Cabaret


Nota: ★★★★

Anotação em 2010: Todo mundo deveria rever Cabaret de tempos em tempos.

Mary fez o comentário logo depois que terminamos de rever Cabaret mais uma vez – mas a frase não é nova. Fui dar uma olhada nas minhas anotações, e está lá; quando revimos Cabaret em 2006, escrevi uma única frase: “As pessoas deveriam ver Cabaret uma vez por ano”. Mas eu também não estava sendo original; as pessoas diziam frases assim sobre o filme já na época em que ele estreou, em 1972.

Cabaret é uma festa para os olhos, para os ouvidos, para a cabeça, para o coração. É uma rara explosão de talento, uma supernova de genialidade – sai faísca de brilho do filme o tempo todo, tomada por tomada, ao longo de 124 minutos que passam com a rapidez de um raio. 

Se fosse fazer uma lista dos meus dez filmes preferidos, assim, de cabeça, de bate-pronto, sem fazer consulta a nada, Cabaret estaria nela.

Bob Fosse é um cineasta de poucos filmes. Há os grandes cineastas que são capazes de fazer um filme por ano, todo ano, e quase todos ótimos, excelentes, como Woody Allen, por exemplo. E há os que não são prolíficos, como Milos Forman. É exatamente assim na música também; de um lado, há Bob Dylan, Chico Buarque, Caetano Veloso – um belo disco praticamente a cada ano, Dylan desde 1962, Chico e Caetano desde 1966. E há Dorival Caymmi, Paul Simon – de obra pequena, na comparação com os demais.

Bob Fosse é do time de Forman, de Caymmi, de Simon. É ourives cuidadoso; fica burilando sua pedra preciosa, seu diamante, durante longo tempo; filma várias vezes a mesma tomada, e depois passa longos meses na sala de montagem; mexe aqui, mexe acolá; todo mundo já acha que está tudo perfeito, mas ele mexe de novo – conforme ele próprio confessou abertamente ao respeitável público em sua obra autobiográfica All That Jazz, autobiográfica e profética, que antecipava como seria sua própria morte, no meio de mais um trabalho.

Quando, finalmente, entrega o diamante ao público, a jóia rara está perfeita. 

Perfeição. Cabaret é a perfeição. Não há nada sobrando, não há um único quadro – e vemos, como é mesmo?, 24 quadros por segundo – que não esteja perfeito.

         Apenas cinco filmes – cinco diamantes puros

Fosse fez apenas cinco filmes, ao longo de 15 anos. É verdade que o cinema não tinha sua dedicação exclusiva: passou mais tempo coreografando e dirigindo shows musicais na Broadway do que dirigindo filmes. Fez Charity, Meu Amor/Sweet Charity, em 1968, uma refilmagem de Noites de Cabíria, de Fellini, uma influência óbvia e fortíssima no seu estilo de filmar, com Shirley MacLaine no papel da prostituta de coração grande. Cabaret, de 1972, foi seu segundo filme, e fez um sucesso espetacular. Em 1974, fez Lenny, um filme em preto-e-branco quando já não se usava mais filmar em preto-e-branco – um filme pesado, denso, tristíssimo, que conta a vida de Lenny Bruce (interpretado, com brilho, por um Dustin Hoffman no auge da forma), o comediante americano que perdeu a graça quando passou a, em vez de contar piadas no palco, rememorar a sua luta insana na Justiça contra os censores que o proibiam de falar palavrões e contar anedotas sobre sexo. All That Jazz veio em 1979 – a história de Bob Fosse, que no filme se chama Joe Gideon (Roy Scheider, no melhor papel de sua vida), um coreógrafo e cineasta, que está escolhendo o elenco de seu novo show na Broadway e ao mesmo tempo finalizando seu mais recente filme, sobre a morte, que está rondando em torno dele, na figura de um anjo todo de branco, na pele de uma incrivelmente linda Jessica Lange. E em 1983, em Star 80, contou outra história verdadeira, a de uma coelhinha da Playboy (interpretada pela também incrivelmente linda Mariel Hemingway) vítima do ciúme louco do marido imbecil.

         Dois protagonistas, a Grande História por trás, o crescimento da Besta

Perfeccionista, Fosse quis filmar Cabaret na Alemanha, para que equipe e elenco entrassem no clima que ele queria recriar, o da Berlim de 1931, apenas 13 anos depois que a Alemanha havia saído derrotada e esfacelada da Primeira Guerra Mundial. O nazismo estava crescendo como um câncer – Hitler chegaria ao poder dois anos depois. O filme vai mostrando esse crescimento da insanidade, da loucura absoluta – o agigantamento do nazismo é o pano de fundo da história dos protagonistas, Sally Bowles, uma americana cantora do Kit Kat Club que sonha em ser uma grande estrela, e Brian Roberts, um inglês recém-formado em Cambridge que resolve passar uma temporada em Berlim dando aulas de inglês.

