O Que Terá Acontecido a Baby Jane? / What Ever Happened to Baby Jane?

Nota: ★★★☆

(Disponível no Max e no YouTube  em 6/2024.)

O Que Terá Acontecido a Baby Jane?, que Robert Aldrich produziu e dirigiu em 1962, é uma daquelas obras-primas que parecem imunes à passagem do tempo. Estrelado por Bette Davis e Joan Crawford – duas das melhores, mais carismáticas, marcantes, importantes atrizes dos anos 1930, terríveis rivais na vida real – interpretando irmãs que são exatamente atrizes rivais daquela década, o filme não pára de inspirar novas produções.

Em 1991, teve uma refilmagem com exatamente o mesmo título, What Ever Happened no Baby Jane?, feita para a televisão britânica, com duas irmãs na vida real, ninguém menos que Vanessa e Lynn Redgrave. Em 2006 houve um documentário, Whatever Happened to Baby Jane: Bette and Joan: Blind Ambition. Houve ainda diversos episódios de séries e podcasts.

E, em 2017, foi lançada uma série de oito episódios sobre a rivalidade entre as duas grandes estrelas, antes, durante e depois das filmagens de Baby Jane. Nessa caprichadíssima, elogiadíssima, excepcional série Feud, Bette e Joan são interpretadas – como teria mesmo que ser – por duas atrizes de primeira grandeza, Susan Sarandon e Jessica Lange; Robert Aldrich é feito por Alfred Molina, encabeçando um elenco cheio de grandes nomes da Hollywood de hoje que interpretam grandes nomes da Hollywood dos anos 1960.

A ação do filme de Aldrich começa em 1917, dá uma passada por 1935 e se concentra no início dos anos 1960 – e, diabo, Baby Jane não perdeu absolutamente nada de suas qualidades ao longo destas mais de seis décadas. Visto agora, em 2024, não ficou datado, não envelheceu nada. A interpretação das duas estrelas salta faíscas de talento sem igual. É um filmaço.

Como tantos outros grandes filmes, no entanto, não chega a ser algo propriamente agradável, prazeroso de se ver – ou rever, como foi agora o nosso caso. É um brilho, é grande cinema – mas, diacho, mexe com a gente. Incomoda, angustia.

É duro demais. É muita crueldade, em doses maciças, elefantíacas, amazônicas, jupiterianas.

Baby Jane não tem monstros, fantasmas, almas penadas, não esbarra em nada sobrenatural – mas é um filme de terror.

E não há horror maior do que as coisas que as pessoas são capazes de fazer umas com as outras.

Em uns 12 minutos, vemos as irmãs crianças e jovens

O filme se baseia em romance homônimo lançado em 1960 por Henry Farrell, pseudônimo de Charles F. Myers, californiano nascido em 1920.       Pelo que dá para ver pelas sinopses do romance, o roteiro – de autoria de Lukas Heller – foi bastante fiel à sua fonte. Mas – e isso me parece um grande mérito do roteirista – abreviou bastante o início da narrativa, a parte em que as duas protagonistas, as irmãs Blanche e Jane Hudson, são crianças e depois jovens mulheres.

Usam-se não mais que uns 12 ou 15 dos 134 minutos de duração para mostrar a infância e a maturidade jovem de Blanche e Jane. E, nestes poucos minutos iniciais, o filme consegue informar para o espectador, com a mais absoluta clareza, os fatos básicos de suas vidas, e desenhar as características das personalidades das duas irmãs.

A sequência de abertura vem com o registro da data: 1917. Jane, a mais nova das irmãs, é uma grande estrela infantil do teatro de variedades; é lindinha, cabelinhos louros encaracolados, e canta e dança encantadoramente. A garotinha escolhida para o papel de Baby Jane ali aos 9 anos de idade, Julie Allred, é, obviamente, uma versão muito próxima de Shirley Temple, a mais famosa das atrizes mirins da Hollywood em seus anos mais dourados,

Há todo um gigantesco esquema de merchandising em torno da figura de Baby Jane. Vendem-se bonecas Baby Jane no hall do teatro – e a existência da boneca Baby Jane será importante ao longo de todo o filme.

Quem conduz os espetáculos de Baby Jane é o pai, Ray Hudson (Dave Willock). A mãe, Cora (Anne Barton), tenta proteger e consolar a primogênita, Blanche (Gina Gillespie), uma garota absolutamente ofuscada pelo brilho da irmã – e, obviamente, nada, nada contente com isso.

