Palavras ao Vento / Written on the Wind

Nota: ★★½☆

Anotação em 2011: Palavras ao Vento/Written on the Wind, que Douglas Sirk, o mestre do dramalhão, fez em 1956 é um filme de cores e tragédias intensas, fortes, berrantes. É a opção preferencial pelo exagero.

O carro esporte de Marylee (Dorothy Malone), a filha do bilionário, é vermelho vivo, mais vivo que o vermelho da Ferrari. Os vestidos dela são ou de vermelho vivo ou amarelo fortíssimo. O próprio rosto forte de Dorothy Malone nunca esteve tão forte, com o cabelão louro demais armado e grande, os olhos imensos muito verdes e muito marcados, a boca grande muito pintada de vermelhão. Até Lucy, a personagem de Lauren Bacall, publicitária da Madison Avenue, mulher de carreira, roupas sóbrias, em geral cinza, usa um batom vermelho berrante.

O carro esporte de Kyle (Robert Stack), o filho do bilionário, é amarelo-cheguei. E quando ele bebe, bebe exageradamente: em poucos minutos, mama uma garrafa inteira de uísque vagabundo, no gargalo.

Os Hadley – a família de Kyle e Marylee – são exageradamente bilionários. Não são apenas donos da empresa de petróleo, que também refina e produz gasolina: possuem diversas outras empresas, em várias áreas da economia – até mesmo uma agência de publicidade em Nova York, que produz os anúncios das companhias do conglomerado – a empresa em que trabalha Lucy, interpretada por Lauren Bacall.

A cidade texana que é a base das empresas da família Hadley se chama Hadley. É como se a cidade pertencesse à família. Quando Kyle bebe demais, e ameaça fazer alguma besteira – coisa muito usual –, o dono do bar ou alguém da polícia avisa os Hadley. Quando Marylee se oferece a algum homem em algum bar ou motel – coisa muito usual –, o dono do lugar ou alguém da polícia avisa os Headley.

Em geral, avisar os Headley significa avisar Mitch Wayne (Rock Hudson), o faz-tudo das empresas Headley. Mitch foi criado junto com Kyle e Marylee, freqüentaram a escola juntos. O pai dos dois jovens milionários desajustados, o alcoólatra e a ninfomaníaca, Jasper Headley (Robert Keith), sempre foi grande amigo e admirador do pai de Mitch, Hoak (Harry Shannon). Tem a mesma admiração por Mitch, em quem confia totalmente – seja para prospectar petróleo (Mitch formou-se em geologia), seja para cuidar de Kyle e Marylee.

Psicologia simplificada, maniqueísmo e exagero

Na verdade, Jasper, o patriarca, nunca escondeu de ninguém que gostaria que Mitch fosse o seu filho. E que gostaria muito se Mitch casasse com sua filha.

Temos aí um grave quadro de psicologia simplificada misturada a uma quase total maniqueísmo e imensa dose de exagero. Os filhos do homem que amealhou uma fortuna são problemáticos, destrambelhados, desajustados; o filho do homem pobre de valores íntegros é quase um super-herói, de caráter imaculado. E não foi apenas a fortuna grande demais que tornou os jovens Headley problemáticos: foi também a falta de carinho e atenção paternas, a eterna comparação entre o fraco Kyle e o forte Mitch.

Psicologia simplificada, uma dose de maniqueísmo, cores fortes em tudo. Parece a receita certa para o total desastre. Mas o diretor é Douglas Sirk; nas mãos deles, toda essa imensa quantidade de tragédias não vira um filme pavoroso.

Não é das melhores obras do grande realizador nascido em Hamburgo em 1900 com o nome de Hans Detlef Sierck, que fez a América a partir de 1943, depois de dirigir 11 filmes na Europa. Mas é, até hoje, mais de meio século depois, um filme forte, poderoso.

