Nota:
Almas Mortas, no original Strait-jacket, ou camisa de força, não é um belo ou um grande filme – mas é marcante. Tem estilo. Não é um estilo elegante, de forma alguma, mas é poderoso. Registra o encontro de duas personalidades fortes: Joan Crawford e William Castle.
Uma grande estrela, das maiores que Hollywood teve; uma figura carismática, de grande magnetismo. Um produtor e diretor que criou um estilo todo seu de filmes de terror.
A abertura de Almas Mortas é extraordinária, espetacular, no sentido mais literal desses adjetivos.
O filme é de 1964. Naquela época, ainda não era muito comum o uso de prólogos – seqüências apresentadas antes dos créditos iniciais. Almas Mortas tem um prólogo. Meu – e que prólogo.
O logotipo da Columbia Pictures. Em seguida, gritos de terror, enquanto na tela – em preto-e-branco, é claro – vemos flashes claros sobre o fundo negro.
Uma foto gigantesca do rosto de Joan Crawford na capa de um jornal. É um close-up do rosto forte da estrela num momento em que ela parece estar gritando; a fisionomia impressiona. A voz em off de um homem como que vendendo o jornal, aos berros: “Extra, extra! Lucy Harbin insana. Leiam tudo sobre o caso!”
Entra então uma voz feminina doce, suave, pausada. Os cinéfilos que viram muitos filmes americanos do começo dos anos 60 podem facilmente reconhecer a voz de Diane Baker, atriz de beleza impressionante que – uma pena – teve poucos papéis importantes na carreira.
– “Lucy Harbin foi declarada legalmente insana hoje.”
Entra uma música pop alta, enquanto vemos um disco girando num jukebox em um bar do interiorzão bravo.
– “Tudo começou numa noite quentíssima de um sábado”, prossegue a voz suave. E ela vai contando a história enquanto vamos vendo o que ela descreve.
– “O marido de Lucy, Frank Harbin, tinha ido a um bar junto da estrada, para encontrar uma antiga namorada, Stella Fulton.”
Vemos Frank (Lee Yeary), um garotão boa pinta, bebendo e rindo com Stella (Patricia Crest), bela e jovem morena.
A voz suave em off vai nos dando os fatos. Lucy era sete anos mais velha que seu marido Frank. Tinha sido casada antes com um homem bem mais idoso do que ela, um fazendeiro; o primeiro marido havia morrido; Lucy, criada em fazenda, pouco educada, possuía alguns bens, e então se casou com um garotão bem mais jovem. Estava feliz da vida com isso.
Naquele sábado à noite, Lucy tinha viajado, iria voltar só no dia seguinte. E então Frank aproveitou para se encontrar com a ex-namorada. Levou-a para casa. Passaram pela sala, em que a filha de Lucy, Carol (Vicki Cos), de 3 anos, deveria estar dormindo, e entraram no quarto, sem se preocupar em fechar a porta.
– “O primeiro erro deles foi pensar que a criança estava dormindo”, diz a voz em off, enquanto vemos o rosto da garotinha, olhos bem abertos.
– “Eles cometeram um outro erro também. Lucy Harbin, a esposa de Frank, havia decidido voltar para casa no trem daquela noite” – e então a câmara focaliza uma Joan Crawford trabalhada para parecer bem mais nova, poderosa, num vestido estampado, espantado de tanta estampa.
E a voz a descreve: – “Very much a woman, e very much aware of the fact”. Perde-se muito na tradução, que teria que fugir um pouco do literal para ter sentido: um mulherão, e plenamente consciente disso.
Uma abertura impressionante, literalmente de tirar o fôlego
Pela janela do quarto, Lucy vê o marido deitado na sua própria cama com a garota.
Em primeiro plano, há um grande machado, enfiado em um tronco de árvore.
Lucy pega o machado, passa pela sala em que a filha está acordada – e executa o marido infiel e sua amante a machadadas.
Estamos com uns 4 minutos de filme – e só então entram os créditos iniciais.