Fora do palco, na vida real – o filme mostra isso da forma mais clara possível, em uma única sequência –, Jane é uma criança chata, birrenta, insuportável.

Corta, e um novo letreiro informa que estamos em 1935.

Em uma sacada espertíssima do roteiro, os breves momentos passados em 1935 não mostram as irmãs – seria uma tarefa impossível achar atrizes na faixa dos 27, 29 anos, que pudessem fazer as personagens que logo em seguida veríamos nas peles de Bette Davis e Joan Crawford. O que vemos são um produtor e um diretor (interpretados respectivamente por Bert Freed e Wesley Addy, que conversam sobre as irmãs Blanche e Jane na sala de projeção de um estúdio.

Da conversa dos dois, o espectador fica sabendo o que havia acontecido nos 18 anos passados após aquela sequência de 1917. As duas irmãs haviam se tornado atrizes de cinema. E as posições haviam se invertido. Blanche era agora uma grande estrela, talentosa, elogiada pela crítica, endeusada pelo público. Jane (como tantos talentos infantis, em todas as áreas), no entanto, tinha perdido o encanto. Era uma péssima atriz, e além disso, como se fosse preciso mais desgraça, bebia demais.

Blanche havia estipulado nos contratos com o estúdio que, para cada filme seu, houvesse um filme com algum papel para a irmã.

O produtor achava isso um horror, queria convencer Blanche a se desgrudar daquele peso morto que era a irmã que na infância havia sido uma grande estrela.

Corta, e há uma sequência que mostra um acidente com um carro diante do portão de uma casa.

Um pé de mulher vai pesado no acelerador, em direção a um portão fechado.

Corta, e só então entram os créditos iniciais do filme.

Na imensa maior parte do filme, as irmãs estão velhas

Mary, que, como volta e meia gosta de dizer, não tem site sobre filmes – mas cada vez mais se revela uma observadora atenta, sagaz, muito mais cuidadosa que muito “crítico de cinema” – havia comentado, um ou dois minutos antes, que até então não havia tido créditos iniciais, e isso era algo muito raro nos filmes daquela época.

Sim, é bem isso mesmo. No início dos anos 60, era raríssimo essa coisa que agora é a regra de a ação começar, e avançar durante alguns minutos, antes de rolarem os créditos iniciais. O filme de Robert Aldrich foi à frente de seu tempo nesse detalhe: apenas depois do acidente de carro que define os rumos das vidas das irmãs Hudson é que vemos os créditos.

Quando eles terminam, há um terceiro letreiro para informar o quando. Já havíamos visto “1917”, “1935”, e agora vemos… “Ontem”.

“Ontem”! Que delícia de maneira de o filme nos dizer que agora estamos nos dias de hoje, ou seja, nos dias em que o filme foi feito, 1962.

Se em 1917 Jane Hudson tinha 9 anos de idade, então em 1962 ela estaria com 54.

(Diacho, será que essa conta está certa?)

“Ontem”, ou seja, nos “dias de hoje”, ou seja, em 1962, Bette Davis, que interpreta Jane já idosa, estava exatamente com 54 anos. Joan Crawford, que faz Blanche, um ou dois anos mais velha que Jane, estava com 56.

É um fenômeno. A Joan Crawford que interpreta Blanche parece, aos nossos olhos de hoje, estar com uns 60 e muitos. E a Bette Davis de 54 anos que faz Jane parece estar com 70 ou até mais!

Tudo bem – parte disso é por causa da maquiagem. Bette Davis está excessivamente maquiada para parecer bem mais velha, grotescamente mais velha. Mas em boa parte é porque, de fato, seis décadas atrás as mulheres na faixa dos 50 pareciam muito mais velhas. Hoje, as mulheres na faixa dos 50 são jovens, joviais, lindas, como as minhas duas filhas, a de sangue e a de coração. Naquele tempo distante em que minha mãe estava na faixa dos 50 anos, assim como Bette e Joan, as pessoas pareciam muito, muito, muito mais velhas.

Paraplégica, Blanche tem pouco contato com o mundo

Fugi um pouco da sinopse, do relato sobre o início da trama, mas não foi algo distante do ponto. Tem, sim, a ver com a essência do filme.

