Nas Garras da Lei / Special Agent

2.5 out of 5.0 stars

(Disponível na Franciellen Taynara do YouTube em 11/2024.)

Agradável, gostoso de se ver, Secret Agent, no Brasil Nas Garras da Lei, de 1935, é um filme interessante por vários motivos. Pela trama muito bem engendrada, bem desenvolvida. Pela direção segura, experiente de William Keighley, um diretor que merece ser conhecido. Pela presença radiante de uma Bette Davis aos 27 aninhos de idade. Por conseguir tratar de tema pesado sério – o crime organizado – com leveza, graça, bom humor.

E por todo o contexto em que foi produzido, nos tempos em que o Hays Office – que cuidava da censura dos filmes produzidos por Hollywood – estava com as garras mais afiadas.

Sim: o tema, de uma forma assim ampla, geral e irrestrita é a dificuldade do combate ao crime organizado. Não o pequeno ladrão, o batedor de carteira – mas o grande criminoso, o chefe das organizações criminosas. O filme abre com um discurso de uma autoridade do governo em Washington, o chefe do IRS, o Internal Revenue Service, a receita federal deles, para um grupo de agentes de primeira linha.

Logo em seguida a narrativa vai se concentrar em um dos chefões do crime,

É como se houvesse uma tomada amplíssima, um plano geral abrangendo uma área gigantesca, e depois houvesse um zoom para uma história que é um exemplo típico do que acontece no país inteiro. Algo como a maravilhosa abertura do West Side Story original, o que Robert Wise dirigiu em 1961.

Vale a pena registrar o discurso do chefe do IRS (interpretado por Robert Barrat), até porque não é necessário fazer a degravação – o IMDb já fez. Mas vou fazer a transcrição mais adiante. Agora, seria bom fazer um resumo básico da trama, da história do chefão do crime Alexander Carson (o papel de Ricardo Cortez, na foto abaixo).

A contadora do gângster sabe tudo sobre seus crimes

A ação se passa em uma grande cidade, que não é identificada nunca – a melhor maneira de dizer que poderia ser qualquer grande cidade.

Todas as autoridades ali estão cansadas de saber que Alexander Carston cobra dinheiro de pequenos comerciantes a grandes donos de nightclubs por proteção. Que tem um grande número de gângsters a seu serviço. Que manda matar quem não paga. O chefe de Polícia (o papel de Joseph Crehan), o promotor de Justiça (Henry O’Neill), até o procurador-geral em Washington (Irving Pichel), todos sabem muito bem dos crimes. Os jornais publicam reportagens sobre eles. O problema é que as autoridades não conseguem provas contra Carston, de maneira a conseguir uma condenação do sujeito. Toda vez que surge uma acusação contra ele, as testemunhas morrem em “acidentes” antes de poder falar diante da Justiça.

E é então que vai surgir o agente especial que dá o título original do filme, o camarada que vai fazer com as garras da lei do título brasileiro finalmente caiam sobre o bandidão Carston.

O agente especial, que estava presente na sequência da abertura, ouvindo o discurso do chefe da receita federal dos Estados Unidos, chama-se Bill Bradford (o papel de George Brent), é inteligente demais, astuto a não mais poder, uma daquelas figuras simpaticonas, que conquistam todo mundo.

O filme não se dá ao trabalho de explicar como, mas Bill Bradford consegue se fazer passar por um jornalista, um repórter que escreve em um dos jornais da cidade matérias que dão a entender que Carston é um sujeito absolutamente inocente, alvo da perseguição do procurador e da imprensa sensacionalista.

Com isso, Bill Bradford consegue se aproximar do bandidão, ser benquisto por ele.

E fica próximo também de uma das pessoas mais ligadas a Carston – sua colaborada direta, sua contadora, a única pessoa que anota em grandes cadernos, em linguagem cifrada, cada dólar que o mafioso recebe de cada uma das pessoas de quem extorque dinheiro.

A contadora, uma mulher de uma capacidade de fazer cálculos aritméticos de forma absolutamente iniqualável, se chama Julie Gardner, e, como diria Kim Carnes, she’s got Bette Davis’s eyes.

Não só os olhos. Julie Gardner tem tudo de Bette Davis na sua versão jovem, muito, muito jovem.

