A Parte dos Anjos / The Angel’s Share

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Nota: ★★★½

Filho da mãe. Ken Loach é um filho da mãe. Aos 76 anos, jovem, pimpolho, moleque sapeca como minha neta Marina, o cara injeta esperança na veia do espectador. Nesta época e neste mundo de descrença em tudo, vem nos dizer que, ao contrário de todos os sinais, de todas as evidências, a humanidade pode não ser, afinal, uma experiência que deu errado.

Antes que o filme começasse, Mary lembrou a combinação de sempre: se for chato, paramos de ver. Retruquei que a possibilidade de um filme de Ken Loach ser chato era muito, muito, muito pequena.

Quando A Parte dos Anjos estava com uns 5 minutos, já tínhamos vontade de rever o início, para aproveitar melhor.

Lá pelos 15 minutos, não consegui segurar a frase: gênio é gênio.

Quando o filme – muito curto, apenas 101 minutos, que passam depressa demais – se aproximava do final, inventei dez desculpas para dar uma paradinha, uma voltadinha. Não queria que terminasse.

Filho da mãe.

Tudo no filme é perfeito, mas a maior glória é do roteirista Paul Laverty

O brilho de A Parte dos Anjos tem que ser dividido, sobretudo, entre Ken Loach – esse eterno believer, esse humanista de primeiríssima linha, socialista eterno, caiam tantos muros de Berlim quanto houver – com Paul Laverty, o autor do argumento e do roteiro.

00angel0Cinema é obra coletiva, como jornalismo, futebol, basquete, vôlei, vida, e então é claro que o brilho tem que ser dividido com mais gente – toda a equipe técnica, o diretor de fotografia, o diretor de arte, o montador, a equipe de casting, todos os atores.

Loach é um dos melhores diretores de atores do mundo, e as Ilhas Britânicas são o maior celeiro de bons atores do mundo, e então todas as interpretações são absolutamente brilhantes. Mas é fantástico que A Parte dos Anjos não tenha um único astro e/ou estrela, um ator muito conhecido – ao menos fora da Inglaterra. Não reconheci o nome de um único dos atores, nem creio que um bom cinéfilo brasileiro reconheça também – Paul Brannigan, Siobhan Reilly, John Henshaw, Gary Maitland, William Ruane, Jasmine Riggins, Scott Dymond, e por aí vai.

Reconheci, não pelo nome, mas pela cara, apenas um ator – Roger Allam.

Todo o imenso monte de pessoas que ser reuniu para criar A Parte dos Anjos fez belíssimo trabalho, mas é preciso destacar o de Paul Laverty. A história que ele criou é extraordinariamente fascinante.

Os personagens são pobres, quase marginais – mas de um país rico

A Parte dos Anjos fala dos desafortunados.

Não são propriamente miseráveis, os personagens do filme. Estão muito longe da privação absoluta de tudo que tantos milhões de pessoas enfrentam nos países periféricos. Não é a Somália, a Botswana, os rincões do Piauí, do Maranhão, de Alagoas – estamos na Escócia, em que há seguridade social, seguro-desemprego, lei e ordem, Justiça.

Ken Loach e Paul Laverty nos fazem cair no mundo da marginalidade de um país rico.

A abertura é brilhante: vemos um sujeito bêbado numa estação ferroviária que cai na via férrea, e escapa por muito pouco de ser atropelado por um trem.

O sujeito, Albert (Gary Maitland), vai a julgamento – um julgamento sumário, que faz a gente ter vergonha da Justiça brasileira, tão cheia de adiamentos, e, no alto da escala social, de embargos infringentes.

Albert é condenado a um monte de horas de trabalho comunitário.

E então o filme, bem no seu começo, enquanto rolam os créditos iniciais, apresenta para o espectador uma série de pessoas que estão sendo julgadas por crimes não especialmente grandes, graves: uma jovem que roubou um pássaro de uma loja, um jovem que fez ataques a monumentos públicos, uma mulher que frauda o seguro-desemprego, um jovem com várias passagens anteriores pelas barras dos tribunais por agressões violentas.

