(Disponível em DVD.)
Rainer Werner Fassbinder era um gênio – mas gênio talvez seja um adjetivo pequeno para ele. O cara era tão absolutamente, delirantemente, loucamente, freneticamente fora de série que parece simples e lógico entender que a criatura não era humana. Era um ser enviado para este planeta sem qualquer importância por uma civilização muitíssimo mais avançada para ensinar algumas coisas básicas para os primatas que o habitam – e teimam em destruí-lo mais e mais a cada dia.
O E.T. que passou apenas e tão somente 37 anos entre nós, fantasiado de humano, foi um dos cineastas que criaram o novo cinema alemão, e fez nada menos de 41 filmes no absurdo espaço de 13 anos.
E não eram assim propriamente filmezinhos simples, fáceis, tranquilos. Só um deles, por exemplo, que não coube na definição de filme, e virou uma minissérie de TV, Berlin Alexanderplatz, de 1980, tem 15 horas e 31 minutos.
Consta que o alienígena fantasiado de terráqueo escrevia o roteiro de Berlin Alexanderplatz à noite, depois de trabalhar durante umas 10, 12 horas durante as filmagens deste O Casamento de Maria Braun aqui, seu filme de 1979 – o primeiro de uma trilogia sobre a Alemanha pós-nazismo, pós-guerra, e também o seu maior sucesso comercial.
Em 1981 seria lançado Lola e, em 1982, a terceira parte da trilogia, O Desespero de Veronika Voss.
Enquanto bolava as histórias, escrevia os roteiros e filmava a trilogia e mais Berlin Alexanderplatz, Fassbinder cheirava quilos e mais quilos de cocaína e fazia mais sexo – dizem que até mesmo com mulheres – do que todos os pacientes de várias clínicas de maníacos de sexo juntos.
Diante disso tudo, como fica o pobre coitado do sujeito apaixonado por filmes que, ao final dos 120 minutos de O Casamento de Maria Braun, perplexo, desentendido, fizer a pergunta básica: mas que diabo esse troço quis dizer?
Ou, como se diz na língua de Bill, o militar americano para quem Maria Braun dá não propriamente por dinheiro, chocolate ou cigarro, mas porque parece que até gosta dele:
What the fuck?
Sim, claro, claro, é uma alegoria. Uma parábola. Os nove anos da vida de Maria Braun mostrados no filme, desde 1945, o país completamente destruído, arruinado pela guerra, até 1954, quando ela já era uma mulher muito rica, são o espelho da própria Alemanha. Certo: uma alegoria, uma parábola.
Mas o que raios essa parábola quer dizer?
Maria, como a Alemanha, sai das cinzas
Gostaria de, antes de mais nada, encontrar uma boa, suculenta sinopse.
Vou usar como base a do Petit Larousse des Films, fazendo as adaptações que achar necessárias:
A história de Maria começa pouco antes da capitulação da Alemanha. Apenas um dia depois de seu casamento, Hermann Braun é enviado para o front. Quando a guerra termina, ele está desaparecido. Ela deverá lutar por sua sobrevivência, com sua mãe e seu avô (Gisela Uhlen e Anton Schirsner), em um país destruído pela guerra: mercado negro, permutas, pequenos tráficos. Mas aquilo não bastava para viver, e Maria, a essa altura certa de que o marido havia morrido no front, arranja um emprego em um bar para soldados americanos. Tem um caso com um oficial negro (o citado Bill, papel de George Byrd), que a enche de presentes. Mas seu marido reaparece e, tomada de medo, ela mata o americano. Hermann assume que foi ele que matou, e é condenado a oito anos de prisão.
Maria fica conhecendo um rico industrial, Oswald (Ivan Desny), e se torna sua funcionária e amante. Mas separa bem as duas coisas, e, no trabalho, se dedica de corpo e alma; graças à sua tenacidade e inteligência, vai galgado posições na empresa, torna-se indispensável. Depois de alguns anos, seu sucesso profissional é imenso; Hermann, ao sair da prisão, no entanto, se recusa a aproveitar o dinheiro ganho pela mulher e emigra para o Canadá.
Passam-se mais alguns anos, e Hermann volta. Quando parece que finalmente o casal poderá viver o casamento que não havia tido, acontece uma total surpresa.
É isso.
E então, o que isso quer dizer em relação à Alemanha?
Em 1945, Maria está como a Alemanha: perdida, destruída. Em 1954 – o ano em que a seleção de futebol da então Alemanha Ocidental derrota a Hungria na final da Copa do Mundo da Suíça –, Maria é uma mulher rica, como a Alemanha é um país rico. A duras penas, reconstruiu-se.
Tá – mas e daí?
A câmara, como o espectador, se apaixona por Hanna
Bem. Antes de ir atrás de opiniões de gente que entende, é preciso falar de Hanna Schygulla.
