Uma Noite em 67

Nota: ★★★★

Anotação em 2011: Uma beleza, uma delícia, uma maravilha de documentário. Grande idéia – recontar como foi o Festival da Record de 1967, um fenômeno, um acontecimento histórico importante, rico, fundamental. Grande plano de vôo – não inventar, fazer a coisa simples, a coisa certa. Grande realização – os tapes da TV Record, entremeados com boas entrevistas feitas agora (o filme é de 2010) com todos os principais envolvidos.

Simples, direto, sensacional. Imperdível.

Para os mais velhos, que vivemos aqueles tristes tempos da ditadura, tristes mas recheados de uma explosão ímpar de criatividade artística, é emocionante. Para os mais jovens, é um show de história – da história da música brasileira e da História recente do país.

Roberto Carlos, estranho no ninho, conta uma piada infame

Randal Juliano está lá no palco do Teatro Paramount entrevistando alguém. Chega Cidinha Campos trazendo para o local focalizado pela câmara da Record Roberto Carlos, aquele estranho no ninho num festival de MPB. Diz ela:

– “O Roberto contou uma piada para a Jovem Pan que eu faço questão que ele repita aqui. Diga lá, Roberto.”

E Roberto, cabelão comprido:

– “Não é piada, não. É verdade!”

Cidinha Campos: – “Ah, é?”

Roberto: – “É. O Ponteio foi desclassificado.”

Cidinha Campos, assustada, ou se fingindo de: – “Por quê?”

Roberto: – “Porque não tem mais viola pra tocar, o Sérgio Ricardo quebrou.”

Não sei se as pessoas da minha idade se lembravam dessa piada infame e deliciosa. Quem tem menos de 60 anos, é claro, boiou – e será que tem quem menos de 60 anos sabe o significado da gíria boiar?

Saem o barquinho, o sol, o sal, entra o dia da igualdade que está chegando

Para lembrar:

Quando houve o golpe militar de 1964, o país vinha de uma onda de otimismo, de desenvolvimentismo. Capital nova, bossa nova, cinema novo – tudo era novo e positivo, na virada dos anos 50 para os 60. No início dos 60, as artes – em especial a música, o cinema e o teatro – estavam envolvidas com o sonho da mudança social, a revolução para acabar com a miséria, para levar a uma sociedade justa e igualitária. Em vez dos temas do final dos anos 1950 – o barquinho, o mar, o sol, o sal, o amor em paz -, a música passou a cantar o dia da igualdade que estava para chegar, a volta do cipó de arueira no lombo de quem mandava dar.

O golpe de direita, dado pelos militares apoiados por empresários e boa parte da classe média, só fez aumentar o engajamento da música com a utopia socialista.

Entre 1961 e 1967, revelou-se a mais extraordinária, mais prodigiosa geração de compositores e cantores da história – do Brasil e certamente também do mundo: Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Nara Leão, Maria Bethânia, Gal Costa, Edu Lobo, Elis Regina, Geraldo Vandré, TomZé, Sidney Miller, Wilson Simonal, Roberto Carlos, Erasmo Carlos, Rita Lee, Arnaldo e Sérgio Dias, Paulinho da Viola…

Uau!

Nunca houve, e é muito difícil que volte a haver um período tão curto de tempo em que surgiram tantos brilhantes, abençoados talentos. (Bem, esta é a afirmação pode ser contestada, como, aliás, qualquer outra afirmação. Volto ao tema ao final desta anotação.)

A era dos festivais começou em 1965, um ano depois do golpe que os golpistas chamavam de revolução. A TV Excelsior de São Paulo fez dois importantes, o 1º Festival Nacional da MPB, em abril de 1965, exato um ano após o golpe, e o 2º, em junho de 1966. “Arrastão”, de Edu Lobo e Vinicius de Moraes, cantada por Elis Regina, venceu o primeiro; “Porta-estandarte”, de Geraldo Vandré e Fernando Lona, ganhou o segundo.

Foram importantes – mas os dois maiores festivais, os que incendiaram o país, ou pelo menos boa parte da classe média do país, foram os da Record. A explicação de sua importância maior é simples: a TV Record de São Paulo tinha, na época, o peso que tem hoje a Rede Globo. (Como a memória é curta, é bom realçar que a Record ainda não era dos bispos – pertencia aos Machado de Carvalho.)

