Desejo Atroz / All I Desire

zzdesire1

Nota: ★★½☆

Desejo Atroz, no original All I Desire, fala sobre opções que fazemos na vida, e que às vezes mudam toda nossa trajetória. Fala sobre opções, erradas ou certas, e sobre as pequenas convenções sociais que nos obrigam a optar entre ceder a elas ou enfrentá-las.

Não é considerado um dos melhores filmes de Douglas Sirk, o cineasta que melhor soube realizar melodramas no cinema americano entre os anos 1930 e 1950. Mas, como é de Douglas Sirk, tem qualidades – merece respeito.

Feito em 1953, All I Desire se passa no início do século passado, quando as pequenas convenções sociais eram muitíssimo mais rígidas, austeras – para não dizer caretas, calhordas – do que na época da produção.

A ação começa na coxia de um teatro nada nobre, em que se apresentavam números de vaudeville. Ouvimos em off a voz forte, um tanto grave, um tanto rouca de Barbara Stanwyck, apresentando-se aos espectadores:

– “Naomi Murdoch. Sou eu. Não posso dizer que impressiono o público.”

zzdesire2Vemos Barbara Stanwyck no papel de Naomi Murdoch, entrando nos bastidores do teatro logo após sua apresentação. Veste aquelas roupas negras de coristas, a saia com uma fenda que permite a visão das coxas enquanto caminha em direção ao camarim.

– “Não que tenha impressionado algum dia, mas agora, com o final da temporada e o calor do verão chegando, o ar nestes teatros decadentes está pior do que nunca. E, irmão, não há muito o que esperar. Algumas pessoas devem achar que procurei por isso.”

Ela entra no camarim, onde uma colega, uma senhora passada nos anos, se prepara para entrar em cena; dirige-se à amiga:

– “O público hoje está uma pedra de gelo.”

Essa primeira seqüência do filme é rápida, e muito rapidamente põe o espectador a par do que é preciso saber sobre a história de Naomi Murdoch. A colega entrega a ela uma carta. Naomi lê a carta e fica pálida como gesso. Entrega o papel para a amiga, que lê a carta em voz alta – Lily, a filha de Naomi, a convida para ir à festa de formatura, que incluirá a apresentação de uma peça de teatro em que Lily fará o papel principal.

Naomi nunca havia contado para a amiga, mas tem três filhos. Muitos anos antes, havia abandonado os filhos, o marido e a pequenina cidade em que viviam, Riverdale, Wisconsin, menos de 5 mil habitantes, e jamais havia botado os pés lá de novo. Havia outro homem, e, antes que o escândalo estourasse, ela saiu para não mais voltar.

Nas cartas à filha, mentia que era uma atriz de sucesso em Nova York e em turnês pela Europa, interpretando Shakespeare.

E a filha agora suplicava que mãe famosa fosse vê-la na peça teatral de encerramento da high school de Riverdale, Wisconsin, menos de 5 mil habitantes – o lugarejo que Naomi optara por abandonar de vez.

A amiga a incentiva a ir – por que não? Ela poderia perfeitamente interpretar o papel da atriz de sucesso. Tinha talento, era atriz.

E Naomi, num impulso, decide ir.

Em poucos minutos, toda a cidade sabe da chegada da filha pródiga

zzdesire0Um funcionário da estação ferroviária de Riverdale – figurinha abjeta, desprezível – reconhece Naomi Murdoch assim que ela desce do trem e entra numa charrete que a levará para o único hotel da cidade. O homenzinho fareja que ali há motivo para fofoca, algo para se comentar com os outros – e corre para avisar Dutch (Lyle Bettger), o outro homem no passado de Naomi.

Esse Dutch tem uma loja de material de caça e pesca. Vende espingardas, gosta de atirar. No momento em que o vemos pela primeira vez, está praticando tiro ao alvo com o garotinho Ted Murdoch (Billy Gray), o caçula dos três filhos do respeitável Henry Murdoch, diretor da escola da cidade, e da mulher que havia abandonado a família e a cidade para virar atriz de teatro na distante metrópole. O espectador percebe de cara que Ted, menino aí de uns 12 anos, é fã de Dutch, o cara que sabe manejar armas.

Em questão de minutos, toda a cidade de Riverdale está sabendo da chegada da filha pródiga, a mulher que abandonou marido e filhos depois de ter um caso com outro.

