A Maleta Fatídica / Nightfall

2.5 out of 5.0 stars

Um estudioso da obra de Jacques Tourneur (1904-1977) diz que, em seus filmes, há sempre o incrível e o inconcebível. Nightfall, no Brasil A Maleta Fatídica, que o diretor francês realizou em 1956, durante o longo período que passou em Hollywood, comprova bem isso.

O que acontece na vida do personagem central, Jim Vanning (o papel de Aldo Ray) é exatamente isso. As duas coisas: incrível e inconcebível.

Depois que ouve de Vanning toda a história, a mulher que ele encontrou por absoluto acaso, Marie Gardner, resume com perfeição: – “As coisas que acontecem de verdade são sempre difíceis de explicar”.

Marie Gardner é interpretada por uma Anne Bancroft bem jovenzinha: a maravilhosa atriz de O Milagre de Annie Sullivan (1962), A Primeira Noite de Um Homem (1967) e Nunca te Vi, Sempre te Amei (1987), estava com apenas 25 aninhos – bela, bela.

Assim, vindo na pele de Anne Bancroft, Marie Gardner, bem ao contrário do que é comum nos filmes noir, é morena, e não loura. E não é uma femme fatale, má até a raiz dos cabelos louros (ou tingidos). Ao contrário: é uma boa alma.

A história que Jim Vanning conta para Marie Gardner é de fato incrível, inconcebível, difícil de explicar. Ela é contada para o espectador em flashbacks – três flashbacks, se não me engano.

No início da narrativa, é bem possível que o espectador fique um tanto perdido, um tanto perplexo. Creio que na verdade essa foi a intenção do diretor Tourneur e do roteirista Stirling Silliphant, que adaptou para o cinema a novela policial lançada por David Goodis nove anos antes, em 1947.

Um homem grandalhão que tem medo de ser visto, reconhecido

O filme começa num anoitecer – o tal nightfall do título original –, numa rua de Los Angeles. Vemos um homem grande, alto, parrudo (Aldo Ray tinha 1 metro e 83, e parece forte feito um touro), como se estivesse observando os jornais em uma grande revistaria. O rapaz da revistaria acende as luzes, e o homem se assusta um tanto. Passa um carro de polícia. Se estiver bem atento, o espectador percebe que o homem – o protagonista da história, Jim Vanning – tem medo de ser visto, de ser reconhecido.

Entram então os créditos iniciais, enquanto a câmara fica fixa, mostrando uma grande avenida movimentada, com letreiros luminosos de bares, restaurantes, lojas, cinemas, e ouvimos uma voz aveludada cantando uma canção que tem o mesmo título do filme, “Nightfall”. Tanto o cantor, Al Hibbler, quanto os autores, Peter De Rose, Charles Harold e Sam M. Lewis, são hoje ilustres desconhecidos, mas este Nightfall deve ser seguramente o único filme noir que começa com uma suave canção de amor nos créditos iniciais.

O homem grandão olha para um restaurante da avenida, mas não entra. Fica parado na calçada, como se estivesse à espera de alguma coisa.

Um outro homem, de chapéu, atravessa a avenida, aproxima-se de Jim Vanning, pede fogo. Acende o cigarro e começa a puxar papo. Comenta que os ônibus estão demorando, que o trânsito está ruim, que faz um calor danado.

Veremos um pouco mais tarde que esse segundo homem se chama Ben Fraser (interpretado por James Gregory), é investigador de uma companhia de seguros e há três meses segue todos os passos de Jim Vanning.

Ficam os dois ali de pé, na calçada de uma grande avenida de Los Angeles, naquele início de noite, fumando, num papo furado. O tema calor faz Fraser perguntar a Vanning se ele já esteve nos países tropicais; Vanning diz que sim, durante a guerra – lutou contra o Japão no Pacífico.

