Chicago

Nota: ★★★★

Anotação em 2010: Chicago é um belíssimo filme. Um musical primoroso, dos melhores que já foram feitos. Uma visão mordaz, irônica, satírica, feroz, arrasadora, virulentíssima sobre algumas das maiores chagas da sociedade – a espetacularização das tragédias pessoais, a exploração da vida privada pela indústria do entretenimento, a transformação de bandidos em heróis pelos fantásticos shows da vida, a Justiça tornada injusta pelo poder da mídia ruim e da força da grana que ergue e destrói coisas belas – mas às vezes parece destruir muito mais do que ergue.

Este filme é uma daquelas provas de que é possível erguer coisas belas.

Esquisito: me lembro ter lido uma matéria sobre filmes que foram superestimados, over-rated, que ganharam mais Oscars do que mereciam – e Chicago era um dos citados. Acho, sem certeza, que foi na revista Premiere americana. Me lembrei dessa coisa de que se considera Chicago superestimado quando, depois de termos visto um filme ruim, Ponto de Partida/Powder Blue, Mary sugeriu que, para contrabalançar, lavar a alma, revíssemos Chicago.

Rever Chicago é um imenso prazer – assim como rever Cabaret, All That Jazz.

Opinião é opinião – cada um tem a sua, ainda bem, maravilha. Há então quem ache Chicago over-rated. Tudo bem; tem um colega meu, gente fina, Gabriel, que acha Woody Allen over-rated, e uma sobrinha torta, Andrea, que odeia Woody Allen com ponto de exclamação.

Ao rever Chicago, fiquei achando que o filme está no mesmo nível de Cabaret e All That Jazz. E Cabaret e All That Jazz estão no nível mais alto que existe – há filmes do mesmo nível, mas não existem filmes acima deles.

Acho que Bob Fosse (1927-1987) deve ter aplaudido de pé Chicago. Talvez – sacana, safado, bem humorado, irônico, ferino – tenha comentado com São Pedro, sentado na nuvem a seu lado, que o filme é quase tão bom quanto se ele próprio tivesse dirigido.

         Chicago é o filme que Bob Fosse teria feito, se tivesse vivido mais

Chicago é Bob Fosse puro, escancarado. Acho que possivelmente a melhor qualidade do trabalho do diretor Rob Marshall é que Chicago foi feito como se o autor fosse Bob Fosse.

Fosse era um fã ardoroso de Fellini. O diretor italiano exerceu influência óbvia e fortíssima no seu estilo de filmar. Dançarino, cantor, coreógrafo, depois diretor de musicais na Broadway, estreou na direção em cinema dirigindo Charity, Meu Amor/Sweet Charity, em 1968, uma refilmagem de Noites de Cabíria, de Fellini, com Shirley MacLaine no papel da prostituta de coração grande que no original havia sido feita por Giulietta Masina, a senhora Federico desde antes de o senhor Federico se achar genial demais e ficar mais chato do que genial.

Com o cinema europeu dos anos 60, com Resnais, com Bergman, mas sobretudo com Fellini, Fosse aprendeu a mexer com o tempo, a cronologia, a realidade e o sonho, a misturar o antes e o depois, o verdadeiro e o imaginário. Fez isso de maneira magistral em All That Jazz, seu penúltimo filme, de 1979. Já havia mexido levemente com a cronologia em Cabaret, de 1972, mais revoltamente em Lenny, de 1974, assim como faria de novo em Star 80, de 1983.

Mas a mistura de realidade e sonho, lembranças e tempo atual, a marca de Fellini, Fosse fez em especial em All That Jazz, uma autobiografia de sua alma, da essência de sua arte – um artista múltiplo, dividido entre o cinema e o teatro.

Rob Marshall fez em Chicago, o filme, o que certamente Fosse teria feito, se tivesse vivido mais do que permitiram a ele.

Chicago é uma narrativa que mistura realidade e sonho o tempo todo. Que vai e vem no tempo como os filmes de Resnais dos anos 60. Mas, fascinantemente, genialmente, ao contrário do mestre francês – que, talvez como Chacrinha, prefira confundir a explicar –, ou talvez por ser americano, por depender, ou gostar, da bilheteria, Fosse consegue a união difícil, quase impossível, entre a criação, a inteligência, o avanço, e o que é compreensível, inteligível, acessível.

É brilhante sem ser presunçoso.

                   Tomadas curtas, montagem ágil, ritmo alucinante

Bob Fosse encenou Chicago na Broadway em meados dos anos 70 com os mesmos colaboradores, co-autores, de Cabaret: o letrista Fred Ebb e o compositor John Kander. Juntos, os três transformaram a peça Chicago, escrita por Maurine Dallas Watkins nos anos 20, num musical.

A peça original se baseava numa história real, sobre julgamentos de crimes ocorridos no Condado de Cook, nos anos 20, quando Chicago era dominada pelos gângsteres e pela corrupção. Maurine Dallass Watkins era repórter do Chicago Tribune.

A peça escrita por ele já havia tido duas adaptações para o cinema: Chicago (1927), e Pernas Provocantes/Roxie Hart (1942), de William A. Welman, com Ginger Rogers no papel da assassina aspirante a estrela.