Cadeiras extras no teatro da escola: todos querem ver a mulher infiel que voltou

No início da noite, Naomi surge na casa que havia abandonado mais de uma década antes.

Nessa altura, quando estamos aí com uns 15 minutos de filme, já havíamos sido apresentados a todos os Murdoch.

Henry (Richard Carlson) é um homem simples, pacato, daquele tipo que jamais havia se rebelado contra nada na vida, que sempre seguiu todas as convenções da sociedade em que vive. É amado pela professora de teatro da escola que dirige, Sara (Maureen O’Sullivan) – mas não a ama. Tem grande afeto por ela, e só. Poderia perfeitamente ter se casado com ela anos antes, mas nunca fez um gesto nessa direção.

Sua primogênita, Joyce (Marcia Henderson), puxou o pai. É organizada, trabalhadora, rígida, rigorosa, apegada a todo tipo de convenção. Não gosta sequer que o noivo, Russ (Richard Long), dê um beijo em sua bochecha ao deixá-la em frente à sua casa.

A filha do meio, Lily (Lori Nelson), é idêntica à mãe: impulsiva, dinâmica, cheia de vigor, de vontade de experimentar. Quer ser atriz como a mãe, não suporta a cidadezinha pequena, provinciana, quer conquistar o mundo.

Quando Naomi chega à casa do ex-marido e dos filhos, no meio do jantar deles, Lily pula de alegria – e o pai e a irmã ficam em absoluto choque. Lily não havia contado que convidara a mãe para ver a peça de teatro e a formatura.

zzdesire3Joyce rejeitará a mãe que no passado manchou a reputação da família. Henry ficará dividido entre o ódio pela mulher que o abandonou e o amor por ela que ainda teima em existir.

Algum tempo depois da chegada de Naomi à casa, quando ela e o ex-marido ficam sozinhos, Sara, a professora, liga. Assim que Henry pousa o telefone no gancho, dá-se este diálogo:

Henry: – “Era Sara ao telefone.”

Naomi: – “Sara?”

Henry: – “Sara Harper. É a professora de teatro. Estão botando cadeiras adicionais no auditório. Parece estar havendo uma súbita demanda por cadeiras.”

Naomi: – “Bem, pelo menos Lily terá casa cheia.”

Henry: – “E você será o centro das atenções.”

Naomi (a princípio ressentida, depois com raiva): – “Vou causar uma boa impressão, Henry. Isso é tudo que importa para você, não é? As aparências, e o que as outras pessoas pensam. Bem, eu não sou a moça fora dos trilhos que costumava deixar você embaraçado. Não mais. Não vou rir muito alto ou fazer piadas ou falar com a ralé. Eu sabia fazer isso antes de casar com você.

Henry: – “É muita gentileza sua.”

“Você tem uma mãe sem princípios, e eu tenho uma filha sem coragem.”

All I Desire baseia-se em um romance chamado Stopover, de Carol Brink (1895-1981), autora de 30 obras, publicadas entre 1934 e 1977. Stopover foi lançado em 1951, dois anos, portanto, antes de virar filme. Os créditos iniciais dizem que a história foi adaptada por Gina Kaus, com roteiro de James Gunn e Robert Blees. Adaptadora e roteirista souberam ser concisos. É impressionante a concisão do roteiro. Naquela primeira seqüência que tentei descrever já se explica a base da trama. Nos 15 primeiros minutos, antes que Naomi faça a reentrada na casa que havia abandonado, o espectador fica conhecendo Henry Murdoch e seus filhos, o outro na vida da heroína, o tal Dutch, mais Sara, e fica também sabendo como é, basicamente, a vida em Riverdale.

O filme do mestre Douglas Sirk dura exatos 79 minutos. É tudo de uma concisão extraordinária.

Os diálogos são ágeis, bem elaborados. Lá pelo meio da narrativa, há um enfrentamento entre Naomi, a que batia de frente contra as convenções, a que optava por fazer o que o coração mandava, sem dar bola para o que os outros pensavam, e Joyce, a filha rígida, severa, careta. A frase que sai da boca de Naomi é dessas difíceis de esquecer:

– “Nós somos um grande desapontamento uma para a outra, não somos? Você tem uma mãe sem princípios, e eu tenho uma filha sem coragem.”