Hanna Schygulla é uma daquelas atrizes especiais, extraordinárias, que parecem deixar as câmaras tão apaixonadas por sua presença forte, sua elegância, sua beleza, quanto os espectadores.
À parte a história, a trama, que me parece um tanto difícil de compreender, O Casamento de Maria Braun tem grandes qualidades. A direção de arte, a reconstituição de época, os cenários, os figurinos, a fotografia, os movimentos de câmara, os atores, tudo é uma maravilha, um deslumbre.
Mas a maior qualidade do filme é, sem dúvida alguma, a protagonista.
Se Hanna Schygulla aparecesse na Escolinha do Professor Raimundo, daria vontade ver a Escolinha do Professor Raimundo.
Estudava línguas e arte dramática em Munique quando conheceu Fassbinder. Ao longo de 12 anos, fizeram nada menos que 23 filmes juntos – inclusive o primeiro longa-metragem dele, O Amor é Mais Frio Que a Morte, de 1969. Desentenderam-se depois de tanto tempo, e ela não participou dos quatro últimos filmes do realizador.
Trabalhou com grandes diretores. Com Andrzej Wajda, fez Um Amor na Alemanha (1983). Com Margarethe von Trotta, fez Heller Wahn (também de 1983). Com Kenneth Branagh, fez Voltar a Morrer (1991). Outro dos diretores que fizeram o novo cinema alemão nos anos 70 e 80, Volker Schlöndorff, a dirigiu em O Ocaso de um Povo (1981). Jean-Luc Godard a dirigiu em Paixão (1982).
Nas últimas décadas, tem se dedicado à carreira de cantora.
Por sua extraordinária atuação como Maria Braun, ganhou o Leão de Prata no Festival de Berlim. Na Berlinale ganhou também um Leão de Ouro honorário pelo conjunto da carreira, em 2010, e, em outro dos mais importantes festivais de cinema do mundo, o de Cannes, ganhou o prêmio de melhor atriz em 1983 por A Estória de Piera, de Marco Ferreri.
Maria é uma personagem sempre ambígua
Eis o que diz o Guide des Films de Jean Tulard sobre o filme:
“Le Mariage de Maria Braun é a primeira parte de uma tetralogia consagrada à Alemanha nazista e pós-nazista através do destino de quatro mulheres (Maria Braun, Lili Marleen, Lola e Véronika Voss). ‘Cada uma representa uma etapa, ainda que a ordem cronológica não seja respeitada’, declarou Fassbinder. De fato, Maria Braun foi rodada antes de Lili Marleen (que se passa em 1938, antes, portanto, do início da Segunda Guerra). O filme é uma crônica que se pretende objetiva dos anos 1950
(na verdade, dos anos 1940 e 1950), em que acontece a reconstrução a partir das ruínas, o renascimento de uma nação com o milagre econômico. Maria Braun, uma jovem inexperiente, amadurecida pelos problemas e metamorfoseada em chefe do lar e batalhadora incansável, poderia pertencer à linhagem de uma Scarlett O’Hara, que se bateu contra as mesmas dificuldades perto de um século antes. Mas Le Mariage de Maria Braun nos apresenta um universo muito diferente daquele de Autant en Emporte le Vent (… E O Vento Levou). Fassbinder procura evitar o melodrama sem alcançar total sucesso. Portanto, o resultado de seu filme não deixa de desconcertar.”
Ah, essa última frase é perfeita, Monsieur Tulard. Verdade, verdade: o filme não deixa de desconcertar.
Vejamos a avaliação do Petit Larousse des Films:
“A atriz Hanna Schygulla, onipresente no filme, dá a ele uma força particular, jogando com talento sobre a ambiguidade da personagem, oscilando sem cessar entre a mulher dura, arrivista, sem escrúpulos e aquela amorosa e eternamente fiel a seu marido. Mas é evidente que Maria é uma metáfora da Alemanha do pós-guerra: suas ruínas, seu desastre econômico, o desespero de seus habitantes foram superados com a ajuda americana, e o enriquecimento de Maria é, naturalmente, o extraordinário e rápido crescimento econômico da Alemanha de Adenauer, de quem ouvimos a voz (falando no rádio) proclamando o abandono de todos os sonhos de glória e de conquista e a vontade do país de se enriquecer e unicamente se enriquecer. Mas a explosão financeira é sinal de fragilidade: assim como Maria se endurece à medida de seu sucesso, a Alemanha perde sua alma no processo. Se o filme veicula uma certa crítica da Alemanha pós Adenauer, é necessário notar que não se faz alusão alguma ao período nazista: há uma ocultação do passado – e da responsabilidade da geração dos pais de Maria. Ou então é esse passado que Maria tenta reter, apesar das aventuras e compromissos, ao permanecer fiel a seu marido: ele não é apenas o homem que ela ama, mas aquele com quem ela se casou anos antes, e que constitui um elemento fundamental de sua própria identidade.”