O filme mostra a ascensão do nazismo e demonstra que a elite econômica alemã fez sua parte para a calamidade, ao não tentar frear o crescimento do fanatismo por entender que os nazistas poderiam livrar o país do comunismo. Mas trata também de uma gama infinita de temas – amor, traição, sexo, a sedução da riqueza, aborto, homossexualismo, bissexualismo, relações pai-filho, anti-semitismo.

Brian Roberts foi o papel da vida do inglês Michael York, assim como Sally Bowles foi o papel da vida de Liza Minnelli, essa grande cantora e atriz que tem os gens misturados de Judy Garland e de Vincente Minnelli, um dos maiores diretores do cinema americano de todos os tempos.

Os dois estão ótimos, extraordinários, perfeitos – mas quem rouba a cena é Joel Grey (foto acima), no papel do MC, o mestre de cerimônias do cabaré.

          Liza Minnelli vai aos céus, a coreografia e a câmara fazem babar

As canções são, todas, sensacionais, maravilhosas – assim como os arranjos preciosos de Ralph Burns. Algumas dependem do filme para existir, estão ligadas demais à trama, como “Two Ladies” (o filme fala de um triângulo amoroso em que os todos três vértices comem os outros dois) e “If you could see her” (uma gozação com o racismo intrínseco à doutrina nazista). Mas algumas, mesmo sendo específicas do espetáculo, como “Wilkommen”, a abertura, ou “Money, Money”, são hoje clássicos. E “Mein Herr”, “Maybe This Time” e “Cabaret” são belíssimas, e Liza Minnelli vai aos céus ao interpretá-las.

E a coreografia – a maior das especialidades de Fosse – e a câmara são de babar, de aplaudir de pé em cena aberta.

         O mundo mudou, os musicais mudaram   

Já não se fazem mais tantos musicais como antigamente. É um gênero que, como o western, tem produzido poucos novos filmes. Ainda são feitos, é claro, mas em quantidade muito menor que entre os anos 30 e 50. Quando revi, em 2008, Les Girls, um maravilhoso musical de 1957 que é também filme de tribunal e comédia de costumes, dirigido por George Cukor, anotei que o filme me pareceu, então, uma peça importante na transformação do musical americano em uma outra coisa bem diferente daquela que era o padrão até a época. Antes, nos anos 30, 40, 50, o filmusical era basicamente uma coisa de ficção/fantasia, de escapismo puro e simples. No final dos anos 50, o gênero estava em declínio – em parte por cansaço da fórmula, em parte por causa das mudanças em curso no cinema e no mundo.

Ainda haveria musicais fic/fan e escapistas, é claro, a partir do final dos anos 50. Mas a época de ouro daquele tipo de musical americano estava acabando. A partir daí, os musicais grandes, impactantes, importantes, seriam completamente diferentes; seriam adultos, sérios, abordando temas duros, pesados, como racismo, guerra, nazismo, pobreza, marginalização, a proximidade da morte – como West Side Story (1961), Cabaret, All That Jazz, Chicago (2002) e até mesmo (por que não?) A Noviça Rebelde/The Sound of Music (1965).

         No ano do Poderoso Chefão, Cabaret levou oito Oscars

Vamos a outras opiniões.

Do livro 1001 Filmes para Ver Antes de Morrer: “Sendo apenas o segundo filme de Bob Fosse – diretor, bailarino, coreógrafo e fenômeno da Broadway –, Cabaret recebeu oito prêmios da Academia, inclusive o de melhor direção, vencendo O Poderoso Chefão de Francis Ford Coppola. Cabaret foi provavelmente o único musical realmente grandioso feito nos anos 70, apesar das profecias de que seria A Primavera de Hitler de Bob Fosse – ‘quem quer ver um musical com nazistas?’ A resposta é: qualquer um que queira ficar deslumbrado. (…) O sinistro apresentador Joel Grey é brilhante, mas, no final das contas, o filme pertence a Liza Minnelli, que trouxe uma energia nervosa e um certo desespero para agradar à sua Sally Bowles, com vitalidade febril e depravação fingida, dando calor e fragilidade a uma obra-prima e a melodias estonteantes.”

Do livro 501 Must-See Movies: “O musical obra-prima de Bob Fosse será para sempre eterno, apesar de todos os eventos e acessórios dos anos 1930. Os personagens são contemporâneos e sempre na moda. A desesperança e a melancolia que se espalham por todos os cantos são historicamente imediatas e arquetípicas. As rotinas brilhantes no Kit Kat Club são ao mesmo tempo uma lufada de uma alegria tremendamente necessária e um claro aviso da aproximação de alguma coisa medonha. A atuação de Minnelli é perfeita; que tragédia que ninguém mais conseguiu alcançar tanto brilho depois. Poucos musicais podem ser tão revistos quanto este.”