Um homem chega bêbado à mansão; daí a pouco, um tiro

O roteirista George Zuckerman usou o que chamo de narrativa laço, que tem sido utilizadíssima em filmes mais recentes: começamos por um momento de ápice da narrativa, e aí temos um flashback. Voltamos atrás um ano e tanto, e então vamos vindo para mais perto do presente.

Assim, a ação começa com um carro esporte amarelo berrante a toda velocidade chegando até uma daquelas mansões americanas típicas. O motorista – Robert Stack, que faz Kyle – desce trôpego, toma no gargalo um último gole da garrafa, joga a garrafa contra a parede, abre a porta principal da mansão e entra. Deixa a porta aberta, para que entrem também centenas de folhas secas, carregadas pelo vento do título. Vemos os demais personagens centrais – interpretados por Rock Hudson, Lauren Bacall, Dorothy Malone, todos dentro da mansão onde acabam de entrar Kyle estupidamente bêbado e as folhas secas de mil árvores. Um tiro. A câmara entra por uma janela do andar de cima, chega até uma folhinha que marca algum dia de 1956, e as folhas, uma para cada dia, vão andando para trás, até o início de 1955.

É o maior exagero que se pode conceber para se mostrar que haverá um flashback.

Corta, flashback – que ocupará praticamente toda a ação, até chegar ao momento da chegada de Kyle à mansão, do tiro –, e estamos em um escritório de agência de publicidade em Nova York. Uma bela mulher – a Lucy interpretada por Lauren Bacall – trabalha com cartazes, modelos de propaganda de algumas das empresas Headley. Há grandes painéis na sala, em que Lucy prega as peças publicitárias em que está trabalhando. Entra na sala um homem grandão – Mitch, o personagem de Rock Hudson –, e a primeira coisa que ele vê de Lucy são suas pernas, visíveis atrás dos painéis que escondem seu corpo da cintura para cima.

O cinema é tarado por pernas de mulher

E aqui me permito uma digressão.

Reza a lenda que americano adora peito; que, enquanto brasileiro tem tara por pernas e bunda, americano quer é ver peito. A indústria de silicone acredita nesta lenda e fatura horrores.

Pode ser – mas o cinema adora pernas. A primeira coisa que o protagonista e o espectador vêem, quando surge na tela a personagem de Lana Turner em O Destino Bate à Sua Porta/The Postman Always Rings Twice, de 1946, são as pernas – desde os pés até a metade das coxas, à mostra porque ela usa um short. Exatamente o mesmo acontece quando o protagonista e o espectador vêem pela primeira vez a personagem de Barbara Stanwyck em Pacto de Sangue/Double Indemnity, de 1944. São as pernas de La Stanwyck que a câmara focaliza – ela usa uma tornozeleira, que deixará louco o nosso pobre protagonista.

Mas não são as vamps, as femmes fatales dos filmes noir que têm pernas e pés fetiche. François Truffaut era absolutamente tarado por pernas. Em seu último filme, De Repente Num Domingo/Vivement Dimanche, de 1983, as pernas de sua musa e esposa Fanny Ardant são parte fundamental da narrativa.

Na primeira sequência de Domicílio Conjugal, de 1970 – linda, maravilhosa, ao som do violino forte de Antoine Duhamel –, a câmara segue, persistente, longamente, as pernas de Claude Jade. É o plano americano invertido: no plano americano, vê-se metade do corpo da pessoa, em 99% dos casos da cintura para cima. Nos casos aqui citados, vê a metade do corpo de pouco abaixo da cintura até os pés. Claude Jade passeia pelo bairro parisiense onde mora agora, recém-casada com Antoine Doinel; faz compras; corrige as pessoas que a chamam por mademoiselle – “Mademoiselle, non – Madame”, diz e repete. E a câmara vai mostrando as pernas e os pés da atriz.

