Já Fomos Tão Felizes / Please Don’t Eat the Daisies

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Nota: ★★★☆

Anotação em 2005, com acréscimo em 2008: Feito em 1960, este Já Fomos Tão Felizes/Please Don’t Eat the Daisies foi o segundo filme daquela que era uma nova fase da carreira de Doris Day, a das comédias românticas. Veio logo depois de Confidências à Meia Noite/Pillow Talk, de 1959, um tremendo sucesso de bilheteria, a primeira das três comédias românticas que ela fez na Universal ao lado de Rock Hudson e com Tony Randall como primeiro coadjuvante.

Esta fase talvez seja a mais conhecida da atriz no Brasil. Ela estabeleceu mitos e permitiu que muita, mas muita gente fizesse um julgamento totalmente errado de Doris Day.

Eu mesmo, que sempre fui fã de Doris Day – a cantora e a atriz – não tinha visto essa comedinha até 2005, quando o filme já tinha 45 anos de idade e o mundo era totalmente diferente. O filme me pareceu tão delicioso quanto eu certamente teria achado se o tivesse visto nos anos 60. É inteligente, bem humorado, esperto, brincalhão.

Doris Day cita a si mesma em duas boas piadas; em um restaurante italiano, canta um trecho de Che será, será, que havia cantado quatro anos antes no segundo O Homem Que Sabia Demais (1956), de Alfred Hitchcock. E, numa cena em que, com ciúmes, o marido (David Niven) pergunta com quem ela estava, responde: com Rock Hudson!

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O filme permitiria que se fizesse um bando de análises, sociológicas e artísticas, já que discute o papel da mulher no casamento naquele início de anos 60, a década que mudou tudo, e o papel do crítico na criação e na produção artística. (O personagem de David Niven é um critico de teatro respeitado, renomado, e até já se esqueceu de que, no passado, tentou ser dramaturgo, e o que produziu era ruim demais, era péssimo – o que poderia levar àquele eterno tema de debate Seriam os Críticos Autores Frustrados?)

Não vou tentar fazer análise alguma. Gostaria apenas de falar um pouco de Doris Day, exatamente porque ela é uma atriz e cantora extraordinária, que brilhou em várias e diferentes fases, mas que teve as carreiras inteiras, a de cantora e a de atriz, obscurecidas exatamente pelas comedinhas românticas que fez nos anos 60.

A partir dessas comédias feitas entre 1959 e 1966, estabeleceu-se a simplificação, a generalização de que Doris Day interpretava virgens  – firmes, obstinadas, irredutíveis, eternas virgens. A simplificação pegou – simplificações pegam facilmente. Ficaram o carimbo, a marca, a estampa, o selo: Doris Day, a virgem das comedinhas bobas.

A partir daí, surgiram as piadas de que Doris Day, lá pelos seus 30 e poucos anos, virou virgem. E as pessoas diziam: pois é, eu sou do tempo em que a Doris Day ainda nem era virgem.

A piada é ótima. Mas o mito, o carimbo, a simplificação – tudo isso parte de premissas falsas, erradas. Apenas um exemplo: neste filme aqui, o segundo da fase das comédias românticas, ela é casada, tem uma penca de filhos.

Outro erro é achar que Doris Day só fazia comedinhas. Antes dessa fase, ela tinha de fato feito outras comédias, e muitos musicais – mas também tinha feito dramas, e irrepreensivelmente. Ama-me ou Esquece-Me/Love Me or Leave Me, de 1955, era um drama, em que ela interpretava, muito bem, a vida trágica da cantora Ruth Etting, famosa nos anos 20, e por isso aparecia cantando. No ano seguinte, 1956, foi a loura escolhida por Alfred Hitchock para a refilmagem de O Homem Que Sabia Demais, que ele já havia feito na sua fase inglesa. Mesmo na fase das comedinhas românticas dos anos 60, fez outras coisas – como A Teia de Renda Negra/Midnight Lace, também de 1960, um bom thriller passado em Londres, numa atmosfera cheia de névoa e desconfianças.

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Bem, e como cantora… Os mais apressados podem imaginar que ela é a cantora que ficou famosa com “Che Será, Será”. Eles deveriam ouvir – na verdade, todo mundo, rigorosamente todo mundo deveria ouvir as gravações de Doris Day como crooner da orquestra de Les Brown, onde ela começou a cantar em 1940, aos 16 anos de idade.

(Ah, sim, a coisa da virgindade. Aos 17 anos, Doris Day casou-se pela primeira vez. Ao final do terceiro casamento, em 1968, viria a descobrir que o marido-empresário e seus advogados haviam sumido com alguns milhões de dólares dela.)

Foi a voz da orquestra de Les Brown até 1946 – e a voz dela era um instrumento da orquestra, como se fazia na época, como Frank Sinatra era um instrumento da orquestra de Tommy Dorsey no abençoado período 1940-1942. Não é coincidência que os dois tenham começado como crooners dessas orquestras no mesmo ano. O som daquelas faixas, as de Les Brown e as Tommy Dorsey, é bem semelhante – em belas canções que não duravam nunca mais de quatro minutos, a maioria suave, algumas poucas mais swingadas, a orquestra apresentava a melodia durante cerca de um minuto, e só então entrava o novo instrumento, a voz do crooner, não para suplantar qualquer outro instrumento, mas para fazer parte integrante do conjunto, um instrumento ao lado de outros.

“Se em sua aposentadoria ela alguma vez pondera sobre esses assuntos, Doris Day deve ocasionalmente se divertir”, escreveu um sujeito chamado George Walsh. “Tendo por várias vezes sido ridicularizada como a heroína vazia em comédias musicais não muito respeitáveis da Warner nos anos 50, ou como a perpétua virgem nas sofisticadas comédias sensuais da Universal nos anos 60, Doris Day agora se vê a vítima de uma mudança completa de visão. Agora o senso comum é de que ela pode ter sido uma atriz talentosa e subestimada que trabalhou em filmes de maior complexidade do que, à época, eles pareciam. Já os admiradores de Doris Day nunca precisaram de pretextos.”

Este é o início do bom texto sobre ela no International Dictionary of Films and Filmmakers – Actors & Actresses, e o “agora”  a que o autor se refere eram os meados dos anos 80. A forma como a crítica fala de Doris Day pode mudar de tempos em tempos. A qualidade de suas atuações, no cinema e na música, paira muito acima dos críticos e dos modismos.

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Já Fomos Tão Felizes/Please Don’t Eat the Daisies

De Charles Walters, EUA, 1960.

Com Doris Day, David Niven, Janis Paige, Richard Haydn, Spring Byington

Roteiro Isobel Lennart

Baseado no livro de Jean Kerr

Música David Rose

Cor, 111 min.

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