Nota:
Se um eventual leitor distraído cair nesta anotação, eu daria um conselho, mesmo sabendo que conselho não tem valor, até porque é gratuito: se estiver num momento meio triste, meio deprê, meio down, veja Confidências à Meia-Noite.
É como diz a letra de “Willkommen”, a fantástica canção de abertura do Cabaret de Bob Fosse: “Meine Damen und Herren, Mesdames et Messieurs, Ladies and Gentlemen! Leave you troubles outside! So – life is disappointing? Forget it! We have no troubles here! Here life is beautiful…”
Para quem tem mais de uns, digamos, 50 anos, Confidências à Meia-Noite é uma fantástica, deliciosa viagem no túnel do tempo.
Para quem tem menos… Sei lá. Creio que será uma viagem a algo profundamente estranho, desconhecido. Um universo paralelo. Mas também poderia ser entendido como uma expedição antropológica, para conhecer os costumes de um outro mundo, uma outra época.
Uma atriz e cantora formidável, que às vezes foi subestimada
No mundo retratado em Confidências à Meia-Noite – e não é São João del Rey ou Belo Horizonte em 1935, mas Manhattan, o umbigo do capitalismo e do mundo, em 1959 –, as mulheres não davam.
Na Manhattan de 1959 que o então ainda vigente Código Hays permitia que fosse mostrada pelo cinema, “moça direita” não trepava. Nem mesmo depois dos 21 anos. Nem mesmo depois dos 30.
Doris Day ficaria famosérrima por seus papéis de virgem imaculada, firme, estóica, a partir de Confidências à Meia-Noite. E o mais fantástico é que em 1959, o ano de lançamento do filme, ela, nascida em 1922, estava com 37 anos, e tinha uma longa, imensa, respeitável carreira como atriz, iniciada 1948, e como cantora, iniciada em 1940, quando portanto estava com inacreditáveis 18 aninhos, e gravou maravilhosas faixas como crooner da orquestra de Les Brown.
Quatro anos antes deste Confidências à Meia-Noite, ela havia interpretado a cantora de jazz Ruth Etting, famosa nos anos 20 e 30, quando gravou mais de 200 canções, e foi teúda e manteúda de um gângster. No filme Ama-me ou Esquece-me, de 1955, ela contracenou com James Cagney, o mais perfeito gângster do cinema americano até os anos 60. No ano seguinte, 1956, fez o principal papel feminino na versão americana de O Homem Que Sabia Demais, em que Alfred Hitchcock refez seu próprio filme da era inglesa; ali, fazia o papel da esposa do americano tranqüilo que, sem que nem por quê, se vê envolvido num complô internacional – e, pelos truques do mago do suspense e do marketing pessoal, ela própria acabou cantando no filme a canção “Che sera sera”, e então passou a ser conhecida pelas gerações mais novas como algo chegado a um brega. Coisa que ela jamais havia sido e jamais seria.
Virou piada pronta dizer que Doris Day depois de velha virou virgem. Mas resumir Doris Day a atriz de comedinhas românticas em que interpretava virgens irredutíveis é um erro absurdo – ou ignorância pura e simples. Na verdade, Doris Day é uma das mais brilhantes e completas artistas do cinema e da música que não tiveram seu talento perfeitamente reconhecido.
Repito aqui o início do ótimo texto sobre ela no livro International Dictionary of Films and Filmmakers – Actors & Actresses, assinado por George Walsh:
“Se em sua aposentadoria ela alguma vez pondera sobre esses assuntos, Doris Day deve ocasionalmente se divertir. Tendo por várias vezes sido ridicularizada como a heroína vazia em comédias musicais não muito respeitáveis da Warner nos anos 50, ou como a perpétua virgem nas sofisticadas comédias sensuais da Universal nos anos 60, Doris Day agora se vê a vítima de uma mudança completa de visão. Agora o senso comum é de que ela pode ter sido uma atriz talentosa e subestimada que trabalhou em filmes de maior complexidade do que, à época, eles pareciam. Já os admiradores de Doris Day nunca precisaram de pretextos.”
O “agora” a que o autor se refere era meados dos anos 80 – o livro é de 1986. A forma como a crítica fala de Doris Day pode mudar de tempos em tempos. A qualidade de suas atuações, no cinema e na música, paira muito acima dos críticos e dos modismos.
Segundo o Código Hays, assim como no Cristianismo, sexo, só depois do casamento
Já Confidências à Meia-Noite é um daqueles filmes extremamente datados. É cheio de modismos – e expressa a realidade do mundo e do cinema da época em que foi feito. Não se pode ver o filme sem ter sempre em mente que aquilo é de 1959.