E a base de sua programação, no horário nobre, não eram as novelas, como hoje – eram os shows musicais. Os maiores nomes da música brasileira eram contratados da Record. Havia praticamente um show a cada dia da semana, um para cada diferente tipo de música – o samba tradicional, os novos que vinham chegando, o rock nacional que estourava, na época chamado de ié-ié-ié.

A Record havia feito um festival fora da hora, ainda em 1960. Por isso, os de 1966 e 1967, os mais importantes de todos, foram chamados de 2º e 3º Festival da MPB.

Uma Noite em 67 conta tudo sobre o 3º Festival da MPB.

Uma síntese!

Ué, até que não foi nada mal. Consegui apresentar (ou tentar apresentar) o contexto da coisa em apenas oito parágrafos, 42 linhas! Para quem não consegue sintetizar nada, é um feito, uma conquista. Não sei se está bem apresentado, correto, acurado, mas está sintético. Já é alguma coisa.

Começa com a campeã, depois mostra a quinta colocada, a quarta, a terceira, a vice

Os diretores Ricardo Calil e Renato Terra de fato optaram por fazer a coisa certa: tudo simples e direto. Abre com a reprodução das imagens da TV Record: Edu Lobo e Marília Medalha cantando “Ponteio”, de Edu e Capinan, no velho, histórico Teatro Paramount, no começo da Brigadeiro Luiz Antônio, em São Paulo, hoje Teatro Abril. “Ponteio”, a vencedora, o primeiro lugar, abre e fecha o documentário. É a única canção mostrada duas vezes.

Depois da abertura com “Ponteio”, vão vindo as entrevistas feitas agora, entremeadas às apresentações das músicas e trechos das entrevistas da época, feitas no palco do teatro, enquanto os jurados votavam.

O documentário reproduz a íntegra da apresentação da música que causou a maior polêmica, e em seguida as das cinco primeiras colocadas, em ordem crescente, da quinta até a primeira. A polêmica é “Beto Bom de Bola”, de e com Sérgio Ricardo: o público havia odiado a música na semifinal, e estava lá para vaiar. Foi a histórica explosão de Sérgio Ricardo, o momento em que ele quebrou o violão e o lançou contra a platéia. (O Notícias Populares daria em seguida uma de suas mais geniais manchetes, em letras garrafais: “Violada em pleno auditório”).

As primeiras colocadas que o documentário mostra – para lembrar, para registrar:

5º – “Maria Carnaval e Cinzas”, de Luiz Carlos Paraná, com Roberto Carlos;

4º – “Alegria, Alegria”, de Caetano Veloso, com Caetano e Beat Boys;

3º – “Roda Viva”, de Chico Buarque, com Chico e MPB-4;

2º – “Domingo no Parque”, de Gilberto Gil, com Gil e Os Mutantes;

1º – “Ponteio”, de Edu Lobo e Capinan, com Edu, Marília Medalha, Quarteto Novo e Momento Quatro.

É emocionante ver aqueles garotos brilhantes, de 20 e poucos anos, e em seguida agora, 43 anos depois

E é sensacional, é emocionante rever Roberto, Caetano, Chico, Gil, Edu, todos garotos, todos na faixa dos 20 anos de idade, cantando e dando entrevistas no palco, e depois vê-los nas entrevistas de agora, 43 anos depois, todos na faixa dos 60 anos, Gil bem mais magro, Edu mais gordinho, Roberto enrugado, Caetano e Chico mais belos, como os bons vinhos.

Além deles, aparecem nas entrevistas de agora Solano Ribeiro, o organizador desse e de vários outros dos grandes festivais, Paulinho Machado de Carvalho, o então dono da Record e da Rádio Jovem Pan, Zuza Homem de Mello, estudioso, pesquisador da MPB, na época técnico de som da Record e dos festivais, Sérgio Cabral e Chico de Assis, dois dos jurados.

As imagens de 1967 – gravações em fita magnética do programa que era transmitido ao vivo pela TV Record – não têm grande qualidade. Há cenas de cinejornais dos anos 1920, que volta e meia aparecem em filmes, de qualidade muito melhor, porque gravadas em película. Mesmo assim, mesmo não tendo grande qualidade, mesmo com algumas sombras, são imagens belíssimas, poderosas, importantes. E é surpreendente o simples fato de que elas existam, e possam ter sido trabalhadas agora para serem reproduzidas neste documentário, se lembrarmos que muito do acervo da Record se perdeu, por incúria, descaso ou tragédia – houve mais de um incêndio nos estúdios da emissora.