Com a guerra, Maria perdeu a capacidade de sentir
No livro 1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer, de Steven Jay Schneider, a autora do verbete sobre O Casamento de Maria Braun, Dana Duma, comete erros no resumo da trama. Diz que Maria é atacada por um soldado americano que tenta estuprá-la, quando na verdade ela namora o oficial Bill, recebe dele mil presentes. Não há, de forma alguma, tentativa de estupro. Depois diz que o marido dela, Hermann, vai para a América do Sul – mas, diacho, o Canadá fica bem ao Norte…
Mas vamos à segunda parte do texto – aquele em que há uma apreciação da obra:
“As premissas melodramáticas não diminuem de forma alguma a força deste filme notável, que analisa, sob um olhar específico, o ‘milagre alemão’. Custeada com enormes sacrifícios, a reconstrução da Alemanha recaiu, em grande parte, sobre os ombros frágeis de suas mulheres. Longe de ser unanimemente aceita, a idéia de Fassbinder sobre esse crescimento do pós-guerra era de que ‘se as paredes foram reconstruídas, os corações permaneceram quebrados’. O Casamento de Maria Braun fala da perda da alma em uma sociedade que exalta a prosperidade. Brilhantemente interpretada por Schygulla, Maria é obrigada a sofrer por estar em busca da auto-estima e da dignidade por meios inumanos. Fascinada pelo dinheiro, ela perde o seu encanto feminino.
“Convencido por Douglas Sirk de que o melodrama sempre funciona, Fassbinder conseguiu evitar o sentimentalismo sendo rigoroso e eficiente. O famoso ‘olhar gélido’ continua presente, como sua marca inconfundível. Com este filme, Fassbinder mais uma vez comprovou ser um mestre dos retratos femininos.”
Vamos ao meu crítico de cinema preferido, o grande Roger Ebert, que deu ao filme a cotação máxima de 4 estrelas:
“Rainer Werner Fassbinder vinha trabalhando para chegar até este filme durante anos, desde que começou sua obra espantosamente prodigiosa com seu primeiro filme, esquisito mas poderoso, em 1969. Seus filmes sempre foram sobre sexo, dinheiro e morte, e seu método era muitas vezes explorar esses três temas através de casais espetacularmente incompatíveis (uma faxineira velha e um jovem trabalhador preto, um sujeito com ar de James Dean com uma menina de 13 anos, um gay rico da cidade grande e um simplório ganhador de loteria).
“Quaisquer que fossem seus pares e suas alegres e irônicas conclusões, sempre havia outro tema à espreita no pano de fundo de seus cerca de 33 (!) longa-metragens. Ele nos deu o que ele via como a ascensão e segunda queda da Alemanha Ocidental nas três décadas do pós-guerra – consideradas no contexto da gigantesca influência americana sobre o seu país.
“Com seu magistral épico The Marriage of Maria Braun, ele fez sua declaração mais clara e mais cínica sobre o tema, e ao mesmo tempo nos deu um filme cheio de detalhes de época, com os figurinos e decoração pelos quais ficou famoso, com a elegante decadência pela qual seus personagens vão vender suas almas numa economia do final dos anos 40 sem chiques bens de varejo.
“O filme de Fassbinder começa com uma Alemanha despedaçada pela guerra e termina com uma explosão de gás e um jogo de futebol. Seu final pode parecer arbitrário para alguns, mas no contexto da sociedade da Alemanha Ocidental nos anos 1970 era uma boa forma. Sua personagem central, Maria Braun, é interpretada com grande estilo e poder por Hanna Schybulla, e a odisséia de Maria dos anos da guerra até os anos do consumismo fornece a estrutura do filme.
“O filme começa enquanto Maria se casa com um jovem soldado, que vai para a batalha e presumivelmente é morto. Prossegue com ela durante um longo período de tristeza, que é pontuado por um pouco de prostituição amadora (a qual é aprovada tacitamente pela mãe) e depois por um caso terno com um soldado americano preto, grande, forte, gentil, de quem ela de fato gosta – nos parece.
“A morte acidental do soldado…”
Ahnn… Aqui é necessário ser bem específico. A morte de Bill em parte é acidental, sim, como Roger Ebert escreve. Ao se surpreender com a presença absolutamente inesperada do marido que ela achava morte, e que a observa nas preliminares do sexo com o americano, Maria acaba quebrando uma garrafa na cabeça do amante. Não pretendia matá-lo, não foi um crime planejado – mas, diabo, a morte não pode ser considerada um mero acidente.