A essência do filme em si é que, nos “dias de hoje”, ali pelo início dos anos 1960, Blanche é uma paraplégica. Vive confinada no segundo andar da casa comprada pela família décadas antes, quando ela era uma grande estrela. Jane leva para ela as refeições – e, no resto do tempo, enche a cara com uísque e gim. Vivem com o dinheiro que Blanche ainda recebe pelos filmes que estrelou no passado, e agora passam na televisão.

A garotinha Blanche se sentia muito mal sendo a sombra da irmãzinha estrela. A velha Jane se sente horrorosa, terrivelmente mal sendo a sombra da irmã estrela do cinema como ela não foi.

Vamos ficando sabendo que o acidente de carro que vitimou Blanche é um tanto misterioso. Vazou na imprensa, na época, que as duas irmãs estavam voltando de uma festa; Blanche teria descido do carro para abrir o portão da casa, e então Jane teria metido o pé no acelerador e espremido as pernas da irmã com o pára-choque do carro no portão. O estúdio havia negado de pé junto essa versão, mas não havia apresentado nenhuma outra.

Isso acontecera – é bom insistir nesse ponto – ali por 1935. “Agora”, “nos dias de hoje”, naquele início dos anos 60, as pessoas em geral não se lembravam da existência de Jane Hudson, que havia brilhado como Baby Jane muitas décadas antes. As pessoas mais velhas se lembravam de Blanche Hudson, a grande estrela de filmes dos anos 30 que volta e meia passavam na televisão.

As irmãs tinham pouquíssimo contato com o mundo fora de sua casa. Jane era bastante ríspida com a vizinha do lado, Mrs. Bates (Anna Lee), que, aliás, era uma absoluta fã de Blanche.

Fora a irmã, a quem chamava com uma campainha, quando necessário, os únicos laços de Blanche com o mundo eram telefonemas para o seu médico de confiança, o dr. Shelby (Robert Cornthwaite), e as duas visitas semanais de Elvira (Maidie Norman, na foto abaixo), a diarista.

No primeiro encontro que vemos de Blanche com Elvira, fica claríssimo que a empregada gosta muito de Blanche e tem perfeita noção de como Jane tem traços nítidos de doença mental e está mergulhada no alcoolismo. Acha que Blanche deve pedir a ajuda do dr. Shelby para internar Jane – mas Blanche responde que a situação não é tão grave assim, e, além do mais, ela tem planos de vender a casa e se mudar para um lugar menor.

Blanche acredita que a irmã não sabe daqueles planos – mas ela sabe, sim. E, a cada dia que passa, Jane vai ficando mais e mais agressiva com a irmã.

Vai torturá-la como se fosse uma oficial da Gestapo, do Doi-Codi, do Dops, um Klaus Barbie, uma coronel Brilhante Ustra.

Na sequência final, haverá uma grande surpresa, uma reviravolta.

Duas grandes divas – das maiores do cinema

Pensei em fazer uma tabela (adoro tabelas…) com algumas informações básicas sobre essas duas imensas estrelas, essas divas da época de ouro de Hollywood que cultivaram, ao longo de décadas, uma imensa rivalidade, alimentada e realimentada por elas mesmas, pelos estúdios e pela imprensa. Lá vai.       

Bette Davis Joan Crawford
1908, Lowell, Massachusetts, EUA, a 1989, Neuilly-sur-Seine, França. 1906, San Antonio, Texas, a 1977, Nova York, NY.
Nascida Ruth Elizabeth Davis Nascida Lucille Fay LeSueur
4 casamentos, 3 filhos 4 casamentos, 4 filhos
124 títulos como atriz, entre 1931 e 1989 108 títulos como atriz, entre 1925 e 1972
10 indicações ao Oscar, 2 vitórias, por Perigosa (1935) e Jezebel (1938) 3 indicações ao Oscar, uma vitória por Alma em Suplício/Mildred Pierce (1945)
 

Marca registrada:

Intérprete de personagens femininas fortes; senso de humor irônico, mordaz.

 

Marca registrada:

Intérprete de mulheres que passaram por muito sofrimento; um senso glamoroso de moda e elegância.

 

“Ela provocou ‘viagens com solavancos’ a diretores, atores que contracenavam com ela e executivos dos estúdios, levando as audiências a um novo tipo de heroína das telas, tão durona quanto qualquer homem.” (Do livro Leading Ladies.)