Na primeira sequência em que Julie Gardner-Bette Davis aparece, sentada no banco de trás de um carrão ao lado do mafioso Alexander Carston, fui levado a pensar que ela seria a amante ou a mulher do bandido. Não, de forma alguma. É uma funcionária dele, uma empregada. Carston tem a maior confiança nela, e depende dela e do fantástico talento dela para os números, a contabilidade. Mas não há qualquer tipo de envolvimento romântico.

Na verdade, como o espectador verá, à medida que a narrativa vai avançando, Julie tem profundo desprezo pelo patrão, que ela mais que ninguém sabe que é um criminoso. Não sabia nada sobre Carston quando foi contratada – e gostaria muito de se libertar dele, mas sabe que ele mandaria matá-la se tentasse abandoná-lo.

Bette Davis e George Brent fizeram 11 filmes juntos 

Que atriz, meu Deus…

Nascida em Massachusetts em 1908, Ruth Elizabeth Davis estreou no cinema aos 23 anos, em 1931. Já havia feito 24 filmes quando 1934 terminou – inclusive Escravos do Desejo/Of Human Bondage, baseado no romance de W. Somerset Maughan. Em 1935, além deste Secret Agent aqui, fez outros quatro filmes – um deles, Perigosa/Dangerous, deu a ela seu primeiro Oscar. Ao morrer, aos 81 anos, em 1989, deixou uma filmografia com 124 títulos. Ganhou 34 prêmios, inclusive um segundo Oscar, por Jezebel (1939). Além dessas duas estatuetas que levou para casa, teve outras nove indicações ao prêmio da Academia.

Gostaria de ter visto, de ainda ver mais filmes com a muito jovem Bette Davis, a Bette Davis dos anos 1930. Fiquei pensando, depois de ver este Special Agent, que Bette Davis teve grande importância por – ainda naquela década, quase um século atrás, antes da Segunda Guerra, quando a mulher trabalhar fora de casa ainda não era o mais comum – ter interpretado várias vezes mulheres profissionais, mulheres trabalhadoras, e bem colocadas no mercado de trabalho.

Aqui, uma contadora competente, brilhante. Em Surpresas Convencionais/The Dark Horse (1932), uma secretária executiva de partido político. Uma jornalista, e das boas, em Miss Repórter/Front Page Woman (1935). Uma modista em Modas de 1934/Fashions of 1934.

Nunca soube disso, mas George Brent (nas duas fotos abaixo), o ator que interpreta o agente especial do título original, esse sujeito simpático, inteligente, que bola o mais incrível plano para apanhar o até então inapanhável mafioso Carston, foi o grande parceiro de Bette Davis nos anos 1930 e início dos 1940.

Fizeram nada menos que 11 filmes juntos. Mais que Katharine Hepburn e Spencer Tracy – os dois co-estrelaram “só” nove. Aqui vai a relação: No Palco da Vida (1932), Erros do Coração (1932), Dona de Casa (1934), Miss Repórter (1935), Nas Garras da Lei (1935), A Flecha de Ouro (1936), Jezebel (1938), Vitória Amarga (1939), Eu Soube Amar (1939), A Grande Mentira (1941) e Nascida para o Mal (1942).

Nascido em 1904, na Irlanda, George Brent foi casado seis vezes no papel – inclusive com a bela Ann Sheridan, durante exatamente um ano, 1942. Bette, por sua vez, foi casada quatro vezes. Ela e Brent, no entanto, encontram tempo para ser amantes, durante dois tempestuosos anos, segundo o IMDb. Eta nóis!

Um detalhinho: nos créditos iniciais deste Special Agent, vemos um close de cada um dos atores principais, com seus nomes e os nomes dos personagens. Não era – e nunca foi – algo usual nos créditos iniciais. Detalhinho do detalhinho: no close-up de Bette Davis, a primeira a aparecer, nós a vemos dando uma tragada em um cigarro. É incrível como Bette Davis fumava nos seus filmes, meu Deus…

O filme foi feito para agradar à agência de censura

Special Agent foi distribuído pela Warner Bros., o estúdio que tinha Bette Davis como sua contratada. Mas foi uma produção de uma empresa pequena, Cosmopolitan Productions. O produtor, Martin Mooney, foi o autor da idéia básica da história – roteirizada por Laird Doyle e Abem Finkel.