Este último, Robbie (Paul Brannigan, na foto acima), será o protagonista da história.

A advogada de defesa faz o relato da história de vida do jovem Robbie. Veio de família destroçada, passou boa parte da infância com os pais presos. Sim, envolveu-se em vários casos de agressão física, esteve preso por isso, mas nos últimos dez meses não tinha tido problema algum, a não ser este pelo qual está agora sendo julgado; daí a poucos dias será pai, e o relacionamento dele com a namorada grávida de quase nove meses (Leonie, interpretada por Siobhan Reilly), presente ali na corte, o tem o ajudado muito.

00angels3O juiz inicia sua sentença chamando a atenção para a gravidade das ofensas à lei que constam do histórico do réu, diversos casos de agressão violenta – mas, por reconhecer que o rapaz tem talento e força, sentencia Robbie com um número grande de horas de trabalho comunitário, sem prisão.

Um grupo de três ou quatro bandidinhos, que haviam sido feridos na briga mais recente de Robbie, urra, protesta contra a sentença. O juiz manda os guardas expulsaram o grupo da corte.

À saída do tribunal, Leonie diz ao namorado que aquela foi a última vez. Se ele voltar a delinquir, ela não vai mais estar ao lado dele.

Mas, justamente ali, diante do tribunal, os bandidinhos passam pelo casal e garantem que vão se vingar.

O grupo de condenados tem a sorte grande de cair nas mãos de um homem bom

Nos trabalhos comunitários a que foi condenado, Robbie vai se encontrar com o bêbado Albert, com a ladra Mo (Jasmine Riggins), com o atacador de monumentos públicos Rhino (William Ruane).

Terão, os quatro, a sorte grande de cair sob os cuidados de uma pessoa de coração imenso, Harry (John Henshaw, à esquerda na foto abaixo).

00angel4Como é mesmo a história bíblica de Sodoma e Gomorra? Não dizia aquela história que, enquanto houvesse ali uma única pessoa de bem, as duas cidades do pecado não deveriam ser totalmente extintas?

Harry, o sujeito que coordena os trabalhos comunitários dos condenados por quebra da lei, é um homem probo, um homem bom, um homem do bem.

Harry é um dos homens mais dignos que já apareceram nas telas de cinema nestes cento e tantos anos. Harry é digno como o Atticus Finch de O Sol é Para Todos, o Philip Green de A Luz é Para Todos.

Quando nasce o filho de Robbie e Leonie, Harry oferece um uísque especial, que ele guardava fazia muito tempo, para comemorar. Robbie não tinha até então tomado uma única dose de uísque na vida.

A parte da maravilhosa bebida que fica para os anjos beberem

Estamos aí com uns 15, no máximo 20 minutos de filme. A trama que se desenvolverá a partir daí é envolvente, fantástica, fascinante. Gira em torno de uísque, o produto escocês mais conhecido do mundo, é claro. Não tem sentido adiantar muito sobre a trama – o eventual leitor, se ainda não viu, que vá ver o filme extraordinário.

Mas acho que é necessário falar sobre o título do filme – que os exibidores brasileiros, graças ao bom Deus, tiveram a sabedoria de manter idêntico ao original. The Angels’ Share. A Parte dos Anjos.

The Angels' ShareHarry, um apaixonado por uísque, leva os seus pequenos criminosos prestadores de serviços comunitários a visitar uma destilaria. Uma garota linda ciceroneia o grupo. E, lá pelas tantas, explica que algo em torno de 2% da bebida destilada que repousa nos barris desaparece, ninguém sabe explicar como, quando, onde, por quê. É a parte dos anjos, ela diz.

Fiquei pensando: aqui no Brasil, há o costume de, antes de se tomar uma cachaça, jogar um pouquinho no chão, para o santo. Teria esse antigo costume brasileiro algo a ver com essa coisa escocesa da parte dos anjos?

Nunca saberemos.