 

“De melindrosas a mães abnegadas a diva de filmes de terror, ela manteve sua carreira por meio século graças à sua habilidade de mudar com o passar do tempo, mas fora das telas sua devoção pelo glamour de Hollywood e as demandas pelo estrelato nunca vacilaram.” (Idem)
“A mais influente estrela da América.” “Ela  a mulher que hoje vemos como característica da metade do século: dura, ambiciosa, competente, lacônica, e mesmo assim vulnerável, mantendo sua feminilidade mesmo competindo com os homens.” (Do livro Actors & Actresses.) “Ela sobreviveu por décadas na indústria como uma estrela maior, projetando uma dureza inata e um estilo aterrorizante que mascaravam o fato de que ela não era tão talentosa quanto Bette Davis, tão bela quanto Greta Garbo, tão sexy quanto Barbara Stanwyck ou tão misteriosa quanto Marlene Dietrich. (Do livro 501 Movie Stars.)
Alguns filmes:

Escravos do Desejo/Of Human Bondage (1934),

Mulher Marcada/Marked Woman (1937),

A Carta/The Letter (1940),

A Grande Mentira/The Great Lie (1941),

Nascida para o Mal/In This Our Life (1942),

A Estranha Passageira/Now, Voyager (1942),

A Rainha Tirana/The Virgin Queen (1955),

A Malvada/All About Eve (1950)

Alguns filmes:

Grand Hotel (1932),

O Pecado da Carne/Rain (1932),

Acordes do Coração/Humoresque (1946),

Fogueira da Paixão/Possessed (1947),

Êxtase de Amor/Daisy Kenyon (1947),

Caminho da Redenção/Flamingo Road (1949),

Os Desgraçados Não Choram/The Dammned Don’t Cry (1950),

Johnny Guitar (1954),

Almas Mortas/Strait-jacket (1964),

Elas negavam a feud – mas desciam a lenha uma na outra

Nas quatro páginas dedicadas a Joan Crawford no livro 501 Movie Stars, há um item bem interessante com o título “Joan vs. Bette”. Diz o livro:

“Uma possuía aparência e glamour, enquanto a outra tinha credenciais dramáticas e conquistou dez indicações ao Oscar. Quando Joan Crawford e Bette Davis se reuniram como as irmãs em guerra em What Ever Happened to Baby Jane? (1962), a ciumeira entre as duas gigantes de Hollywood era lendária. Mas Davis declarou que não havia nenhuma inimizade e que elas não eram concorrentes. A equipe de Baby Jane foi testemunha do profissionalismo educado delas no estúdio. Crawford disse que a idéia de uma inimizade era explorada para fazer propaganda. Mas nenhuma das atrizes se negava a falar da outra, e as duas mantinham o público entretido com comentários agressivos.”

E o livro transcreve exemplos dos comentários mordazes de uma sobre a outra. Eis alguns:

Bette: “Ela dormiu com todos os astros masculinos da MGM, menos Lassie”.

Joan: “Ela construiu a carreira em cima de maneirismos. Tire fora os olhos saltados, o cigarro, aquelas palavras engraçadas, e sobra o que? Ela é falsa. Mas acho que o público gosta disso.”

Joan foi casada com Alfred Steele, que foi presidente da Pepsi-Cola de 1949 até sua morte, em 1959. Ela própria foi uma das diretoras da companhia, até 1973. Pois não é que, durante as filmagens de Baby Jane, Bette Davis mandou instalar uma máquina de venda da Coca-Cola no estúdio?

Consta que Joan Crawford deu o troco colocando objetos pesados em seus bolsos nos momentos em que seriam filmadas as cenas em que Bette Davis tinha que carregá-la pelo chão!

Isso é que é “feud”!

Feud, como sabem os fãs de Bette e de Joan, é o título da série de 2017 sobre a rixa entre elas e as filmagens de Baby Jane. No trecho que transcrevi logo acima do livro 501 Movie Stars, a palavra é usada duas vezes, e eu traduzi como inimizade; o Dicionário Exitus ensina que “feud” (a pronúncia é fíud, não fóid, à la alemão) é “rixa, contenda, inimizade”.

(E aqui aproveito para acrescentar um PS, embora no meio do texto: Mary e eu decidimos rever agora Baby Jane – que tínhamos revisto juntos em 2003 – como preparação para assistir à série Feud, que nosso amigo Fred Navarro fazia questão de nos apresentar. Alguns dias depois de rever o filme e de eu ter escrito esta anotação foi que vimos, embasbacados, o primeiro dos oito episódios da série.)