Não consegui achar muitas informações sobre esse Martin Mooney – até porque não dediquei muito tempo à pesquisa e há mais de um homônimo. Mostra o IMDb que ele foi produtor de 21 títulos e roteirista ou criador da história em 38 títulos. Parece que se dedicava bastante a tramas policiais.

E tinha talento. Os planos bolados por Bill Bradock para pegar o bandidão Carston são de uma criatividade, uma inteligência admiráveis.

Bem… Aqui eu chego a um dos pontos mais fascinantes deste filme – tão fascinante quanto a própria trama e a presença magnética de Bette Davis.

De uma certa forma, Special Agent foi um filme feito para agradar ao Hays Office.

Feito para agradar aos censores! À instituição criada para fiscalizar se os estúdios estavam obedecendo ao Código de Produção, o Código Hays.

O Código era um conjunto de normas de censura criado para aplacar a gritaria histérica das ligas das senhoras religiosas e dos políticos de direita que faziam “a defesa da família, dos bons costumes”, aquela ladainha de sempre, Foi adotado em 1930, e nos anos seguintes, especialmente a partir de 1934, tornou-se muito mais rígido ainda. Era contra cenas sensuais, contra temas como infidelidade conjugal, amantes, mães solteiras, aborto, homossexualidade. Não se podia mostrar a barriga de mulher grávida, nem cama de casal, mesmo se o casal fosse casadinho no papel.

Mas nem só de proibições sobre temas relacionados a sexo vivem os reacionários, os trogloditas, os que gostariam de voltar à Idade da Pedra – e então o Hays Office passou a se opor a que os filmes tratassem os bandidos como seres humanos, como pessoas quase normais, alegando que isso poderia despertar a simpatia do público para o crime.

A questão é que, exatamente naquele período, finalzinho dos anos 20 e início dos anos 30, quando o Código Hays começava a entrar em vigor, mas ainda não de uma forma muito rígida, os filmes de gângster eram um gênero que agradava demais às platéias.

“O filme de gângsteres surgiu como um gênero específico durante a Lei Seca (que vigorou entre 1920 e 1933) dos anos 20, época em que floresceram os bandidos”, diz The Film Book, de Ronald Bergan (a edição que eu tenho, luxuosa, é a mexicana, El Livro del Cine). “Foi em um ciclo de filmes de gângster da Warner Bros. que atingiram um novo realismo. Alguns se basearam em incidentes reais e valentões ainda vivos. Little Caesar (1931, no Brasil Alma no Lodo) de Mervyn LeRoy, retratou o surgimento de um chefe de quadrilha, tendo Al Capone como modelo. A última fala, ‘Mãe de Misericórdia, este é o final de Rico?’, dita pelo moribundo Edward G. Robinson, foi o princípio de uma onda de filmes de crime de Hollywood – em 1931 foram feitos 50 filmes de gângster. Little Caesar fez de Robinson um astro. James Cagney obteve o mesmo status com The Public Enemy (1931, no Brasil Inimigo Público) de William Wellman. (…) Houve protestos porque esses filmes tratavam os gângsteres com um certo glamour. Quando estreou Scarface (1932), de Howard Hawks, houve problemas com a censura. Tiveram que cortar cenas violentas e acrescentar o subtítulo ‘A Vergonha de uma Nação’.”

O Hays Office exigia que policiais mostrados como heróis

Em seu capítulo “Gangster”, o livro de Ronald Bergan prossegue:

“Em 1934, o puritano Código de Produção foi reforçado e estabeleceu que ‘o crime deve ser mostrado como algo mau, que a vida criminosa deveria ser odiada e que a lei prevaleceria em todos os momentos’. Os vilões não poderiam continuar sendo os protagonistas. No entanto, os filmes de gângster eram dos mais rentáveis de Hollywood. Desta forma, os estúdios mudaram para fazer dos policiais que faziam a lei prevalecer os heróis.”

É exatamente isso que Special Agent faz. O filme mostra ao respeitável público a) que o gângster é um danado de um fdp; b) que é muito difícil pegar o bandido e enquadrá-lo e condená-lo, mas dá, sim, para fazer, com c) o trabalho de heróis dedicados, inteligentes, simpáticos e bonitões como Bill Bradford-George Brent.