Enquanto rolam os créditos iniciais, passam-se 20 anos. E vemos então a filha da assassina com 23 anos – Carol Harbin agora está na pele de Diane Baker. Ela mesma, a narradora da história.
Carol está naquele momento contando para o namorado a triste história de sua mãe – a mãe que ela viu assassinar duas pessoas com um machado.
A garota havia sido criada por um casal de tios. E naquele dia – o dia mostrado na ação assim que terminam os créditos iniciais –, depois de cumprir pena de 20 anos em um manicômio judiciário, Lucy Harbin está sendo solta. Vai voltar para a casa – e aí Joan Crawford, então beirando os 60 anos, surge maquiada para parecer mais velha do que era –, e reencontrar a filha.
É uma abertura literalmente de tirar o fôlego. É impressionante.
Almas Mortas tem 93 minutos. A abertura e os créditos iniciais duram menos de 10. Ao longo dos mais de 83 minutos seguintes, o espectador verá novas mortes. Mas…
Bem, aí já seria spoiler.
O estilo cru, feio, sujo de William Castle influenciou muita gente que viria depois
Disse lá em cima que o estilo de William Castle (1914-1977) não é elegante. Agora insisto nisso: não, não é. Absolutamente, não é. É um estilo forte, marcante. É ousadamente cru, feio, sujo. Beirando o apelativo – ou ultrapassando bem a barreira do apelativo. Kitsch. Ou talvez camp, como se diz em inglês.
Vejo a definição na Wikipedia: “Camp é uma sensibilidade estética que vê algo como atraente ou cômico por causa de seu ridículo. A estética camp desfaz muitas noções modernistas sobre o que a arte é e o que pode ser classificado de arte por inverter os atributos estéticos tais como beleza, valor e gosto através de um convite a uma forma diferente de percepção.”
Não sei quando surgiu esse conceito de camp, mas ousaria dizer que os filmes de William Castle ajudaram a criá-lo.
E ousaria também dizer que essa estética feia, suja, apelativa, kitsch, camp do diretor influenciou bastante as novas gerações de diretores americanos que fazem filmes de terror sanguinário, de terrir (tão ridículos que provocam mais gargalhada do que medo), os slasher movies, todo esse tipo de coisa muito apreciada por adolescentes de todas as idades. Filmes como, por exemplo, Tamara (2005) ou Garota Infernal/Jennifer’s Body (2009).
Não creio que William Castle teria muito orgulho desses filmes para adolescentes que vieram depois dele. Nem quero dizer que ele tenha culpa pelo fato de se fazerem tantos filmes idiotas desse tipo, nas últimas décadas. Às vezes obras feitas com as melhores intenções (e com talento) abrem caminho para muita porcaria. Há quem diga, por exemplo, que a primeira trilogia de Guerra nas Estrelas de George Lucas e os filmes da série Indiana Jones de Steven Spielberg – todos eles belas, deliciosos obras – ajudaram o cinemão americano a ficar menos adulto, mais adolescente, mais bobo.
Para que o eventual leitor que tenha chegado até aqui não seja levado a crer que Castle foi uma porcaria, basta lembrar que ele produziu O Bebê de Rosemary, de Roman Polanski (1968), um dos filmes de terror mais brilhantes, elegantes, requintados da História do cinema.
Joan Crawford e Bette Davis fizeram bons filmes de terror nos ano 60
No verbete sobre Castle em seu Dicionário de Cinema – Os Diretores, o mestre francês Jean Tulard realça o fato de ele ter sido um excelente marqueteiro de si próprio e de sua obra. Nesse aspecto, portanto, William Castle se aproxima de Alfred Hitchcock e de Federico Fellini, os dois maiores marqueteiros de si próprio que o cinema já teve. Diz Tulard:
“Especialista em terror barato. Para que os espectadores sentissem realmente medo, mandou instalar poltronas vibratórias nas salas onde se estava projetando Força Diabólica. Com Macabro, ele segurava seus espectadorews através da Lloyd’s of London em caso de morte subida causada pelo pavor provocado pelo filme. Não havia riscos! Mas tornou-se objeto, assim como outros pequenos mestres americanos dos anos 60, de um verdadeiro culto. Seu melhor filme ainda é A Casa dos Maus Espíritos.”