Em O Homem que Amava as Mulheres, de 1977, então, Truffaut deita e rola na sua paixão por pernas. Tem a desculpa de que o personagem central, interpretado por Charles Denner, é um voyeur fanático – a tal ponto que, em seu enterro, ao qual comparece imensa quantidade de mulheres, uma delas comenta que ele gostaria da visão que teria ali do caixão, olhando de baixo para cima para todas aquelas pernas.

É bater o olho em Lauren Bacall e cair de paixão

E então, por detrás dos painéis no amplo escritório em Manhattan, surge diante de Mitch a figura inteira de Lucy – Lauren Bacall, com aqueles olhos que fizeram o durão Humphrey Bogart se derreter feito sorvete ao sol.

Mitch convida Lucy para irem se encontrar com Kyle, o herdeiro do império Headley, para o qual eles dois, Lucy e Mitch, trabalham. Kyle tinha tido uma repentina vontade de comer o melhor sanduíche do mundo, e por isso pegara seu jatinho, ao lado de Mitch, e voara do Texas até Nova York para dar uma passadinha no 21, um bar da moda. Mitch imaginava que uma conversa de Kyle com Lucy, secretária-executiva do presidente da agência de publicidade dos Headley, poderia tornar a viagem justificável aos olhos do chefe do clã, o velho Jasper Hadley.

No 21, Kyle bate o olho em Lucy e apaixona-se perdidamente.

Parece que com Lauren Bacall (e Lucy, afinal, vem na pele de Lauren Bacall) era assim: batia-se o olho nela, e vinha uma paixão fulminante. Com Bogey foi assim: casaram-se pouco depois que se conheceram, durante as filmagens de Uma Aventura na Martinica/To Have and Have Not, em 1944. A moça estava com 19 aninhos.

Também seria assim com o jornalista esportivo interpretado por Gregory Peck em Teu Nome é Mulher/Designing Woman, de 1957: o camarada tinha ido de Nova York a Los Angeles cobrir algum evento; no hotel, ficou conhecendo a personagem interpretada por Lauren Bacall; no avião de volta para Nova York, estavam casados.

Mitch se apaixona por Lucy só ao ver suas pernas e seus pés, o resto do corpo escondido atrás dos painéis. Kyle vê Lucy inteira, e se apaixona.

Poucos dias depois, estão casados. O filme está aí com uns 15 minutos, não mais que isso. Vão se seguir muitas tragédias.

Os quatro atores centrais em grande forma

Não sei por quê, mas eu tinha em algum lugar da memória a impressão de que Robert Stack era um grande canastrão, um fazedor de careta. Aliás, muita gente acha que Rock Hudson é um canastrão. Pois os dois estão muito bem, sob a batuta de Douglas Sirk. A história é cheia de exageros, o diretor de arte e os figurinistas Bill Thomas e Jay A. Morley Jr. exageram nas cores, mas os atores principais – os dois, mais La Bacall e Dorothy Malone -, ao contrário, não partem para a overdose. Estão todos muito bem.

Rock Hudson e Dorothy Malone se reencontrariam cinco anos mais tarde, em 1961, no Velho Oeste. A rigor, ao Sul do Velho Oeste, no México, sob a direção de Robert Aldrich, em O Último Pôr do Sol, um dos melhores westerns de todos os tempos, na minha opinião – um western que é também um grande melodrama, quase tão melodrama quanto os de Douglas Sirk. Na verdade, O Último Pôr do Sol é quase uma tragédia grega. O personagem de Dorothy Malone é a paixão da vida do pistoleiro interpretado por Kirk Douglas, mas ela vai se engraçar é pelo xerife feito por Rock Hudson.

Robert Stack teve uma indicação para o Oscar de ator coadjuvante. Dorothy Malone levou a estatueta por sua interpretação da pobre bilionária Marylee.

Um filme “irresistivelmente kitsch”

Duas curiosidades sobre Palavras ao Vento que constam do IMDb:

. Humphrey Bogart não foi com a cara do filme. Teria aconselhado sua jovem esposa a não fazer outra asneira como aquela.