De Pauline Kael: “Grande filme musical. Derivando sua forma do cabaré político, é uma sátira às tentações. Num prodigioso ato de equilíbrio, o coreógrafo-diretor Bob Fosse mantém a época – Berlim, 1931 – a uma fria distância. Assistimos à decadência como espalhafatosa e inconsistente; como também assistimos à energia animal nela contida – tudo parece sexualizar-se. O filme não explora a decadência; ao contrário, a coloca no devido lugar. Com Joel Grey como o demoníaco boneco anfitrião – o mestre-de-cerimônias – e Liza Minnelli (em seu primeiro papel musical no cinema) como a exuberante e corruptível Sally Bowles, lutando pela vida atrás de uma machete, custe o que custar; Minnelli tem tanta alegria e eletricidade que se torna uma estrela diante de nossos olhos.”

E depois Dona Pauline resume informações preciosas, que eu deveria dar de qualquer forma. O filme se baseia nos contos do livro Goodbye to Berlin, do escritor inglês Christopher Isherwood (1904-1986), através do filme I am a câmera, de 1955, e do musical da Broadway Cabaret. O musical do teatro, de autoria de Joe Masteroff, que estreou em 1966, foi adaptado para o cinema pelo roteirista Jay Presson Allen, com a assistência de Hugh Wheeler. As canções são de John Kander (música) e Fred Ebb (letras); a direção musical e as orquestrações são de Ralph Burns, que trabalharia novamente com Bob Fosse em All That Jazz.

Os oito Oscars que o filme ganhou foram os de direção para Bob Fosse, atriz para Liza Minnelli, ator coadjuvante para Joel Grey, direção de arte para Rolf Zehetbauer, Hans Jürgen Kiebach e Herbert Strabel, fotografia para Geoffrey Unsworth, montagem para David Bretherton, trilha sonora para Ralph Burns, som para Robert Knudson e David Hildyard. Só perdeu dois dos outros Oscars para os quais foi indicado – o de filme (vencido por O Poderoso Chefão) e o roteiro adaptado (também para O Poderoso Chefão).

O filme ganhou ainda os Globos de Ouro de melhor filme musical ou comédia, melhor atriz para Liza Minnelli e melhor ator coadjuvante para Joel Grey.

Mary, eu e um bando de gente estávamos todos certos: as pessoas deveriam rever Cabaret de tempos em tempos. Faz bem para a alma, para o coração, para a cabeça.    

Cabaret

De Bob Fosse, EUA, 1972

Com Liza Minnelli (Sally Bowles), Michael York (Brian Roberts), Joel Grey (Mestre-de-Cerimônias), Helmut Griem (Maximilian von Heune), Marisa Berenson (Natalia Landauer), Fritz Wepper (Fritz)  

Roteiro Jay Presson Allen

Baseado na peça de John van Druten e na peça musical de Joe Masteroff, por sua vez baseadas em contos do livro Goodbye to Berlin, de Christopher Isherwood

Música Ralph Burns

Canções John Kander e Fred Ebb

Coreografia Bob Fosse

Produção Cy Feuer, ABC Pictures, Allied Artists

Cor, 124 min

R, ****

26 Comentários para “Cabaret”

  1. Cabaret é um dos meus filmes preferidos, sem um pingo de dúvida, está entre meus cinco preferidos!! Concordo com você sobre revê-lo de tempos em tempos. E quem nunca teve a oportunidade de ver, deveria fazê-lo! A atuação de Joel Grey é estonteante, de cair o queixo. Os números musicais são incríveis. Liza Minelli está perfeita. Enfim, não estou falando nenhuma novidade, é apenas uma manifestação inevitável de um grande admirador desta obra-prima!!
    Só para deixar registrado, é uma pena que ainda não tenha sido lançado em DVD no Brasil, pelo menos, no final do ano passado, andei procurando para comprá-lo e não encontrei.

  2. “If you could see her through my eyes
    You wouldn’t wonder at all.
    If you could see her through my eyes
    I guarantee you would fall (like I did).
    When we’re in public together
    I hear society moan.
    But if they could see her through my eyes
    Maybe they’d leave us alone”.

    Concordo plenamente. É Um Filme!: deveria ser visto assim, digamos, uma vez a cada 6 meses!

  3. Filme de várias vidas: a de Liza, a de Fosse, a de Grey. Também da minha e aqui do Sérgio. E tantas, tantas outras! Certamente Filme Inesgotável – por isso a necessidade de o rever de tempos a tempos, muitas vezes. Eu já perdi a conta. Mas como passaram quase 40 anos desde a primeira vez que o vi, a contabilidade final não deve andar muito longe desse número. Por isso é daqueles filmes que eu tenho na cabeça frame por frame.

  4. Crítica maravilhosa, texto vigoroso, complexo e simples, informativo e gostoso de ler, parabéns

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