Um grande realizador, bom em todos os gêneros

Robert Aldrich (1918-1983) é um dos grandes diretores de Hollywood que, creio, tem menos reconhecimento do que merece. É da estirpe de John Huston – um realizador que era bom em todo tipo de gênero. Fez filmes de ação, de aventura, de guerra, westerns, policiais. Fez de tudo.

Um ano antes de Baby Jane, havia dirigido um dos melhores westerns da História, na minha opinião, O Último Pôr do Sol, uma caprichada produção distribuída pela Universal com Rock Hudson, Kirk Douglas, Dorothy Malone, Carol Linley e Joseph Cotten.

Quando, em 2009, revi o filme que havia deixado maravilhado o adolescente Sérgio Vaz, escrevi:

“Acho que O Último Pôr do Sol não teve o reconhecimento que merece porque ele é um western, mas ao mesmo tempo é um grande melodrama de amor, com um toque de tragédia grega. Acabou então não agradando tanto nem aos fãs do western, nem aos fãs do melodrama, nem aos fãs da tragédia grega. De qualquer forma, é estranho – penso eu agora, sob o impacto de revê-lo após algumas décadas –, porque é um grande faroeste, um grande melodrama (Douglas Sirk, o rei do melodrama, teria assinado o filme, tenho certeza), uma grande tragédia grega. Bem, minha tese, hoje, é esta: a mistura de gêneros não deu certo. Pelo menos naquela época.”

Cinco anos depois de Baby Jane, 1967, fez o seu maior sucesso de bilheteria, Os Doze Condenados/The Dirty Dozen, uma mistura de ação, aventura e guerra: “Às vésperas do Dia D, um Major do Exército americano é designado para treinar uma unidade composta por 12 criminosos condenados para uma missão suicida por trás das linhas inimigas na França em troca do perdão pelos seus crimes”. O troço, que reunia um bando de atores que faziam o tipo machão, de Lee Marvin a Charles Bronson.

O Dicionário de Cinema – Os Diretores do mestre Jean Tular trata muitíssimo bem Robert Aldrich. Começa assim o longo verbete sobre ele: “Teve um começo estrondoso. Em três filmes, os gêneros caros a Hollywood voavam pelos ares. O que restou do western tradicional depois de Vera Cruz, confronto de três civilizações: a pirâmide asteca, o colonizador do segundo império e o caubói? O filme noir estava explodindo como a caixa de Pandora, disputada pelos protagonistas de A Morte num Beijo. Com relação a Morte Sem Glória, seria possível imaginar antes dele semelhante retrato de oficial moleirão e covarde? A reabilitação do índio estava esboçada em O Último Bravo e a crítica de Hollywood, em A Grande Chantagem, duas obras muito à frente de seu tempo.”

É. Ao contrário de tanta gente de narizinho empinado que diz odiar o “cinema americano”, os críticos e historiadores franceses sempre reconheceram a qualidade dos realizadores de Hollywood.

O filme reavivou as carreiras das duas estrelas

O CineBooks’ Motion Picture Guide não deu a nota máxima de 5 estrelas para o filme – deu apenas 4. Mas fez um lead (o primeiro parágrafo, no jargão dos jornalistas) brilhante, cheio de informações:

“Um soberbo filme de horror gótico que revitalizou as carreiras de Bette Davis e Joan Crawford e introduziu Victor Buono. O filme inspirou-se fortemente nas fitas das atrizes principais e deu a oportunidade de vermos clipes de filmes de Davis – Parachute Jumper (1933) e Ex-Lady – e de Crawford – Sadie McKee (1934),”

Sim, o espectador pode ver trechinhos desses filmes estrelados por Bette Davis e Joan Crawford em meados dos anos 30 – que entram perfeitamente na história como sendo fitas com as duas irmãs Hudson. É uma das grandes sacadas do roteiro escrito por Lukas Heller.

Os trechinhos de filmes com Bete Davis-Jane Hudson estão sendo vistos na sala de projeção do estúdio por um produtor e um diretor (os papéis de Bert Freed e Wesley Addy), em 1935. O produtor está reclamando da atuação péssima de Jane e do fato de sua irmã muitíssimo mais talentosa exigir que haja papéis para ela. Já o trechinho do filme com Joan Crawford-Blanche Hudson está passando na televisão, nos “dias de hoje”, início dos anos 1960 – e tanto Blanche quanto a vizinha Mrs. Bates estão assistindo.