Ken Loach se insurge contra quase tudo que nossa sociedade consumista idolatra

En passant, o velho socialista Ken Loach dá umas chicotadas em alguns princípios básicos do capitalismo – inclusive a idiotice total e absoluta da existência de milionários num mundo em que há miseráveis. Goza também, de maneira absurdamente ferina, essa estupidez de parte da humanidade de se fascinar com rótulos, marcas, grifes frescuras, absurdidades.

Numa visita a Paris, minha filha me contou que queria comprar uma bolsa de uma grife dessas milionárias; desistiu, porque a fila diante da loja na Champs Elysées era gigantesca demais, basicamente formada por chinesas. Ao que eu fiz uma boa frase: já não se fazem mais comunistas como antigamente.

Aos 76 anos, e a garra de um jovem idealista de 17, Ken Loach se insurge contra quase tudo que a nossa sociedade consumista adora, idolatra. Ele humilha os ditos connoisseurs, os experts. A adoração de um uísque de grife, ele nos mostra, é tão imbecil, estúpida, patética, quanto a adoração por qualquer outro produto de grife.

A existência de milionários é tão vergonhosa quanto a de miseráveis. Essa minha crença parece ser abonada, avalizada, pelo filme de 2012 deste diretor inacreditavelmente fantástico que começou a carreira no cinema em 1967, quando a gente achava que iria mudar o mundo.

Um panfleto forte que é também pura arte e até entretenimento

00angels5Believer eterno, Ken Loach faz, neste seu filme que tem muitos momentos cômicos, hilariantes, uma séria, ferrenha defesa da segunda chance para quem quebrou a lei.

Numa edição bem recente, a revista Veja trouxe nas páginas amarelas uma entrevista com um tal Stanton Samenow, especialista em psicologia de bandidos. Na minha opinião, muito do que ele fala é bom – ele vai na contramão das teorias marxistas ou pseudo-marxistas de que apenas o meio cria o criminoso, que a sociedade é a única responsável por transformar as pessoas pobres, marginalizadas, em criminosos.

Mas ele exagera no sentido contrário, me parece, ao dizer que o criminoso é criminoso desde sempre.

Neste seu filme, o empedernido socialista Ken Loach demonstra as origens miseráveis podem levar, sim, muitas vezes, ao crime – mas é possível sair dele.

É muito difícil – mostra este magnífico A Parte dos Anjos. Quase tudo conspira para impedir que o marginal saia da marginalidade. A trama criada por Paul Laverty esmiúça as dificuldades que o jovem Robbie enfrenta.

É muito difícil – mas é possível.

00angel8Tenho profunda admiração por obras que mostram isso, que defendem o direito à segunda chance. Nos anos 90, por exemplo, Paul Simon escreveu uma peça, The Capeman, que diz exatamente isso. Com base em um caso verídico, ele conta a história de um jovem porto-riquenho pobre, analfabeto, que assassina, numa briga de gangues, um garoto Wasp – branco, anglo-saxão e protestante. Ao longo dos muitos anos que passa na prisão. o garoto Salvador Agron se transforma num adulto culto, de bons princípios. Numa das maravilhosas canções, Salvador canta: “Vou pegar o mal que existe em mim e transformar no bem, embora todas as suas instituições nunca imaginassem que eu conseguiria”.

The Capeman era forte demais – a peça foi um estrondoso fracasso de bilheteria.

Ken Loach faz a elegia da solidariedade e a defesa da segunda chance em um filme extremamente bem humorado, gostoso. Diz as coisas sérias de maneira que parece leve, divertida. Conseguiu a proeza de fazer um panfleto forte que é pura arte e até entretenimento.

O roteirista Paul Laverty trabalha com Ken Loach desde 1996

A Parte dos Anjos teve quatro prêmios e outras sete indicações. Foi indicado para o César, o Oscar francês, de melhor filme estrangeiro; Ken Loach levou o Prêmio do Júri no Festival de Cannes. O ator Paul Brannigan, que interpreta o protagonista Robbie, ganhou o Bafta escocês de melhor ator, e Paul Laverty, o de roteirista.