. Rainer Werner Fassbinder, o grande realizador alemão, era apaixonado pelo filme. Ele teria algumas vezes falado de Palavras ao Vento como se ele próprio o tivesse dirigido.

Tenho até medo de ver o cacete que Pauline Kael deve ter dado no filme. Mas vamos lá:

“Um milionário texano do petróleo (Robert Stack) tira uma secretária (Lauren Bacall) do chão, casa com ela e aí começa a pensar se… (epa: vou ter que censurar Dame Pauline – ela entrega um spoiler). A irmã ninfo do texano (Dorothy Malone) encoraja suas suspeitas enquanto tenta agarrar o geólogo que na verdade está apaixonado pela esposa. O diretor, Douglas Sirk, mostra seu talento em criar dramalhões ácidos, estilizados, em ambientes chiques.”

Ué, até que a feriníssima rainha da crítica americana foi suave.

Leonard Maltin dá 3 estrelas em 4 e define o filme como “irresistivelmente kitsch”. Acertou na mosca.

É kitsch, é exagerado, beira o maniqueísmo, a psicologia barata – mas é um filme forte, envolvente, marcante. É um Douglas Sirk.

Palavras ao Vento/Written on the Wind

De Douglas Sirk, EUA, 1956

Com Rock Hudson (Mitch Wayne), Lauren Bacall (Lucy Moore Hadley), Robert Stack (Kyle Hadley), Dorothy Malone (Marylee Hadley), Robert Keith (Jasper Hadley), Grant Williams (Biff Miley)

Roteiro George Zuckerman

Baseado em romance de Robert Wilder

Fotografia Russell Metty

Música Frank Skinner

Produção Universal Internacional. DVD ClassicLine

Cor, 99 min

R, **1/2

16 Comentários para “Palavras ao Vento / Written on the Wind”

  1. “O cinema é tarado por pernas de mulher”. Reputo ser este o melhor intertítulo do site. Frase verdadeira e genial. Simples assim. Rolei de rir.

  2. Sensacional o seu blog, Sérgio! Parabéns!
    Pois é, adoro o Rock Hudson, apesar de ser um ator não tão bom, assim. Não conhecia Written on the wind… Filme denso, da linha de Gata em teto de zinco quente…

  3. Mas como assim? Eu não desmereci o filme! Eu comentei sobre ele! Sou fã do Douglas Sirk!

  4. De fato,é um filme envolvente,forte,marcante
    e,muito bom mesmo.Como é bom assistir a filmes dessa época.A fotografia eu achei muito bonita.Li em algum lugar que Douglas Sirk era o “Rei dos melodramas”,tomando como base este filme,ele merece o título;e que também foi um cineasta ousado e avançado para a sua época.
    Eu posso estar errado mas,achei que a Lucy Hadley,foi uma personagem fraca para o imenso talento da grande Lauren Bacall.Achei o Robert Stack melhor (aqui) do que o Hudson.
    E,também posso estar errado mas,não vi nada grande demais na Dorothy Malone para ela ter ganho o Oscar.Salvo,se não houve outra atriz melhor do que ela em outro filme.
    É Sergio,a Dona Pauline tinha de pegar leve mesmo com este filme. É MUITO BOM.
    Um abraço,amigo.

  5. Nunca gostei muito do género melodrama e este “written on the wind” não foi exceção. Quase tudo neste filme me pareceu forçado e exagerado. Não criei qualquer empatia com nenhum dos quatro personagens principais. A primeira metade do filme é extremamente aborrecida e não convence, a segunda metade aumenta um pouco de nível. As atuações de Rock Hudson e Lauren Bacall (esta estranhamente) são bastante fracas. Robert Stack está um pouco melhor e Dorothy Malone é a única que está em bom nível. Achei o final do filme bastante patético.

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