Parachute Jumper no Brasil foi Em Plenas Nuvens. Ex-Lady, Amante de Seu Marido. Sadie McKee teve no Brasil o título de Três Amores.

Sim, o filme revitalizou as carreiras das duas divas. Elas estavam em um momento ruim, sem grandes projetos. Esse fato é extremamente realçado no primeiro episódio da série Feud, o único que vi até agora.

E, sim: Robert Aldrich fez seu Baby Jane bem ao estilo dos filmes dos anos 1930.

Victor Buono (na foto abaixo), citado no primeiro parágrafo do loooongo texto do CineBooks’ Motion Picture Guide, interpreta Edwin Flagg, um pianista antipaticíssimo, uma figura repelente, que atende a um anúncio de Jane nos classificados, pedindo um músico para acompanhar uma famosa artista em seu pretendido retorno aos palcos. Esse Edwin Flagg é um personagem importante na trama, tanto quanto a empregada Elvira e a vizinha Mrs. Bates.

Nos créditos iniciais apresentado abaixo da palavra “introducing”, Victor Buono (1938-1982), foi indicado ao Oscar de ator coadjuvante. Bette Davis teve uma de suas dez indicações ao prêmio de melhor atriz. O diretor de fotografia Ernest Haller foi indicado, assim como o responsável pelo som, Joseph D. Kelly. Das cinco indicações, só uma rendeu um Oscar – o de figurinos, para Norma Koch.

Um filme sobre o studio system feito fora dos grandes estúdios

Interessante, interessantíssimo: Baby Jane – um filme que tem o estilo dos filmes dos anos 1930, que mostra duas atrizes da época do sistema dos estúdios, interpretadas por duas das maiores estrelas da época do studio system – não foi produzido por um dos grandes estúdios de Hollywood. Foi feito de forma independente, pelo próprio Robert Aldrich. A Warner Bros. fez a distribuição, e deve ter ganho uma boa grana com isso.

O livro The Warner Bros. Story confirma a afirmação anterior ao mencionar, no verbete sobre What Ever Happened to Baby Jane?, que se formaram longas filas diante dos cinemas que exibiam o filme. Aproveito para citar um trecho do ótimo verbete do livro:

“Valendo-se astuciosamente das atuações das duas estrelas, que caricaturizaram as qualidades exageradas pelas quais cada uma delas era famosa, Aldrich impregnou seu filme com uma genuína sensação de terror que havia estado ausente das telas desde os dias dourados de James Whale nos anos 30.”

Sim. É importante falar disso. Os anos 1930, em que Bette Davis e Joan Crawford brilharam em dramas densos, foram também os anos áureos dos filmes de horror de Hollywood, com obras como Frankenstein (1931). A Noiva de Frankenstein (1933) e O Homem Invisível (1933), para citar apenas três dos clássicos do inglês James Whale.

E aqui volto ao começo desta anotação: os filmes de terror clássicos usavam duas vertentes, como diz o livro … Ismos – Para Entender o Cinema, de Ronald Bergan: “a dos monstros (vampiros, lobisomens, zumbis) e a dos fantasmas (geralmente envolvendo casas mal-assombradas)”.

Pois é. Baby Jane não tem monstros, fantasmas, almas penadas, não esbarra em nada sobrenatural – mas é um filme de terror.

E nisso – me ocorreu agora, neste momento em que escrevo – ele precedeu outros grandes filmes de terror psicológico, como Repulsa ao Sexo/Repulsion (1965) e O Inquilino/Le Locataire (1976), ambos de Roman Polanski.

Este seria um bom fecho para esta anotação que já está grande demais, até mesmo para os meus padrões – mas há ainda um ponto que é obrigatório mencionar.

O sucesso de público e crítica de Baby Jane fez com que os executivos da Warner Bros. pressionassem Robert Aldrich para dar um bis. A velha lei da indústria: se vendeu bem, agradou ao público, repete. Com a mesma equipe, igualzinho.