A frase é muito boa. Dita por Barbara Stanwyck, fica ainda melhor.

Barbara Stanwyck é uma absoluta maravilha.

Uma atriz maravilhosa, que não recusava papéis ousados

zzdesire7Acho que dá para dizer com segurança que Barbara Stanwyck é menos conhecida e reconhecida pelas gerações mais jovens do que outras grandes estrelas hollywoodianas das décadas de 1930 a 1950, como Bette Davis, Joan Crawford, Katharine Hepburn, Ingrid Bergman, e mesmo Jean Harlow e Lana Turner.

É uma atriz excepcional, extraordinária.

Em uma carreira longa, entre 1927, exatamente o ano do primeiro filme sonoro, e 1964 (a partir daí se dedicaria a séries de TV – Os Pássaros Feridos, Dinastia, The Colbys), trabalhou com vários dos mais importantes diretores de seu tempo. Estrelou filmes de Frank Capra, Billy Wilder, Howard Hawks, William Wellman, Cecil B. De Mille, King Vidor – e, é claro, Douglas Sirk.

Papel ousado era com ela mesma. Em 1933, em Serpentes de Luxo/Baby Face, interpretou uma alpinista social que sobe na vida fazendo sexo com os chefes. No mesmo ano, em O Último Chá do General Yen, de Frank Capra, fez o papel de uma jovem americana noiva de um missionário religioso na China, que acaba se apaixonando por um senhor de guerra chinês, um assassino cruel, que a mantém num cativeiro de ouro. Nesse filme, Barbara Stanwyck aparece em roupas íntimas, com as coxas de fora, e tem um caso de amor – chegado a um sadomasoquismo – fora do casamento. Um caso de amor fora do casamento que além de tudo é inter-racial, algo que Hollywood só viria a admitir muitas, muitas décadas mais tarde.

Onze anos depois de Serpentes de Luxo e O Último Chá do General Yen, as pernas – um dos calcanhares adornado por uma tornozeleira -, os joelhos e as coxas de La Stanwyck, mostrados pela câmara antes mesmo de seu rosto, provocariam a paixão fatal do vendedor de seguros Walter Neff, interpretado por Fred MacMurray em Pacto de Sangue/Double Indemnity, de Billy Wilder, um dos mais perfeitos, maravilhosos filmes noir da história.

“Apesar de ter interpretado diversos personagens maus, malignos, ela permaneceu uma das mais amadas personalidades da tela”, resumiu o banco de dados Baseline.

La Stanwyck não tinha a beleza perfeita de uma Ingrid Bergman, a aura de uma Greta Garbo. Mas tinha uma presença cênica estarrecedora – e aquela capacidade de, camaleônica, ter mil caras diferentes. E um talento absurdo.

Nunca levou para enfeitar a lareira de casa aquela estatuetinha de gesso de um homem careca, feio, pelado e desprovido de pinto – mas para que Oscar, se ela é muito maior que qualquer Oscar?

Foi, é verdade, indicada quatro vezes para o prêmio da Academia de melhor atriz: em 1937 por Stella Dallas, em 1941 por Bola de Fogo, em 1944 por Pacto de Sangue, em 1948 por Uma Vida por um Fio. A Academia daria a ela um prêmio honorário em 1981 “por superlativa criatividade e contribuição única à arte de interpretação”.

Tudo o que ela deseja é o que ela anos antes jogou fora

zzdesire5Imagino que para as audiências de hoje em dia Desejo Atroz possa parecer velho, antiquado. É possível.

O título com que All I Desire foi brindado pelos exibidores brasileiros, este sim, é velho, antiquado – e babaca. Desejo Atroz fica parecendo título de filme de sacanagem. E tudo que a personagem de La Stanwyck queria na vida era tudo o que ela havia antes desprezado: um casamento calmo, um maridão, uma família.

Leonard Maltin faz uma curtíssima sinopse do filme, ao qual deu 2 estrelas e meia em 4: “A família coesa e a aprovação da cidade natal é a resposta ao título, na obra situada no passado que é tornada melhor pela valente interpretação de Stanwyck como a mãe pecadora de três filhos que volta para o marido”.