Continuando o texto de Ebert:
“A morte acidental do soldado, e o retorno do marido, são enfrentados por Maria com uma calma bastante perturbadora, mas então nós começamos a ver que a capacidade de Maria de sentir as coisas foi atrofiada pela guerra, e sua capacidade de se surpreender desapareceu. Se a guerra transforma qualquer plano em algo absolutamente sem sentido, então por que alguém deveria perder tempo analisando coincidências?
“Fassbinder se diverte amargamente com o que acontece após a morte do soldado (o marido apaixonado, ou talvez apenas chocado, voluntariamente vai para a prisão, e Maria rapidamente ascende numa corporação multinacional). O filme é mais realista em seu tratamento dos personagens do que em geral são as obras de Fassbinder, mas os eventos são arbitrários como de costume (e por que não – os eventos só têm os significados que damos a eles).
“O mini-apocalipse no final é uma conclusão perfeita (um final com ‘significado’ teria sido obsceno para este filme), e eu penso que nós somos deixados, se quisermos, com a soma do que Fassbinder tem a dizer sobre a reconstrução da Alemanha. Temos as lojas abertas de novo, mas não sabemos muito a respeito dos consumidores por enquanto.”
“Uma bela mulher em um vácuo emocional”
Eis o final do longo texto sobre o filme do CineBooks’ Motion Picture Guide, que dá a ele 4 estrelas em 5:
“Embora nem sempre um filme fácil de se entender, sua atmosfera rígida, atuações gélidas e revelações pungentes fazem de The Marriage of Maria Braun um dos mais importantes filmes realizados na Alemanha nos anos 1970, e um dos melhores da carreira de Rainer Werner Fassbinder. A estrutura altamente estilizada, deliberada, deve muito ao estilo dos melodramas hollywoodianos de Douglas Sirk dos anos 1950, como Imitação da Vida (1959) e Palavras ao Vento (1956).
“Como naqueles filmes, o diretor permanece distante dos eventos dramáticos, de partir o coração, que estão acontecendo, o que faz de Marriage of Maria Braun um estudo da sociedade alemã no processo de reconstrução no pós-guerra. Fassbinder permanece ainda mais distante do material do que Sirk – um produto da atmosfera alienante que é proeminente em uma Alemanha que luta para se transformar em uma potência industrial, mas falha em levar em consideração os laços humanos que fazem uma sociedade saudável.
“O efeito disso sobre a heroína, interpretada por Hanna Schygulla, é de uma grande pena por ver uma jovem e bela mulher em um vácuo emocional. Uma colocação que fica ainda mais poderosa quando sua mãe, já idosa, uma remanescente da Alemanha de antes da guerra, passa a ter um amante e persegue uma vida emocionalmente rica, enquanto sua filha é incapaz de fazer isso. Schygulla está muito poderosa nesse papel, provavelmente o melhor de sua carreira, permanecendo fria e indiferente, e no entanto evocando um forte sentimento de piedade.”
A verdade dos fatos é que, mesmo parecendo às vezes um tanto incompreensível, O Casamento de Maria Braun é um filme forte, poderoso, impressionante. Como seu realizador. Como sua estrela, essa extraordinária Hanna Scchygulla. Como a Alemanha que ele retrata.
Anotação em agosto de 2021
O Casamento de Maria Braun/Die Ehe der Maria Braun
De Rainer Werner Fassbinder, Alemanha Ocidental, 1979
Com Hanna Schygulla (Maria Braun)
e Klaus Loewitsch (Hermann Braun), Ivan Desny (Oswald, o empresário), Gisela Uhlen (a mãe de Maria), Gottfried John (Willi, o amigo, marido de Betti), Elisabeth Trissenaar (Betti, a grande amiga), Gunter Lamprecht (Hans, o namorado da mãe), Hark Bohm (Senkenberg, o sócio de Oswald), George Byrd (Bill, o militar americano), Isolde Barth (Vevi), Peter Berling (Bronski), Sonja Neudorfer (enfermeira da Cruz Vermelha), Liselotte Eder (Frau Ehmcke), Christine Hopf de Loup (o notário), Claus Holm (o médico), Anton Schirsner (vovô Berger)
Roteiro Peter Marthesheimer, Pia Frohlich, Rainer Werner Fassbinder
Baseado em idéia de Fassbinder
Fotografia Michael Ballhaus
Música Peer Raben
Montagem Juliane Lorenz, Rainer Werner Fassbinder
Figurinos Barbara Baum, Susi Reichel, George Kuhn, Ingeborg Proller
Produção Michael Fengler, Albatros Filmproduktion, Fengler Films, Filmverlag der Autoren, Tango Film, Trio Film, Westdeutscher Rundfunk (WDR).
Cor, 120 min (2h)
Disponível em DVD.
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