Nos créditos inicias, Doris Day canta a canção composta especialmente para o filme, que tem o mesmo título original, “Pillow Talk”. É uma cançãozinha bem pop, bem boba, bem distante do jazz e da Grande Música Americana que ela havia cantado quando bem mais jovem. Os créditos iniciais podem parecer bem bregas, bobos, bocós, para os padrões de hoje: vemos, em um split screen, a tela dividida em três, à esquerda pés masculinos, e à direita pés femininos. Dos lados esquerdo e direito da tela homem e mulher lançam para o centro diversas almofadas, travesseiros – pillows.
E, quando terminam os créditos iniciais, nos deparamos com uma realidade tão absurdamente distante destes anos 2010 – em que cada pessoa, por mais humilde que seja, tem um ou dois ou três telefones celulares – que os mais jovens simplesmente não conseguiriam compreender. É Manhattan, o umbigo do capitalismo e do mundo, não é a Nigéria, Botswana, ou São Miguel Paulista, ou Duque de Caxias, e no entanto não há uma linha telefônica para cada casa, apartamento – que dirá para cada pessoa.
Jan Morrow, o papel de Doris Day, bem de vida, decoradora, arquiteta de interiores, divide uma linha telefônica com um sujeito que ela não conhece pessoalmente, um tal Brad Allen – o papel de Rock Hudson. Esse Brad Allen é um compositor, que já havia tido alguns sucessos na Broadway – mas, sobretudo, é um sedutor, um Don Juan, um Casanova. Como é bonitão, imenso (Jan dirá que ele tem 1,95 metro de altura), e sedutor, tem trocentas namoradas, mulheres lindas que se encantam com ele.
Se as diversas namoradas de Brad Allen dão pra ele, isso o filme não diz – apenas insinua, discretissimamente. O Código Hays ainda proibia que os filmes dissessem esse tipo de coisa. Trepar, segundo o Código Hays, assim como no Cristianismo, só depois do casamento.
Por acaso, a moça virginíssima se encontra com o conquistador, o Don Juan
Mas o fato é que a decoradora de interiores Jan jamais consegue uma linha para falar com alguém, porque a linha compartilhada por ela e Brad está sempre ocupada, ele falando com uma de suas diversas namoradas. Falando ou cantando para elas sempre a mesma canção, dizendo que a garota do outro lado da linha é sua inspiração – ele apenas vai mudando o nome da amada para quem estaria compondo a música.
O acaso das comédias românticas – que também existe na vida real – fará com que esses dois seres antípodas que compartilham a linha telefônica se encontrem.
Brad percebe de cara que Jan é a moça com quem ele compartilha a linha. Jan não sabe que o bonitão que ela conheceu por acaso num restaurante chique é o cara que ela odeia, aquele Casanova, aquele maníaco sexual que a impede de falar ao telefone.
Brad inventa para si próprio uma outra persona, um fazendeiro texano em viagem por Nova York. O falso texano começa a sair com a virginíssima Jan.
Hoje em dia, só os velhinhos se lembrariam de que a sacada de fazer o compositor e conquistador nova-iorquino Brad se fingir do texano Rex é uma citação, uma brincadeira com Giant, no Brasil Assim Caminha a Humanidade. O épico de George Stevens, em que Rock Hudson interpreta Bick Bennedict, um milionário texano, havia sido lançado em 1956, três anos apenas antes desta comedinha aqui.
Deliciosas seqüências suavemente, inocentemente sensuais
Naturalmente – afinal, esta é uma comedinha romântica –, a bela, elegante e virginal decoradora vai se apaixonando pelo texano educado, altão, bonitão, charmoso que seu co-proprietário de linha telefônica inventou.
Além de passearem por Nova York, de saírem sempre para jantar, os dois conversam por telefone. A linha compartilhada é como se fossem duas extensões de uma mesma linha – e então Jan e o texano Rex conversam como se estivessem falando ao telefone, um, digamos, na sala, e outro no quarto.
É dessas conversas – ela deitada na cama virginal dela, ele deitado na cama provavelmente devassa, libertina dele – que saem os títulos do filme, tanto o original Pillow Talk, conversa de travesseiro, quanto o brasileiro, Confidências à Meia-Noite.