Fraser diz que tem que ir para casa, se não a mulher vai achar que ele ficou tomando umas em algum bar. Agradece pelo fogo, entra num ônibus. Aí então Vanning finalmente entra no restaurante. Não vai para uma mesa – senta-se diante do balcão do bar, e pede uma vodca.

Uma mulher estava sentada ali, tinha saído quando ele chegou, provavelmente para ir ao banheiro. Assim que ela volta e se senta ao lado dele, faz a seguinte pergunta:

– “O que você pensaria se eu lhe pedisse cinco dólares?”

A desculpa que Marie Gardner vai dar para aquele completo estranho é que ela esqueceu a carteira em casa. Tinha combinado jantar ali naquele lugar com uma amiga, mas a amiga deu o cano.

Através de um diálogo casual, normal, ficamos sabendo que o grandão está sendo seguido

O papo inicial da moça é um tanto esquisito, é preciso admitir – mas não chega a ser incrível ou inconcebível. As pessoas ficam se conhecendo nas mais diferentes situações. Puxar conversa no bar é uma situação bem comum.

Vanning convida a moça para jantar. Saem do bar e vão para uma mesa num reservado, aquelas que ficam junto de uma parede, separadas das demais por divisórias de madeira. Ela conta que é modelo, trabalha numa grande loja de roupas femininas chamada Robinson.

Robinson!

Onze anos depois, Anne Bancroft mostraria as belíssimas coxas para o jovem Ben Braddock, e o rapaz perguntaria para ela, com a voz inimitável de Dustin Hoffman: – “Mrs. Robinson, are you trying to seduce me?”

Quando o casal se senta para jantar, corta, e vemos aquele outro homem, Ben Fraser, chegar em casa e ser recebido pela mulher, Laura (Jocelyn Brando).

Parecem um casal absolutamente comum – e feliz. São carinhosos um com o outro. Laura pergunta como foi o dia, o marido conta que até falou com o tal Vanning. Quer dizer, apenas pediu fogo para o cigarro e conversou um pouco. É um caso difícil, ele diz para a mulher. E –

no meio de um diálogo bem bolado pelo roteirista Stirling Silliphant, porque é factível, é normal, numa conversa de marido que chega do trabalho e sua mulher – comenta que a vida de um investigador de seguros é dura.

O espectador fica com a pulga atrás da orelha. Então quer dizer que aquele Ben Fraserr é um investigador de seguros? Vanning está sendo segido por um investigador de companhia de seguros? Por quê? O que ele fez?

Quando o casal sai do restaurante, dois bandidos dominam o homem grandão

Corta, e voltamos para aquele restaurante.

Ao longo do jantar, Vanning – antes com a cara muito fechada, séria, sisuda – vai ficando com melhor humor. Tomou umas, relaxou. Está evidentemente gostando de conversar com a moça. Está gostando da moça.

Conta para ela que é desenhista, desenha qualquer coisa que encomendem a ele. (Dá para afirmar que hoje em dia ele se apresentaria como designer industrial.)

Combinam de se ver no dia seguinte. Ela diz para ele pegá-lo na Robinson (dá o endereço), às 2 da tarde.

Quando os dois saem do restaurante, no entanto, dois homens mal encarados – bandidos, é evidente – se aproximam deles. Um deles dispensa Marie, dizendo “Obrigado, senhora. Fez um bom trabalho em deixá-lo relaxado assim. Agora vá para casa e esqueça que algum dia viu esse homem.”

O sujeito diz isso de tal maneira que fica parecendo que ela entreteve Vanning ali até que eles chegassem. De tal maneira que parece que ela estava trabalhando para eles.

Marie se afasta. Vanning está absolutamente perplexo, chocado – por ter sido encontrado por aqueles dois homens, e por imaginar que Marie estava trabalhando para eles.

Estamos neste momento com 12 minutos de um filme muito curto, de apenas 78 minutos.

Daí a pouco virá o primeiro dos três flashbacks que contarão para o espectador a história daquele Jim Vanning – que na verdade se chama Rayburn.