Só pelo trabalho de recuperação dessas imagens históricas, só pela divulgação delas, esse documentário já mereceria ser aplaudido de pé como na ópera, como nos festivais. Mas o conjunto formado por essas imagens de 1967 e pelas entrevistas de agora é algo fenomenal.

A Record exigia que aquela garotada se apresentasse de black-tie

Os festivais tinham a pretensão de ser algo assim de gala, de elegante, de sofisticado. Exigia-se que os cantores usassem smoking – algo hoje impensável, ridículo, mas que dá bem a idéia dessa pretensão de sisudez, de gala. Havia uma grande orquestra no fundo do palco, alguns arranjos eram grandiosos, grandiloquentes. Os apresentadores – Blota Jr. e Sônia Ribeiro –, em roupa de gala, procuravam falar com uma voz algo empolada, lendo textos igualmente empolados. Os entrevistadores – Randal Juliano e Cidinha Campos – procuravam dar um tom sério nas conversas com aquela garotada.

Era como se a Record procurasse o que depois ficou conhecido como “o padrão Globo de qualidade”. Mas essa pretensa gala, sofisticação, chocava-se de frente com o espírito todo da época, jovem, alegre. E na verdade o que se vê é uma gigantesca zorra, uma baita de uma confusão. Desde os pequenos detalhes, coisas que seriam impensáveis hoje – os entrevistados, como Chico, fumando no palco do teatro, o próprio entrevistador Randal Juliano fumando, batendo a cinza no cigarro no chão – até o visível improviso, os cantores já focalizados pela câmara da TV junto da entrada do palco sendo guiados por funcionários, tipo “ainda não, espera o apresentador anunciar seu nome”.

Enquanto os entrevistadores conversavam com os cantores e compositores, no intervalo em que os jurados votavam, outros músicos andavam pra cá e pra lá no palco, jornalistas de outros órgãos de imprensa faziam suas próprias entrevistas – e as câmaras iam mostrando tudo.

Foi nesse intervalo, antes do anúncio, em ordem crescente, das músicas vencedoras, que Cidinha Campos trouxe Roberto Carlos para o lugar do palco onde Randal Juliano fazia suas entrevistas, e ele contou a piada infame que transcrevi lá em cima: a gozação com a letra de “Ponteio” (“quem me dera agora eu tivesse a viola pra tocar”) e o episódio do violão quebrado por Sérgio Ricardo.

Uma absoluta delícia.

À frente da passeata contra a guitarra elétrica, Elis. Nara olha e diz: “Coisa de fascista!”

As entrevistas feitas agora para o documentário realçam alguns fatos importantes da época: a guerra entre os “puristas” e os “jovens”, a distância entre a “MPB” e a “jovem guarda”, a chegada do tropicalismo.

Fala-se bastante da absurda, ridícula passeata contra a guitarra elétrica – e mostram-se umas poucas imagens da passeata, encabeçada por Elis Regina e com a participação de Gilberto Gil! Gil, em seu depoimento, tenta tirar o dele da reta, dizendo que foi à passeata porque Elis pediu. Caetano se lembra de ter olhado a passeata de uma janela do Hotel Danúbio (o hotel fica na Brigadeiro, bem perto do teatro, e muitos dos músicos que vinham do Rio se hospedavam lá), ao lado de Nara, e Nara dizia para ele: “Parece coisa de fascista!”

Nara sempre esteve anos-luz à frente de tudo, em especial de sua rival e desafeto Elis.

Roberto Carlos era o rei da juventude, sucesso absoluto, a Jovem Guarda estava no auge; os organizadores do festival perguntaram se gostaria de apresentar “Maria Carnaval e Cinzas”, um belo samba de Luiz Carlos Paraná, e ele topou – mas parte da plateia estava ali para vaiá-lo, porque ele não era “MPB”, era jovem guarda, coisa menor, e suas músicas tinham guitarra elétrica, essa invenção diabólica do imperialismo ianque.

Sim, claro, porque parte da platéia, a estudandata “de esquerda”, bem pensante, bem informada, queria sempre que vencessem as músicas “sociais”, as que falavam do dia da igualdade que estava para chegar.

As entrevistas não vão fundo nessa coisa das músicas “de esquerda”. Mas passam um pouco pelo tema.

O documentário é imperdível – mas o DVD ainda é melhor

O documentário é uma maravilha, uma beleza. É imperdível.

Mas o DVD é ainda melhor que o documentário em si, porque os extras, os bônus, são igualmente fantásticos.