Castle produziu e dirigiu filmes entre 1943 e 1974.
O terror teve sua época dourada em Hollywood nos anos 30, com os grandes filmes sobre Frankenstein, Drácula, múmias, que deram extraordinária fama mundial a Bela Lugosi e Boris Karloff. Nos anos 50, cultivou-se o terror dos chamados filmes B, os de produção barata. Um subgênero especialmente prolífico nos anos 50 foi o dos alienígenas e monstros que invadiam a Terra, ou mais precisamente as cidades americanas – uma óbvia referência à ameaça de uma invasão do país pelos soviéticos. A ameaça, claro, só existia na cabeça paranóica de parte da sociedade americana, mas os filmes de terror da época souberam explorar perfeitamente essa paranóia.
Nos anos 60 – exatamente a época em que este Almas Mortas foi produzido –, os filmes de terror não estavam muito na moda. Mas houve alguns marcantes, e Joan Crawford e Bette Davis, grandes divas dos anos 30 e 40, então sexagenárias, estiveram presentes em vários deles. Só para lembrar de alguns: O que Aconteceu com Baby Jane, de Robert Aldrich, reunindo Joan e Bette (1962); Eu Vi que Foi Você, de novo de William Castle, com Joan (1965); Espetáculo de Sangue, de Jim O’Connolly, com Joan (1967); Com a Maldade na Alma, de Robert Aldrich novamente, com Bette e Olivia de Havilland (1964).
Para quem gosta do gênero, Almas Mortas é um filme fascinante
Diz o livro The Columbia Story: “A heroína de Strait Jacket era uma assassina com um machado. Um personagem assim era massa perfeita nas mãos de Joan Crawford, e ela a amassou com todo o entusiasmo que podia. A história do pequeno, chocante e vulgar filme, escrita por Robert Bloch (o mesmo autor de Psicose), começava com Miss Crawford administrando 40 golpes em cada uma das vítimas, o marido e sua amante.” No verbete sobre o filme, The Columbia Story revela o que não pode ser revelado.
Leonard Maltin fez uma avaliação extremamente sucinta – e, na minha opinião, bem correta: “Crawford cumpriu 20 anos por assassinatos com um machado; agora, enquanto ela está vivendo tranquilamente com sua filha Baker, os assassinatos começam de novo e ela é suspeita. A interpretação forte de Crawford faz com que este seja um dos melhores filmes no gênero dos chocantes com estrelas mais velhas do tipo Baby Jane; roteiro de Robert Bloch.”
Maltin dá ao filme 2.5 estrelas em 4, a mesma cotação que, antes de ver o comentário dele, eu havia dado.
É isso: não é um belo ou grande filme – mas é marcante. Para quem gosta de cinema americano, de filmes de terror, é mesmo fascinante.
Anotação em novembro de 2013
Almas Mortas/Strait-jacket
De William Castle, EUA, 1964.
Com Joan Crawford (Lucy Harbin), Diane Baker (Carol Harbin),
e Leif Erickson (Bill Cutler), Howard St. John (Raymond Fields), Anthony Hayes (Michael Fields), Rochelle Hudson (Emily Cutler), George Kennedy (Leo Krause), Edith Atwater (Mrs. Fields), Mitchell Cox (Dr. Anderson), Lee Yeary (Frank Hardin), Patricia Krest (Stella Fulton), Vickie Cos (Carol aos 3 anos)
Argumento e roteiro Robert Bloch
Fotografia Arthur E. Arling
Música Van Alexander
Montagem Edwin Bryant
Produção William Castle, Columbia.
P&B, 93 min
**1/2
Eu gosto da mocinha da Columbia Pictures no final XD
Eu tenho esse filme, essas produções que eu Batizei Carinhosamente de: “Menopausa do Terror”. Iniciadas por Bette Davis e Joan Crawford, mostraram que um (a) ator/atriz por estar mais velho Ainda tem Talento. Eu não desprezo esses filmes, alguns deles são Melhores do que essas Produções Recentes…