Joan Crawford não topou – mas Bette Davis, sim. E então, apenas dois anos depois de Baby Jane, Aldrich entregou ao respeitável público Hush… Hush, Sweet Charlotte, no Brasil Com a Maldade na Alma. O roteiro foi escrito pelo mesmo Lukas Heller e por Henry Farrell, o autor do romance Baby Jane e também da nova história. Que, a rigor, não era bem nova, e sim uma variação da anterior… “Uma velha e solitária beldade sulista, atormentada por um horrível segredo de família, enlouquece após a chegada de uma parente que havia sumido”, como diz a sinopse do IMDb. Na falta de Joan Crawford para interpretar a mulher que enfrenta a personagem de Bette Davis, o filme teve outra das gigantescas estrelas dos anos 30 e 40, Olivia de Havilland. Também no elenco estavam Joseph Cotten e Agnes Moorehead – que recebeu uma indicação ao Oscar de melhor atriz coadjuvante, uma das sete indicações do filme ao prêmio da Academia.

Preciso rever Hush… Hush, Sweet Charlotte. E, claro, ver Feud

Anotação em junho de 2024

O Que Terá Acontecido a Baby Jane? / What Ever Happened to Baby Jane?

De Robert Aldrich, EUA, 1962

Com Bette Davis (Jane Hudson),

Joan Crawford (Blanche Hudson)

e Victor Buono (Edwin Flagg, o pianista), Anna Lee (Mrs. Bates, a vizinha), Maidie Norman (Elvira Stitt, a empregada), Marjorie Bennett (Mrs. Della Flagg, a mãe do pianista), Dave Willock (Ray Hudson, o pai), Anne Barton (Cora Hudson, a mãe), Barbara D. Merrill  (Liza Bates, a filha da vizinha), Julie Alrred (Jane criança), Gina Gillespie (Blanche criança), Bert Freed (o produtor), Wesley Addy (o diretor), Debbie Burton (a voz nas canções), Robert Cornthwaite (dr. Shelby)

Roteiro Lukas Heller

Baseado no romance de Henry Farrell

Fotografia Ernest Haller

Música Frank De Vol

Montagem Michael Luciano

Direção de arte William Glasgow

Maquiagem Jack Obringer, Monte Westmore

Coreografia Alex Romero

Figurinos Norma Koch

No Amazon Prime Video. Produção Robert Aldrich, The Associates & Aldrich Company, distribuição Warner Bros.

P&B, 134 min (2h14)

30/5/2024, com Marynha.

R, ****

6 Comentários para “O Que Terá Acontecido a Baby Jane? / What Ever Happened to Baby Jane?”

  1. É isso aí, caro Sergio, parabéns. Melhor resumo da ópera do que este, só vendo a ópera inteira. Só faltou mencionar três filmes excepcionais dele, feitos em sequência: “Resgate de uma vida” (The Grissom gang, 1971); “A vingança de Ulzana” (Ulzana’s raid, 1972); e “O imperador do norte” (Emperor of the North Pole, 1973). Quando quiser, apareça para ver os outros episódios de “Feud”.

  2. O filme lembra um pouco o estupendo ”Crepúsculo dos Deuses”, mas não é espetacular quanto, só foi feito na época devido ao sucesso de ”Psicose”, mas também não é brilhante como o filme de Hitchcock, começa meio lento, mas de cara da pra ver que as lendárias atrizes vão fazer bonito, o tom gótico é excelente devido a belíssima fotografia de Ernest Haller, ganhador do Oscar por ”…E o Vento Levou”.
    As duas atrizes Bette Davis e Joan Crawford, dão show, a primeira chega assustar na caracterização, só uma pessoa muito ciente de si, dona de si, muito espirituosa num mundo da fama, onde a vaidade vem em primeiro lugar acima de tudo e de praticamente de todos, poderia fazer aquilo (alguns podem achar um exagero, mas não é, quantas vezes vi no centro da cidade de São Paulo, pessoas acima dos quarenta anos vestindo roupas que não condizem com idade, mas o cérebro devido as drogas ou alguma outra coisa na vida, fizeram elas fugirem da realidade e viverem como se fossem algum personagem da série ”The Walking Dead”), Joan em contraponto vai mais para o lado contido da coisa (o que é perfeito para sua personagem), não da para entender por que na época a crítica pegou tão pesado com ela, e não indicou ela como atriz também ao Oscar de Melhor Atriz, a vencedora daquele ano foi Anne Bancroft, está para variar está excelente em ”O Milagre de Anne Sullivan”, na minha humilde opinião outra lendária atriz Katharine Hepburn, tem ali, até então sua melhor atuação em ”Longa Jornada Noite Adentro”, mas Geraldine Page (uma atriz que eu sou fã), está numa adaptação chata e over demais, tudo em ”Doce Pássaro da Juventude”, pela qual também foi indicada é um exagero, aliás apesar do elenco ser ótimo, a melhor coisa dele é mesmo a Page; Lee Remick, a quinta indicada teve seu segundo melhor papel de toda sua vida, só para notar como essa categoria estava acirrada, já faz a gente pensar que merda aconteceu nesse século, por exemplo nesse penúltimo Oscar tinham grandes atrizes, mas em filmes bem fraquinhos, tirando a Cate Blanchett, em ”Tár”, uma intepretação cheia de delicadezas, cheia de detalhes e inflexões, era do nível de 63, mas voltando ao ano de 63, ainda ficaram de fora interpretações radiantes da pungente Irene Papas por ”Electra, a Vingadora”, e Anna Magnani, por ”Mamma Roma”, só posso acreditar que está faltando bons roteiristas, mas acho que a Joan merecia ficar no lugar da Page, e a Bette deveria ter levado o prêmio, embora a Anne esteja na altura da Davis.