Rob Marshall – que, nos créditos finais, dedica o filme a Bob Fosse e à mulher dele, Gwen Vernon – dirigiu e criou a coreografia da versão cinematográfica do musical inspirando-se claramente no estilo de Fosse: as tomadas são curtas, a montagem é ágil, o ritmo é frenético, alucinante.

O filme abre numa casa de espetáculos de Chicago, nos anos 20; as irmãs Kelly ainda não chegaram, e está quase na hora de elas se apresentarem. Velma Kelly (a estonteante Catherine Zeta-Jones, mais estonteante que nunca) chega sozinha. No camarim, antes de trocar de roupa, lava as mãos sujas de sangue; entra no palco e canta e dança o primeiro número musical do filme, “And all that jazz”,

Ao longo dos fascinantes 6m5s da música, ficamos conhecendo, em rápidas tomadas entremeadas com a apresentação de Velma e de um grande número de coristas, Roxie Hart (Renée Zellweger), uma loura simples, simplória, ambiciosa, que quer ser estrela como Velma, e está ali naquele cabaré com o amante, Fred Casely, que havia prometido apresentar Roxie ao dono do lugar.

Quando Velma termina de apresentar “And all that jazz”, a polícia está à espera para prendê-la pelo assassinato do marido e da irmã-parceira, que ela havia surpreendido juntos na cama.

Ufa! Tudo isso com menos de dez minutos de filme.

(Em algum lugar caberia, para quem não se lembra, uma explicação sobre essa expressão idiomática que deu o nome do filme de Bob Fosse de 1979 e a primeira canção apresentada em Chicago, and all that jazz. O significado não tem nada a ver com jazz, que entra na dança apenas como jogo de palavras. Diz algum dicionário que andei vendo, nem me lembro qual: “This idiom means that everything related or similar is included”. “E tudo o mais”. “E tudo o que de mais houver.” “E assim por diante”. Em Minas a gente diz, ou dizia, “o escambau”: isso, tal coisa, aquela outra, mais aquilo, o escambau.

É como diz o apresentador do show da vida de Joe Giddeon, o alter ego de Bob Fosse em All That Jazz: “And he came to believe that show business, work, love, his whole life, even himself and all that jazz… was bullshit”. Joe Giddeon passou a acreditar que o show business, o trabalho, o amor, sua vida inteira, até ele mesmo, e tudo o mais… era merda.) .

         Com quantos tiros se faz um sucesso

Então Velma é presa por dois assassinatos. Corta, e há uma seqüência – igualmente rápida, ágil, frenética – na casa de Roxie; Fred, o amante engabelador, acabou de comê-la e tem pressa para ir embora. Roxie pergunta quando afinal ela vai se encontrar com o dono da casa de espetáculos – afinal, já faz um mês que Fred falou sobre ela para ele. Aí Fred fala toda a verdade para Roxie: não conhece dono de cabaré nenhum; mentiu para que ela desse para ele, mas agora está cansado e quer ir embora. Roxie- Renée Zellweger arregala os grandes olhos claros, pega o revólver do marido na cômoda e mata o amante mentiroso.

E ainda não se passaram 15 minutos de filme.

         O teatro musical invade a prisão

São 113 minutos de puro prazer. Toda a narrativa é construída com a junção da realidade com a fantasia, o sonho – afinal, a sonhadora Roxie quer se tornar uma estrela. O teatro musical invade a prisão para mulheres onde Roxie se encontra com Velma e outras tantas assassinas de maridos e amantes. Invade a entrevista coletiva que o astuto, esperto, safado, dinheirista e competente advogado Billy Flynn (Richard Gere) convoca para apresentar Roxie aos repórteres sedentos por um novo sensacionalismo. Invade o tribunal em que Roxie será julgada.

É tudo brilhante: na tal entrevista coletiva, o diretor Marshall coreografa um número de marionetes, o advogado regendo o espetáculo. Durante o julgamento, Billy Flynn usa uma grande artimanha – e o mestre de cerimônias do cabaré introduz um número de sapateado solo.

É tudo de babar.

Os três astros – Renée, Catherine, Richard Gere – estão em pleno dia da graça, têm desempenhos fantásticos, dos melhores de suas carreiras. E, além de atuar, cantam e dançam; nenhum deles é cantor profissional, nem especializado em musicais, mas cantam e dançam maravilhosamente.

A grande Queen Latifah também dá um show como a corrupta chefe dos guardas da prisão, a Mama. John C. Reilly, magnífico ator, cria um excelente Amos Hart, o pobre coitado do marido enganado de Roxie – o espectador fica dividido entre ter pena dele ou raiva de tamanha burrice e ingenuidade.

         No primeiro filme do diretor, quatro atores indicados ao Oscar

Chicago foi o grande vencedor do Oscar de 2002; teve 13 indicações, e levou seis prêmios – filme, atriz coadjuvante para Catherine Zeta-Jones, montagem, direção de arte, figurinos e som. Na categoria principal, melhor filme, bateu Gangues de Nova York, As Horas, O Senhor dos Anéis: As Duas Torres e O Pianista. Ganhou também três Globos de Ouro – filme, ator para Richard Gere, atriz para Renée Zellweger, na categoria musical ou comédia.