E é nessas sequências que o uso desregrado do split-screen, a tela dividida, mais funciona. Vemos a moçoila virginal de um lado e o Casanova de outro – e os pés deles se encostam no centro da tela, onde ela se divide em duas. Fazem sutis movimentos de um lado, sutis movimentos de outro. São seqüências divertidas, gostosas – suavemente sensuais, inocentemente sensuais. O mais sensual que poderia haver num filme do cinemão comercial americano naquela época em que o código de autocensura dos produtores ainda estava em vigor.
Aliás, a primeira tomada do filme, depois que terminam os créditos iniciais, mostra Doris Day calçando meias de nylon. A tomada é rapidinha, mas mesmo que rapidamente vemos o princípio das coxas da estrela – na época, a estrela que dava a maior bilheteria nos Estados Unidos –, suas pernas, seus pés nus.
Na época, deve ter feito o delírio de muito voyeur.
É irônico que o personagem de Rock Hudson insinue que um cara é gay
Enquanto a pura e dura Jan vai se apaixonando pelo fictício fazendeiro texano, o papa-tudo Brad vai também, é claro, se interessando mais e mais pela bela loura.
E aí, num golpe baixo, ou no mínimo bastante arriscado, Brad, o comedor, em telefonema para Jan se identificando como Brad, insinua que, se o texano Rex, depois de tanto tempo, ainda nem sequer tentou beijá-la, é porque… Sei não, hein, dona?
Não me lembrava deste pequeno detalhe, que é fascinante, e fascinantemente irônico.
Rock Hudson foi, entre os anos 50 e 60, um dos maiores galãs do cinema americano. Fez várias e deliciosas comedinhas românticas, em que interpretava sempre o papel do sujeito machão, comedor, como Quando Setembro Vier/Come September, aquela maravilha de Robert Mulligan, ou O Esporte Favorito dos Homens, de Howard Hawks. Interpretou homens fortes e honrados, como em O Último Pôr-do-Sol e Adeus às Armas; fez o herói imaculado em grandes melodramas como Palavras ao Vento/Written on the Wind e Tudo o que o Céu Permite/All that Heaven Allows.
Um tanto quanto a própria Doris Day, que foi, e creio que ainda é, subestimada, Rock Hudson era em geral considerado mais bonito que bom ator. Creio que muita gente o chamou de canastrão. Outro erro – ou pura falta de informação. Basta lembrar de sua atuação no forte, estranho, inquietante O Segundo Rosto/Seconds, que John Frankenheimer fez em 1966, no seu período mais glorioso, para ver que Rock Hudson sabia também ser um bom ator.
Por causa da aura máscula criada em torno do ator ao longo de tantos filmes, chocou meio mundo a revelação, em meados dos anos 80, no início da propagação da Aids, então tida como doença de homossexuais, de que Rock Hudson sempre havia sido gay e estava com a doença.
Me lembro de muita gente se demonstrando espantada com a informação.
Os exibidores diziam que ninguém mais queria ver comédias românticas
Rock Hudson e Doris Day voltariam a trabalhar juntos em mais duas comedinhas românticas da Universal: Volta, Meu Amor/Lover Come Back, de 1961, e Não me Mandem Flores/Send me No Flowers, de 1964. E é interessantíssimo que, em todos os três filmes, o terceiro personagem mais importante seja interpretado por Tony Randall (1920-2004), um ator que foi um eterno coadjuvante, em uma carreira de quase cem títulos.
Neste Confidências à Meia-Noite, Tony Randall interpreta Jonathan, um milionário que é ao mesmo tempo apaixonado pela decorada Jan e o maior amigo do compositor-conquistador Brad.
O quarto personagem mais importante da história é Alma, a empregada de Jan. Alma é interpretada por outra histórica coadjuvante, a maravilhosa (em termos de talento) Thelma Ritter. Ela está uma delícia como a mulher solitária que todo dia chega para o trabalho na casa da decoradora curtindo uma ressaca homérica. A seqüência em que Alma leva Brad para conversar em um bar e dá um porre fenomenal no grandão é hilariante.
Confidências à Meia-Noite teve cinco indicações ao Oscar – melhor roteiro original, melhor atriz para Doris Day, melhor atriz coadjuvante para Thelma Ritter, melhor direção de arte e melhor trilha sonora. Levou só a estatueta de melhor roteiro.
O IMDb traz uma informação interessantíssima. Passo para a frente tal qual ela está:
Segundo Ross Hunter, o produtor, foi difícil convencer os donos das cadeias de cinemas a exibir o filme. Eles diziam que as audiências queriam ver filmes de guerra, westerns ou espetáculos épicos; que as comedinhas românticas tinham saído da moda com William Powell; que a época de Rock Hudson e Doris Day já havia ficado para trás.