    Dava para perceber, quando Blanche Hudson, que quando jovem, é feita pela garotinha ”Gina Gillespie”, já revela no seu rosto o ódio, o ciúmes, da irmã tentando disfarçar, quando a mãe fala com ela sobre o jeito mandão da irmã, mas eu só notei no final, sinal que o filme é ótimo.

    E os coadjuvantes do filme com exceção da emprega feita pela ótima ”Marjorie Bennett”, são uns verdadeiros lesados, duas vizinhas tapadas, e o personagem do Victor Buono, um gigante tonto, que vê o que está acontecendo com Blanche, e sai correndo numa tontura sem fim, minha vontade era que a Bette Davis, desse uma de Nazaré, e jogasse ele pela escada abaixo, teria ficado bem mais interessante e adequado a um filme de terror.

    Só uma curiosidade vi a muito tempo no canal E!, a filha da Bette Davis, que faz a vizinha jovem, dizer que ouviu da própria mãe, que falou que queria ser atriz depois do filme, dizer – mas você não tem talento nenhum para isso, nem de livro você gosta, depois disso não queria que a filha escrevesse um livro sobre ela, rsrs.

    PS: É muita crueldade, em doses maciças, elefantíacas, amazônicas, jupiterianas. ”Adorei esse seu comentário”. rsrs

  3. Que maravilha seu comentário, Billy! Muito obrigado por melhorar – e muito – este meu humilde site!
    Um grande abraço.
    Sérgio

  4. Que texto soberbo.

    Eu acho esse filme extremamente agradável, prazeroso de se ver – ou rever, inclusive acho que deveria abrir uma exceção e dar 5 estrelas para ele.

    Na verdade, a marca registrada de Joan era usar o sutiã de Bette como ombreiras. Ah… https://youtu.be/xuZvf_VKZDg

    Gosto muito desse filme e fico encantada que Bette perdeu o Oscar para um outro desempenho fenomenal da maravilhosa Anne Bancroft (que não foi receber o prêmio, quem subiu ao palco foi… Joan Crawford, hehehehehehehehe). Como foi citado acima, Cate Blanchett estava maravilhosa em “Tár”, mas não existem mais combates duros como os de antigamente. Mas acho que o Oscar foi para as mãos certas, assim tanto Anne como Bette como Joan foram premiadas.
    Normalmente sou sucinta (não tenho talento para a escrita), mas esse é um dos filmes da minha vida. Minha mãe assistiu no cinema, quando era brotinho, e, quando eu tinha uns 15 anos e estava assistindo pela primeira vez (passou no SBT, creio que no Cine Belas Artes) ela olhou para a tela e se lembrava de tudo. Depois, assistimos juntas. E acabou assistindo várias e várias vezes comigo depois, afinal se tornou um dos meus filmes favoritos. Você me fez lembrar de um momento feliz que tivemos juntas. Agora que ela já não está aqui, e vivo de lembranças, só tenho a agradecer a você pelo meu sorriso dominical ao lembrar-me desse dia.

  5. Senhorita! Miracolo de San Gennaro! Você escreveu mais do que duas frases! Nunca jamais em toda a minha vida achei que um dia isso ´poderia acontecer!
    Agora, pelo amor de Deus, moça: você está muitíssimo enganada. Você tem, sim, talento para a escrita.
    Um grande abraço, e obrigado.
    Sérgio

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