue ser ricamente vulgar. E é absolutamente fascinante como ela vai se transformando da americana fútil, leviana, que nunca tinha saído da sua cidade no Meio-Oeste, na mulher que se oferece mas não se entrega, até a que se oferece completamente.
Uma presença interessante no elenco é do inglês David Niven, então quase um garotinho, com apenas 26 anos de idade (acho que garotinho, propriamente, David Niven nunca foi; ele já nasceu maduro, de bigodinho, elegante, sempre de terno e gravata); ele faz o papel do primeiro dos muitos europeus de boas roupas e boa lábia que vão rodopiar ao redor de Fran Dodsworth, mais atraídos por seus dólares do que propriamente pela sua beleza ou charme – de resto inexistentes, estes dois últimos.
Outra figura interessante do elenco é Maria Ouspenskaya, que interpreta a baronesa Von Obersdorf, mãe de um barão, um jovem babaca que corteja Fran em Viena. A baronesa diz a Fran frases duríssimas de se ouvir, especialmente por alguém que, como ela, precisaria algum dia “parar de ficar mais jovem”: “Você já pensou em quão pequena é a felicidade que pode existir para uma velha esposa de um marido jovem?” Madame Ouspenskaya, figuraça, nasceu na Rússia czarista em 1876, e já tinha trabalhado em dois filmes russos quando veio a Revolução Comunista de 1917; chegou a trabalhar em filmes soviéticos, mas aí cascou fora; este aqui foi o primeiro de seus filmes americanos.
Não sei como é o livro – Sinclair Lewis é tido como um profundo crítico de algumas mazelas americanas, mas não por defender algo mais próximo do socialismo, como fizeram muitos dos intelectuais seus contemporâneos, os já citados Theodore Dreiser e John Steinbeck e o próprio diretor William Wyler inclusive, e sim por ser um veemente defensor dos mais tradicionais e arraigados valores americanos. Então: não sei como é no livro, mas a visão que o filme passa é exatamente aquela de Sam Dodsworth: os bons valores são os americanos, o trabalho duro, honesto daquele gente rude, meio caipira, mas boa; os europeus podem ter mais cultura, mais história, mais elegância, mais pedigree, mas adormeceram sobre suas glórias passadas e agora são um bando de folgados, sanguessugas, imprestáveis.
(E aqui, um parêntese rápido: é fascinante ver como, bem no final do filme, o diretor Wyler e o roteirista Sidney Howard fazem um elogio à União Soviética. Wyler era, por exemplo, um bom amigo de Lillian Hellman, e trabalharia com ela – a extraordinária, fascinante Lillian, senhora Dashiell Hammett, todos, como diz a música, comunistinhas legais, naquela época distante em que ser comunista era bem legal.)
Podemos não concordar com essa forma de Sam Dodsworth enxergar as coisas – e eu não concordo absolutamente com ela. Mas é fácil respeitá-la – afinal, estamos diante de um documento histórico, uma beleza de filme clássico baseado numa obra de autor importante, que retrata um tipo de visão de mundo muito comum nessa eterna relação de amor e ódio entre EUA e Europa.
E Sam Dodsworth, ao final das contas todas, não será o provinciano, o acanhado, o que se conforma com as normas estreitas do mundo pequeno – o tipo que Sinclair Lewis detestava. Muito ao contrário, e ainda bem.
Fogo de Outono/Dodsworth
De William Wyler, EUA, 1936
Com Walter Huston, Ruth Chatterton, Mary Astor, Paul Lukas, David Niven, Gregory Gaye, Maria Ouspenskaya, Harlan Briggs, Spring Byington
Roteiro Sidney Howard, baseado em sua peça, baseada no romance de Sinclair Lewis
Fotografia Rudolph Maté
Música Alfred Newman
Produção Samuel Goldwyn Company
P&B, 101 min
R, ***1/2
Vi este filme agora. É belíssimo mesmo. Fui atrás deste pois tenho buscado todos os filmes de Willian Wyler. O filme é ainda melhor do que eu imaginava. E aquela esnobada que o David Niven passa na Fran?? Uau! Achei bem ousado pra época. Teu texto aqui está ótimo. Faz justiça ao filme.