Curtíssima, e, na minha opinião, cheia de equívocos. A personagem central não volta para o marido – volta para rever a filha que a idolatra. O marido vem depois. Sim, tudo o que ela deseja é ser de novo a mãe de família e esposa, papéis que escolheu jogar fora quando jovem – uma opção da qual se arrepende a cada dia mais. Mas ela não deseja a aprovação da cidade natal. Muito ao contrário. Como o espectador poderá ver no filme, a opção final de Naomi – e em especial de Henry Murdoch – é, muito ao contrário, enfrentar a pequenez, a fofocalhada. Enfrentar, de peito aberto, as convençõesinhas.

Mestre Douglas Sirk é grande mesmo nos filmes que não são seus maiores.

Anotação em janeiro de 2013

Desejo Atroz/All I Desire

De Douglas Sirk, EUA, 1953

Com Barbara Stanwyck (Naomi Murdoch),

e Richard Carlson (Henry Murdoch), Lyle Bettger (Dutch Heinemann), Marcia Henderson (Joyce Murdoch), Lori Nelson (Lily Murdoch), Maureen O’Sullivan (Sara Harper), Richard Long (Russ Underwood), Billy Gray (Ted Murdoch), Lotte Stein (Lena Engstrom), Dayton Lummis (coronel Underwood), Fred Nurney (Peterson)

Roteiro James Gunn e Robert Blees

Baseado no romance Stopover, de Carol Brink

Adaptação de Gina Kaus

Fotografia Carl Guthrie

Música Henry Mancini e Herman Stein (não creditados)

Montagem Milton Carruth

Produção Ross Hunter, Universal. DVD Versátil.

P&B, 79 min.

R, **1/2

10 Comentários para “Desejo Atroz / All I Desire”

  1. Olá,

    gostaria de propor uma parceria entre nossos blogs. Sou administrador do blog Convergência Cinéfila.
    Gostei muito do seu blog.

    Abraço.

  2. Sérgio,
    Tenho que fazer duas pequenas considerações.

    A primeira pode parecer um tanto misógina: as mulheres realmente atraentes são aquelas que exercitam mais o cérebro do que as coxas!

    Antes da segunda consideração, devo recorrer ao “A Personal Journey with Martin Scorsese Through American Movies” (http://www.imdb.com/title/tt0112120/), como fiz ao comentar a direção de Billy Wilder em “A Montanha dos Sete Abutres” (https://50anosdefilmes.com.br/2013/a-montanha-dos-sete-abutres-ace-in-the-hole/#comment-77115): no segmento “O Diretor como Contrabandista”, Scorsese afirma que, a partir dos anos 50, o subtexto passou a ser tão relevante quanto aquilo que era explicitamente demonstrado no filme. Para reforçar o argumento, cita “Tudo que o Céu permite”, também dirigido pelo Douglas Sirk e comentado por você (https://50anosdefilmes.com.br/2004/tudo-o-que-o-ceu-permite-all-that-heaven-allows/). Neate filme, o mesmo problema da submissão às convenções sociais foi abordado.

    Assim, minha segunda consideração é a de que Sirk operava em Hollywood do mesmo modo como Dias Gomes fazia na Globo, usando o sistema para criticar as mazelas do próprio sistema.

    É isso…

    Grande abraço!

    André

  3. Sérgio,
    Alguém (ou o Chico, ou o Tom, ou o Toquinho, ou o Vinícius, ou todos eles juntos) pegou a melodia do tema de amor do filme, que foi composto ou pelo Henry Mancini ou pelo Herman Stein, para um de suas músicas.

    Em https://www.youtube.com/watch?v=MQqcCklK_j4, um trecho do referido tema toca entre 0:30 e 0:46.

    O problema é que eu não lembro o nome da música… Você lembra?

  4. Caro André, não reconheci na música do filme (nem nesse trailer que você indicou) alguma canção que um dos compositores brasileiros tenha copiado.
    Mas foi ótimo você ter mandado o comentário. Eu havia copiado os créditos do Cinemania; e, de fato, pelo que diz o IMDb, os compositores são Henry Mancini e Herman Stein. Já fiz a correção.
    Obrigado, e um abraço.
    Sérgio

  5. Sérgio, brilhante seu comentário sobre a Barbara Stanwyck, ela era demais. Só gostaria de chamar a atenção para uma série de televisão que fez parte da minha infância que é a maior lembrança que tenho dessa grande atriz: Big Valley

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *