Caminho da Redenção / Flamingo Road

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Nota: ★★☆☆

Em 1949, Michael Curtiz e Joan Crawford, dois nomes de ouro que haviam feito juntos Mildred Pierce (1945), se reuniram novamente em Flamingo Road, no Brasil Caminho da Redenção.

Foi mesmo ano de A Grande Ilusão/All the King’s Men, de Robert Rossen, que se tornaria o grande clássico do cinema político americano. Exatamente como All the King’s Men, Flamingo Road fala de política, políticos, ambição e corrupção – temas que, infelizmente, parecem vir sempre juntos, ao longo da História. O filme de Robert Rossen é grande. O outro não é.

Na minha opinião, a culpa não é nem de Michael Curtiz, nem de Joan Crawford. O filme é muito bem dirigido, e a estrela da grande atriz brilha. O problema é da história, do roteiro. É uma história fraca, cheia de furos, de problemas. É pretensiosa, pretende englobar ao mesmo tempo a política & a corrupção e também romance, amor, amor de perdição, diferenças de classes, preconceitos sociais. Acaba se revelando simplista, simplória, povoada por estereótipos – e algumas incongruências.

O autor da história é Robert Wilder (1901-1974), novelista, dramaturgo e roteirista, autor, por exemplo, do roteiro de Da Terra Nascem os Homens/The Big Country (1958) e da novela que deu origem a Palavras ao Vento/Written in the Wind. Flamingo Road foi sua segunda novela, publicada em 1942; depois, ele e sua mulher Sally a transformaram numa peça de teatro. Os créditos iniciais dizem que o roteiro é de Robert Wilder, baseado na peça dele e de Sally Wilder, com diálogos adicionais escritos por Edmund North.

Apesar de, na minha opinião, a história contada no filme ser fraca, ela daria origem, em 1980, a uma série de TV, com o mesmo nome do livro e do filme original, Flamingo Road.

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Lane, a personagem de Joan Crawford, abandona a vida de dançarina

Na série de TV, a ação se passa numa pequena cidade da Flórida. No filme, tudo acontece numa cidade imaginária, chamada Boulton, de um Estado imaginário. Dá para perceber apenas que é um Estado do Sul dos Estados Unidos, o Sul mais rural, menos desenvolvido, mais atrasado.

A narrativa abre com a voz de Joan Crawford em off, falando um texto um tanto rebuscado e antigo sobre a distância entre ricos e pobres, sendo que os ricos ficam sempre na Flamingo Road que há em todas as cidades, enquanto ela, a narradora, estava do outro lado dos trilhos.

E então vemos uma dessas feiras de diversão que se instalam em cidades do interior, com diversas barracas, pequenos espaços circenses, cada uma com sua atração. A que nos interessa é um pequeno circo-teatro em que se apresentam três dançarinas. Uma delas é a protagonista da história, a personagem interpretada por Joan Crawford, Lane Bellamy.

O dono daquela tenda, daquele circo-teatro de dançarinas, está devendo dinheiro a investidores. Um deles vai cobrar a dívida, faz ameças – e o pequeno empresário do ramo de entretenimento dá no pé, foge dali.

zzflamingo3-550O xerife da cidade, Titus Semple (o papel de Sydney Greenstreet, o ator gordão especializado em fazer tipos ruins, sem caráter, de Casablanca e Relíquia Macabra), manda seu assistente ir até o lugar da feira para expulsar o circo-teatro inadimplente. O assistente, Fielding Carlisle (o papel de Zachary Scott), vai até lá. O empresário havia fugido com duas de suas dançarinas, mas deixara para três todas as suas tendas, e uma das moças – Lane Bellamy-Joan Crawford, é claro, a razão de haver a história.

A sequência em que pela primeira vez Carlisle vê Lane é, para ser generoso, bastante ridícula.

Lane está semi deitada em uma espécie de poltrona abandonada embaixo da tenda abandonada. Está de saia, com os joelhos para cima, e as pernas à mostra até os joelhos. Era para ser uma pose sensual, mas, raios, o que é exatamente que aquela mulher, aquela senhora está fazendo ali?

Claro, Joan Crawford estava ali esperando a chegada de Zachary Scott e o início da trama. Mas o que Lane Bellamy estaria fazendo?

Ela diz para o assistente do xerife que se cansou de fugir, de andar de cidade em cidade naquele show pobre de tenda de circo-teatro, e resolveu ficar ali. Para fazer o quê? Viver de quê?, pergunta o assistente de xerife. Ela diz que vai ver, vai resolver.

E então ele a convida para jantar. Vão jantar num restaurante simplesinho da cidade, onde Carlisle é super conhecido. Tão conhecido que ele já encaminha ao dono do lugar um pedido para empregar a recém-chegada à cidade, e pronto, a ex-dançarina já tem emprego garantido a partir do dia seguinte, e a outra garçonete, Millie (Gertrude Michael), já a convida para dividir uma casa.

A ex-dançarina atrai o ódio de um xerife corrupto e o amor de um chefão político corrupto

Acontece que Carlisle namora Annabelle Weldon (Virginia Huson), filha do homem mais rico do lugar. Acontece também que o xerife Titus Semple é um chefãozão da política local, manda em tudo, e decidiu que seu assistente Carlisle será eleito senador estadual no pleito seguinte.

O xerife é mau como um vilão de história em quadrinhos, como o Coringa do Batman, e é corrupto como nunca tinha havido ninguém assim até 1949, e maquiavélico, e sabia que Carlisle é um sujeito fraco, frouxo, e que ele, xerife, faria dele o que bem entendesse, para seu próprio bem.

E o xerife sabe que, casado com a filha de um milionário, Carlisle seria um candidato palatável.

Então, ao perceber que Carlisle não quer saber da namorada filha de milionário porque está muito mais interessado na ex-dançarina de show de décima categoria, agora garçonete no restaurante simples da cidade, torna-se inimigo figadal desde criancinha de Lane Bellamy, e faz com ela todo tipo de sacanagem possível e imaginável, inclusive prendê-la sob acusação de prostituição.

Mas aí acontece de Lane Bellamy conquistar inapelavelmente outro chefão político do lugar, do mesmo grupo do xerife, só que muito mais poderoso que ele, Dan Reynolds (David Brian), um empresário tão rico quanto corrupto.

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O filme mostra a política e os políticos de uma forma pueril

Vejo aí dois problemas graves, entre outros menores. O primeiro é que o roteiro do filme parece ter sido escrito por alguém que não entende absolutamente coisa alguma de política. Tudo que se relaciona a política no filme é contado como se fosse por gente que é ignorante do assunto, que é inocente, que não compreende sutilezas, que acha que todos os políticos são iguais.

É absolutamente patética a inexistência – mostrada pelo filme – de eleitor inteligente, ou com um mínimo de informações. Todos, absolutamente todos os eleitores são ignorantes, imbecis, e votam feito carneirinhos naqueles em que os chefões políticos locais mandam votar.

É uma visão pobre, patética, desesperadoramente infantil.

O segundo problema grave é o seguinte: como se explica que Lane Bellamy passou a vida inteira dançando naquele circo, naquele carnival, não sendo notada por absolutamente ninguém, e aí, de repente, na pequena cidade de Boulton, do nada, pela primeira vez na vida, tem sua estonteante beleza, seu fulgurante magnetismo pessoal reconhecido por um assistente de xerife que de uma hora para outra vira senador, e logo em seguida também pelo chefãozão politico estadual que já tinha longa quilometragem de comer belas mulheres?

Joan Crawford é uma atriz fascinante, tem um grande magnetismo

zzflamingo2Mais do que para denunciar a corrupção dos políticos, Flamingo Road é um filme feito obviamente para fazer brilhar ainda mais sua grande estrela. E Joan Crawford era uma das maiores de Hollywood, ao longo dos anos 1930 e 1940. Especialmente nos 1940. Como diz a Baseline, respeitável base de dados sobre cinema, “em 1942 Crawford deixou a MGM e sua carreira teve uma grande melhoria depois que assinou com a Warner Bros no ano seguinte. Em vários melodramas e filmes noir da Warner Bros, uma nova persona de Crawford emergiu: inteligente, muitas vezes neurótica, poderosa e às vezes impiedosa, mas também vulnerável e dependente. Papéis memoráveis em Mildred Pierce (1945), Humoresque (1946) e Possessed (1947) restauraram e consolidaram sua popularidade. Em seus nome filmes noir para a Warner Bros e outros estúdios, assim como na maioria de seus trabalhos em obras não noir (como Harriet Craig, de 1950), Crawford teve interpretações inteligentes e completamente bem realizadas.”

(Mildred Pierce no Brasil é Alma em Suplício. Humoresque, Acordes do Coração. Possessed, Fogueira de Paixões. E Harriet Craig, A Dominadora.)

Perfeito. Joan Crawford é de fato uma atriz fascinante e uma estrela gigantesca. As câmaras a adoravam. Neste segundo filme em que é dirigida pelo grande Michael Curtiz, o mago que fez, entre muitos outros bons filmes, As Aventuras de Robin Hood (1938), Casablanca (1942) e exatamente o fantástico Almas em Suplício/Mildred Pierce (1945), ela está forte, poderosa, incrível.

Mas…

Pois é. Mas, se a personagem que a atriz interpretava, essa Lane Bellamy, era tão fantástica assim, quando chegou a Boulton, cidade fictícia de Estado fictício, por que raios tinha passado a vida inteira sem ter sua beleza, sua presença forte, seu magnetismo inebriante notado por ninguém?

A soma dessa imensa falha com a forma pueril de se mostrar a política me fez não gostar nada de Flamingo Road.

“O papel era por demais mal definido, sem plausibilidade”

Leonard Maltin, o autor do guia de filmes mais vendido do mundo, deu 3 estrelas em 4:

“Crawford está excelente como dura dançarina de carnival deixada numa pequena cidade onde ela depressa está amando Scott e Brian e em luta de inteligências com o político corrupto Greenstreet. Refeito como filme para a TV em 1980 e como série de TV a seguir.”

Ai, ai. Ao selecionar os filmes para a edição brasileira do livro de Pauline Kael, Sérgio Augusto deixou de lado o que a dama mais cricri da crítica americana fala sobre o filme, e então sobra para mim a tarefa de traduzir o texto dela, tão cheio de sarcasmos quanto de palavras pouco comuns:

“A suprema masoquista das telas – Joan Crawford – de novo. Desta vez, ela é uma carnival hootchy-hooktchy dançarina perdida numa cidade pequena; envolve-se com um fraco – Zachary Scott, o mesmo que a havia traído em Mildred Pierce – e ela de novo fica implicada em assassinato, e com o mesmo diretor, Michael Curtiz, e o mesmo produtor, Jerry Wald. Mas o roteiro sente falta dos James M. Cainismos míticos, exagerados, do filme anterior. A escolha errada e ostentativa de Sydney Greenstreet como o xerife dá ao filme um charme brega; ele é um vilão malvado, que persegue a brava, sofredora heroína – armando armadilhas contra ela, expulsando-a da cidade, forçando que ela vá presa. David Brian é o chefão político local que se apaixona por ela; ele parece não ver o que nós vemos – que ela é monstruosa.”

Cada vez mais acho Dame Pauline Kael uma chata de galocha. Muito do que ela diz aí é corretíssimo, mas no principal discordo dela completamente. A pobre protagonista não é monstruosa, de forma alguma. Não é uma nojenta alpinista social. Na minha opinião, ela se apaixona por Fielding Carlisle porque ele foi o primeiro homem que se encantou com ela pelo que ela é. E não ficou com Dan Reynolds porque ele era rico e poderoso, e sim porque ele a tratou bem.

O problema é anterior: é aquilo que falei antes. Como é possível que essa mulher poderosíssima, foderosíssima, fascinante, tivesse passado mais de 40 anos sem ser notada por ninguém?

História ruim. História que não se sustenta.

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O livro The Warner Bros. Story parece concordar comigo. Eis o que ele diz:

“Embora os dois tenham feito muito esforço, havia muito pouco o que Joan Crawford ou seu diretor Michael Curtiz pudessem fazer com o material oferecido por Flamingo Road, uma história sobre corrupção política em uma pequena cidade do Sul. Mais uma vez fazendo uma mulher de origens modestas (desta vez uma dançarina de feira de interior) que luta para chegar ao topo da escala social, Crawford fez de tudo para tentar levar alguma verossimilhança dramática aos procedimentos – mas não conseguiu. O papel era por demais mal definido, sem plausibilidade, e foi deixado para Sydney Greenstreet, em um retrato de genuína malignidade como o chefão totalmente corrupto da cidade furtar qualquer honra de atuação que pudesse haver. O não trabalhável roteiro foi de Robert Wilder (de uma história dele e Sally Wilder).”

É isso aí mesmo.

Anotação em junho de 2016

Caminho da Redenção/Flamingo Road

De Michael Curtiz, EUA, 1949

Com Joan Crawford (Lane Bellamy)

e Zachary Scott (Fielding Carlisle), Sydney Greenstreet (xerife Titus Semple), David Brian (Dan Reynolds), Gladys George (Lute-Mae Sanders), Virginia Huston (Annabelle Weldon), Fred Clark (Doc Waterson), Gertrude Michael (Millie), Alice White (Gracie), Sam McDaniel (Boatright), Tito Vuolo (Pete Ladas), Tristram Coffin (Ed Parker), Dale Robertson (Tunis Simms), Iris Adrian (Blanche)

Roteiro Robert Wilder, com diálogos adicionais de Edmund North

Baseado na peça de Robert Wilder e Sally Wilder

Fotografia Ted McCord

Música Max Steiner

Montagem Folmar Blangsted

Direção de arte Leo K. Kuter

Produção Jerry Wald, Warner Bros.

P&B, 94 min

**

5 Comentários para “Caminho da Redenção / Flamingo Road”

  1. “A Sra. Crawford sempre foi invejosa da aparência voluptuosa de Bette Davis. De fato, Joan costuma pedir emprestados os sutiãs de Bette para usar como ombreiras”
    Price, Vincent

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