Muito provavelmente os extras ocupam tanto tempo quanto os 85 parcos minutos do documentário.

Um dos extras – “Outras músicas daquele festival” – traz a íntegra da apresentação de outras cinco canções apresentadas na final: “A Estrada e o Violeiro”, de Sidney Miller, com Sidney e Nara; “Bom Dia”, de Gilberto Gil e Nana Caymmi, com Nana; “Gabriela”, de Chico Maranhão, com o MPB-4; “O Cantador”, de Dori Caymmi e Nelson Motta, com Elis Regina; e “Samba de Maria”, de Francis Hime e Vinicius de Moraes, com Jair Rodrigues. Não me lembrava desse “Samba de Maria”…

Além da íntegra da apresentação dessas cinco músicas, há entrevistas feitas agora com os autores, os cantores, membros do júri.

Mas ainda tem mais. Tem um outro bônus, uma entrevista hoje com espectadores que estavam presentes na final do festival, e foram levados pela produção até o teatro onde tudo aconteceu.

E, para acabar, tem ainda um outro bônus, chamado de Causos – trechos de entrevistas com aquele monte de gente que acabou não entrando no documentário, mas tem seu valor. Chico e Caetano contando histórias deliciosas, Chico de Assis mostrando como sempre foi um babaca, Chico Anysio dizendo que votou em “Alegria, Alegria” e que hoje ninguém sabe a letra de Ponteio… É uma maravilha.

Na verdade, são dois períodos de ouro. A música brasileira é fogo

O texto está imenso, mas é preciso registrar: admito que é controvertida a frase que escrevi lá em cima – “Entre 1961 e 1967, revelou-se a mais extraordinária, mais prodigiosa geração de compositores e cantores da história – do Brasil e certamente também do mundo”.

Os anos 30 e 40 podem, sim, se rivalizar com aquele período dourado entre 1961 e 1967. Nos anos 30 houve Noel Rosa, Lamartine Babo, Assis Valente, Ari Barroso, Ismael Silva, Zequinha de Abreu, João de Barro, Almirante, Carmen Miranda, Mário Reis, Chico Alves…

É, o páreo é duro.

Para ler mais

E, para terminar, um pequeno comercial. Quem gosta desse tema – os festivais, MPB – não pode perder os textos que Laïs de Castro, testemunha de tudo, escreveu para o 50 Anos de Textos: Recordações de uma final de festival, O fim do Fino e Eu vi Disparada tomar forma (e outras histórias dos festivais).

Uma Noite em 67

De Ricardo Calil e Renato Terra, Brasil, 2010

Documentário com entrevistas com Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Edu Lobo, Sérgio Ricardo, Roberto Carlos, Solano Ribeiro, Paulinho Machado de Carvalho

Fotografia Jacques Cheuiche

Produção VídeoFilmes, Record Entretenimento e BNDES. DVD VídeoFilmes.

Cor e P&B, 85 min

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8 Comentários para “Uma Noite em 67”

  1. Pôxa vida, Rato, eu deveria é comprar o DVD e enviar para você pelo correio! É um mínimo agradecimento pelos ótimos comentários com que você tem melhorado o nível do meu site…
    Grande abraço.
    Sérgio

  2. Belo comentário, Servaz! Um monte de amigos, que participavam de tudo nessa época vieram de pronto com a pergunta: “E aí, você chorou quando viu o filme?” É mesmo emocionante, como você diz. Se não chegamos ao pranto, bem que deu um nó na garganta. E como mais tarde disse o Chico, “Apesar de você amanhã há de ser outro dia”. Ainda bem.

  3. Maravilha terem feito esse documentário. Uma noite fundamental para entender a música brasileira. Para nós que temos 6enta, realmente é emocionante. As entrevistas e os bônus completam a grande idéia desse documentário. Depois de assistir comprei o DVD para meus filhos de 26 e 27 anos. É histórico.

  4. Excelente texto e observações! Foi emocionante, para mim, que nasci na década de 90, poder sentir um gostinho (e que “gostinho”!)do que foi essa nossa produção cultural nos anos 60. Sensacional, sem dúvida alguma! Comprei o DVD e guardo-o aqui com carinho.

  5. Eu acho que a passeata contra as guitarras tinha tudo a ver com o momento,a Nara não participou porque nunca foi uma cantora pra ser levada a sério.No mais a Elis não só cantava como falava bem melhor que Nara leão.

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