Então Ross Hunter conseguiu persuadir Sol Schwartz, dono do Palace Theater de Nova York, a exibir o filme por duas semanas. Foi um tremendo sucesso. Os exibidores todos do país correram atrás do produtor querendo ter o filme em suas salas.
Leonard Maltin deu ao filme 3.5 estrelas em 4 e o definiu como uma “imaginative sex comedy”. E está certo o Maltin, acho eu. É uma comédia imaginativa, e é sensual – na medida em que uma comedinha romântica podia ser sensual em 1960.
Então é isso mesmo: não sei se funciona contra azia e má digestão, mas contra tristeza, deprê, Confidências à Meia-Noite é um santo remédio.
Anotação em novembro de 2013
Confidências à Meia-Noite/Pillow Talk
De Michael Gordon, EUA, 1959
Com Rock Hudson (Brad Allen), Doris Day (Jan Morrow),
e Tony Randall (Jonathan Forbes), Thelma Ritter (Alma), Nick Adams (Tony Walters), Julia Meade (Marie), Allen Jenkins (Harry), Marcel Dalio (Pierot), Lee Patrick (Mrs. Walters), Dorothy Abbott (a cantora no night club)
Roteiro Stanley Shapiro e Maurice Richlin
Baseado em história de Russell Rouse e Clarence Greene
Fotografia Arthur E. Arling
Música Frank DeVol
Montagem Milton Carruth
Figurinos Bill Thomas e Jean Louis
Produção Ross Hunter, Arwin Productions, Universal International. DVD Universal.
Cor, 102 min
R, ***
Tudo nesse filme é nota máxima. Tudo!!!
(Principalmente o Rock Hudson, hehe)
Comédia deliciosa esta. Revejo muitas vezes, até porque sempre fui fã da Doris Day, quer como actriz quer sobretudo como cantora.
Abraço, Sérgio
Eu gosto muito dessa comédia, que tem diálogos e falas divertidas – e cenas. Faltou você mencionar o detalhe do elevador – sempre que Alma chega de manhã pra trabalhar, está de ressaca, e implica com o ascensorista dizendo que ele faz o elevador se mover muito rápido – hilariante.
Adoro as comédias românticas da Doris e do Rock Hudson. Confidências é muito legal e realmente a personagem Alma da um tom muito engraçado ao filme!
Eu gostei mais desse filme do que pensei que fosse gostar; assisti despretensiosamente e me surpreendi.
Nem me liguei que a personagem da Doris Day era virgem, pensei que eles não fossem pra cama por causa da história que o Brad jogou pra cima da Jan, e que ele estivesse na fase do cortejo.
Rock Hudson devia ser enorme mesmo, pelas mãos e pés nota-se que ele era grande. Na cena da banheira dá pra ver bem que as pernas também eram compridas (e que pernas).
Eu não fazia idéia de que ele era gay, não dava a menor pinta; acho que Hollywood batia muito duro e não permitia que os atores homossexuais deixassem transparecer. Sem falar que com todo o moralismo da época não devia ser fácil. Acho ele parecido com o Cary Grant (mas mais bonito), outro que só fiquei sabendo recentemente que também era gay, ou no mínimo, bissexual, mas que nunca admitiu, mesmo tendo morado mais de 10 anos com outro homem. Esse sim, me pegou de surpresa, pois foi um dos primeiros galãs da minha vida, e eu nunca nem havia imaginado (não costumo ler sobre a vida dos atores, a não ser em casos onde sou realmente fã).
Acho que gosto de filmes assim inocentes, meio bobos até, às vezes a gente cansa de ver tanta violência e sexo gratuitos no cinema atual.
Eu sempre ouvi as pessoas dizerem que no tempo do “Código Hays” os personagens dos filmes eram como “anjos” (sem sexo!) e que a relação homem-mulher se limitava a beijos e abraços (afinal de contas, o código de censura vetava qualquer menção a sexo, tanto nos diálogos como nas imagens). Qual o sentido, então, de se utilizar tantos termos “chulos” para descrever as ações dos personagens de filmes tão inocentes e “bobos”? Na época de “ouro” de Hollywood, os homens não “comiam” as mulheres, eles não “trepavam”, simples assim.
João Paulo, me lembrei da frase com que Rhett Butler encerra “… E o Vento Levou”, e o Código Hays não ousou censurar – lá atrás, em 1939:
– “Frankly, my dear, I don’t give a damm!”
Um abraço.
Sérgio