Não foi o único. Naquele mesmo ano de 1935, a Warner Bros, que havia produzido diversos dos grandes filmes de gângster a partir de 1931, lançou também ‘G’ Men, no Brasil Contra o Império do Crime, em que James Cagney, depois de interpretar gângsteres em diversos filmes, faz o papel de um homem do governo, um homem da lei.

O diretor de Contra o Império do Crime/’G’ Men é William Keighley – o mesmo deste Nas Garras da Lei/Special Agent aqui.

E aqui vale de fato a pena transcrever a fala de abertura do filme, o discurso contra o crime pronunciado pelo ator que interpreta o chefe do IRS, a receita federal do Tio Sam.

Lá vai boa parte da fala:

“Cavalheiros, como vocês sabem, a inabilidade dos governos locais de enfrentar o crime levou o Governo Federal a tomar medidas para proteger o povo americano. Nossa parte dessa tarefa é livrar o país do jogador, do fraudador de negócios, do aproveitador ilícito que está operando dentro e acima da lei. O Departamento do Tesouro, nos limites de suas funções, mandou vocês para reunir informações que nos permitirão usar a única arma que temos. A Lei do Imposto de Renda. Milhões de dólares de lucros ilícitos de empresas ilegais foram escondidos por esses bandidos dentro e fora da lei. Mas esse dinheiro escondido e que não paga imposto vai mandar esses homens para a cadeia. Vamos livrar o país desses homens que até agora riem da Lei. Vocês foram chamados aqui hoje para ouvir o seguinte: vão atrás deles. Peguem seus livros de contas e suas declarações, e não parem até que vocês tenham as provas. Estas são as minhas ordens. Esta é a vontade do secretário do Tesouro e a ordem do povo americano.”

Não é um discurso para o pessoal do Hays Office aplaudir de pé? Mas, diacho, é correto. Só não acha correto quem é bandido.

Nem todo esse esforço dos realizadores, no entanto, foi o suficiente para contentar os censores. Eis o que o livro The Films of Warner Bros. diz sobre Special Agent:

“Típico dos melodramas o-crime-não-compensa do estúdio, Special Agent foi estrelado por George Brent com um jornalista-agente disfarçado que é mandado para penetrar no sindicato do crime chefiado por Ricardo Cortez. Com uma ajuda da contadora de Cortez (Bette Davis), Brent consegue apanhar Cortez por não pagar imposto de renda. Ele pede a contadora em casamento. Ela diz sim e eles vivem felizes para sempre. Se você prestar bastante atenção, você vai reparar uma cena em que os lábios de Cortez se movem, mas nenhum som emerge de sua boca. Isso é porque o Hays Office determinou um corte que o supervisor Sam Bischoff sentiu que não poderia ser feito sem que se mergulhasse a história em uma grande confusão. Assim, chegou-se a um acordo retirando a fala ofensiva mas ao mesmo tempo mantendo a cena intacta.”

Isto era Hollywood nos anos do Código Hays.

Anotação em novembro de 2024

Nas Garras da Lei/Special Agent

De William Keighley, EUA, 1935

Com Bette Davis (Julie Gardner),

George Brent (Bill Bradford),

Ricardo Cortez (Alexander Carston, o mafioso),

Joseph Sawyer (Rich), Joseph Crehan (o chefe de polícia), Henry O’Neill (o promotor), Irving Pichel (o procurador-geral), Jack LaRue (Andrews), Robert Strange (Armitage, o dono do cassino), Joseph King (Wilson), William B. Davidson (Young), J. Carrol Naish (Durrell), Paul Guilfoyle (o secretário do procurador-geral), Robert Barrat (o chefe do Internal Revenue Department, a receita federal), Charles Middleton, Thomas Jackson, Jack Mower, Eddy Chandler, Eddie Hart (policiais), Herbert Skinner (Henry), Bob Montgomery, Huey White, Dutch Hendrian (gângsteres), Douglas Wood (juiz)

Roteiro Laird Doyle, Abem Finkel

Baseado em uma idéia de Martin Mooney

Fotografia Sid Hickox

Direção musical Leo F. Forbstein

Montagem Clarence Kolster

Direção de arte Esdras Hartley

Produção Martin Mooney, Cosmopolitan Productions. Distribuição Warner Bros.

P&B, 78 min (1h18)

**1/2

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