Ao todo, o filme teve 40 prêmios e 54 outras indicações.

É uma dessas coisas absolutamente fantásticas que este tenha sido o primeiro longa-metragem de Rob Marshall. Verdade que o rapaz – nascido em 1960 – não era propriamente um novato. Na Broadway, tinha tido carreira respeitável, com seis indicações ao Tony, o Oscar do teatro. E tinha dirigido dois filmes na TV. Essa experiência, e mais um grande talento, explicam o fato de que, no seu primeiro longa para o cinema, tenha dirigido quatro atores que tiveram indicações ao Oscar por suas interpretações – Renée Zellweger, John C. Reilly, Queen Latifah, Catherine Zeta-Jones.

         O Guide des Films francês se derrete – como eu

Fui atrás de outras opiniões, para ver se encontrava quem concorde com a idéia de que este é um filme superestimado.

A crítica do AllMovie é, assim como esta minha anotação, cheia de elogios e superlativos. Elogia as atuações dos três astros, a maravilha de suas vozes e danças; elogia, com precisão e acuidade, o brilho que é a montagem, a junção das tomadas – e a crítica à sede de sangue da mídia e do público.

Leonard Maltin deu 3 estrelas em 4: “Agradável versão cinematográfica do show da Broadway de Bob Fosse-John Kander-Fred Ebb trata os momentos musicais como fragmentos da imaginação de Roxie, em contraste com a sombria realidade de sua vida.” Mas reclama que o diretor Marshall trata cada número musical como se fosse o último, o grand finale, a apoteose, e usa um estilo de clip musical com tomadas curtas a ponto de perturbar o espectador.

O Guide des Films de Jean Tulard dá 4 estrelas, a cotação máxima. Diz que Marshall se inspirou no trabalho de Fosse e conseguiu se sobrepor ao mestre, criando uma obra brilhante em seu primeiro longa-metragem. “Com o jazz e o charleston ao fundo, ele imprime à sua obra um ritmo endiabrado em que cada canção, cada coreografia, é perfeitamente integrada (…) Alguns números já são autênticas peças antológicas, como o tango das assassinas, o mestre das marionetes e Mr. Celofane, cantada por John C. Reilly. O profissionalismo de cada um envolvido na produção atinge aqui um perfeição raramente igualada; os intérpretes não são dublados e, tanto pelo canto quanto pela dança, provam um talento admirável. Além do mais, este musical não é um romance; é na verdade uma obra ácida, bastante sombria, fustigando o showbiz, a justiça, a imprensa e toda a sociedade carneirinha que se deixa manipular.”

Uau!

Quem será que escreveu a tal matéria dizendo que Chicago é superestimado?

É o tal negócio: cada cabeça, uma sentença. Maltin reclama do ritmo dos números musicais; o Guia de Tulard elogia o mesmo ritmo, com uma beleza de adjetivo. Estou com o guia francês. Este é um belo filme. E que maravilha de ritmo endiabrado.

Chicago

De Rob Marshall, EUA, 2002

Com Catherine Zeta-Jones (Velma Kelly), Renée Zellweger (Roxie Hart), Richard Gere (Billy Flynn), Queen Latifah (Mama Morton), John C. Reilly (Amos Hart), Christine Baranski (Mary Sunshine), Lucy Liu (Go-to-Hell-Kitty), Taye Diggs (Bandleader), Colm Feore (Martin Harrison), Dominic West (Fred Casely)

Roteiro Bill Condon, baseado na peça musical de Bob Fosse e Fred Webb, por sua vez baseada na peça de Maurine Dallas Watkins

Coreografia Rob Marshall

Fotografia Dion Beebe

Música Danny Elfman

Com composições de John Kander e Fred Fisher

Montagem Martin Walsh

Produção Miramax Films

Cor, 113

R, ****

11 Comentários para “Chicago”

  1. Adoro musicais, então sou supersuspeita. Considero Chicago um excelente filme, ácido, estonteante, ágil, perturbador. E que mulheres incríveis! Não consigo imaginar como pode ser um filme superestimado, tem poucos adjetivos elogiosos que não possam ser hiperbolicamente creditados a ele.
    PS. Cada dia aprecio mais passear por aqui, mas vai me dando uma agonia…quando poderei ver/rever tudo que preciso?

  2. Adoro e já vi muitos musicais, mas esse é o meu favorito. Não só pela atuação maravilhosa da Catherine Zeta-Jones (a qual eu sou fã #1), mas as músicas, as coreografias… não sei, são animadas, fazem a gente querer sair cantando e dançando por aí. Também não entendo de onde eles tiraram que é um filme superestimado… Simplesmente maravilhoso… Nota 10

  3. Já dei minha opinião tem algum tempo (continuo achando esse filme PERFEITO). Só passei aqui mesmo pra perguntar se vocês têm uma página do site no facebook…? Eu adoro o site e gostaria de ficar mais ligada nas atualizações dele 😀 Se tiver, não deixa de falar, hein?! >.<

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