00angels2O garoto Paul Brannigan estreou no cinema neste filme. Garoto de sorte – e de talento. Depois de A Parte dos Anjos, já completou mais dois filmes e dois outros estavam em fase de pós-produção em novembro de 2013.

Já Paul Laverty não é um iniciante. Nascido na Índia em 1957 de mãe irlandesa e pai escocês, formou-se em Filosofia em Roma; tem sido o roteirista dos filmes de Ken Loach desde Uma Canção para Carla, de 1996. São dele os roteiros de Apenas um Beijo (2004), Ventos da Liberdade (2006, Mundo Livre (2007), À Procura de Eric (2009) e Rota Irlandesa (2010).

Acho que já disse algo parecido aqui, mas vou repetir: se houvesse no mundo uns 100 mil socialistas, ou, vá lá, 1 milhão, tão bons, tão believiers, tão sonhadores, tão legítimos, que não quisessem, poder tomado, tomar para seu próprio bolso a grana socializada, talvez o socialismo tivesse dado certo, afinal.

A merda é que o mundo tem Lulas, Lulinhas, Roses, Delúbios, Dirceus, Stálins, Kim Yong-nam, Castros demais – e Ken Loachs de menos.

Anotação em novembro de 2013

A Parte dos Anjos/The Angel’s Share

De Ken Loach, Inglaterra-França-Bélgica-Itália, 2012.

Com Paul Brannigan (Robbie), Siobhan Reilly (Leonie), John Henshaw (Harry), Gary Maitland (Albert), William Ruane (Rhino), Jasmine Riggins (Mo), Scott Dymond (Willy), Scott KyleScott Kyle (Clancy),

Argumento e roteiro Paul Laverty

Fotografia Robbie Ryan

Música George Fenton

Montagem Jonathan Morris

Produção Entertainment One, Sixteen Films, Why Not Productions, Wild Bunch, British Film Institute, Les Films du Fleuve. DVD Imovision.

Cor, 101 min

***1/2

4 Comentários para “A Parte dos Anjos / The Angel’s Share”

  1. Tenho a certeza que gostarei do filme. Pelo seu comentário, vale apena ser visto. Sábado já está pertinho. Veremos.

  2. Demorou pro filme engatar comigo, só muito depois da metade a história conseguiu me pegar, já na parte em que fatos engraçados acontecem. Os temas que ele aborda são mesmo muito bons, mas o Loach não faz filmes fáceis (pelo menos não os que vi), e ouso dizer que seus filmes não são para o espectador comum.

    Sou muito a favor da solidariedade, mas com segundas chances tenho o pé meio atrás, embora (quase?) todo mundo mereça uma. O que eu acho sobre segundas chances: há pessoas que independente de quantas segundas chances recebam vão sempre voltar para o “mau caminho”, porque se comprazem nisso, é da natureza delas ou porque se têm em alta conta e não estão nem aí para ninguém, muito menos para leis. E há aquelas que só precisam de uma segunda oportunidade para se desviar do mau caminho ou para sair dele.
    O Robbie apresentou bom comportamento em 10 meses, mas por pouco ele não se meteu novamente em brigas, a troco de nada; segundo ele porque o pai dele havia brigado com o pai do seu rival de gangue, e isso era meio como uma “tradição”, uma “questão de honra”. Nessas horas eu admiro ainda mais pessoas como o Harry, porque eu não teria tanta paciência, muito menos tenho um coração tão bom (algumas pessoas simplesmente não mudam, não adianta lutar contra isso). Por outro lado, é compreensível o seu mau comportamento devido ao histórico familiar; acredito que um lar desequilibrado influencia muito na vida das crianças, os futuros adultos desajustados, briguentos, violentos, corruptos.

    Gostei da música dos The Proclaimers “I’m Gonna Be (500 Miles)” ter tocado no final (acho que tocou antes também, mas já não lembro), pois deu um tom de alegria e esperança ao filme, combinando com a sua frase de que a humanidade não é uma invenção que deu errado.

    PS: como é difícil entender o sotaque escocês…
    PS2: além dos bons temas, o filme tem bela fotografia.

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