A história que o espectador vê nos flashbacks é inacreditável

Essa história é que é absolutamente incrível, inconcebível.

Na tentativa de ser conciso, aproveito em parte a sinopse da Wikipedia:

O artista comercial James Vanning (Aldo Ray) e seu amigo, o médico Edward Gurston (Frank Albertson), de Chicago, fazem uma viagem às montanhas do Wyoming, para caçar e pescar. De repente, bem perto deles acontece um acidente: um carro fica desgovernado e cai numa ribanceira.

O dr. Edward pega sua maleta médica e os dois vão de carro até perto do lugar do acidente. Os ocupantes do carro, John (Brian Keith) e Red (Rudy Bond) tinham acabado de assaltar um banco, e carregavam, numa maleta, US$ 350 mil. Como não querem deixar vestígios ou testemunhas, assassinam o médico usando o rifle de caça de Vanning. Atiram também em Vanning, mas, por um golpe de absoluta sorte, ele sobrevive. Os bandidos vão embora, carregando a maleta do médico, idêntica à que carregava o butim.

Quando Vanning volta a si, acha a maleta que pensa ser a do amigo morto – e dá de cara com a fortuna.

Sai caminhando tonto pelo campo forrado de neve espessa. E – não se sabe por que – acaba deixando a maleta com a dinheirama perto de uma cabana abandonada no meio do mato.

Pelos jornais, fica sabendo que a polícia encontrou o corpo do amigo, e o seu rifle, cheio de suas impressões digitais.

Procurado como único suspeito da morte do médico, ele passa a fugir, de cidade em cidade. Tinha acabado indo parar em Los Angeles, onde recebeu uma encomenda de trabalho, e foi ficando.

Há muita coisa que não tem explicação na trama, um monte de por quês

Há muitos por quês a se perguntar nessa história cheia do incrível e do inconcebível. Por que, para começo de conversa, os dois sujeitos resolveram contar que tinham assaltado um banco para os dois homens que apareceram para os ajudar, após o acidente com o carro deles? Por que simplesmente não pedir para eles – já que se mostravam tão bonzinhos, tão solícitos – que dessem uma carona até a cidade mais próxima?

Depois, por que e como os bandidos descobriram o paradeiro de Vanning? Como acabaram sabendo que Vanning estaria aquela noite naquele específico restaurante? Por que raios ele deixou a maleta com a fortuna na neve, junto de uma cabana abandonada?

À pergunta mais óbvia – por que Vanning não foi logo contar sua história para a polícia, entregando os US$ 350 mil e afirmando com seguranças que não havia matado seu grande amigo –, o filme tenta responder com aquela frase dita por Marie: “As coisas que acontecem de verdade são sempre difíceis de explicar”.

Tudo bem. O espectador pode não ficar fazendo tantas perguntas. Pode aceitar que a vida tem muitos acasos, muitas coincidências. A vida tem muito de incrível e inconcebível.

“O acaso está sempre presente nos filmes de Tourneur”, diz  Michael Henry Wilson, o estudioso das obras do cineasta francês citado no começo deste texto. Ele escreveu o livro Jacques Tourneur ou la Magie de la Suggestion, e deu um longo depoimento que resultou num curta-metragem intitulado Jacques Tourneur à l’ombre du film noir, que acompanha o filme na caixa de DVDs Filme Noir Vol. 3 lançado pela Versátil.

O que diz o estudioso da obra de Tourneur faz o filme ficar maior do que a rigor ele é

É um belo depoimento. Esse Michael Henry Wilson demonstra profundo conhecimento dos filmes de Tourneur – e, mais importante ainda, um imenso amor pela obra do realizador.

Nos filmes de Tourneur, ele diz, “a aventura nunca é exaltante ou eufórica”.

“Talvez por isso os filmes dele não tiveram sucesso como os de Michael Curtiz, Howard Hawks ou John Ford, em que a aventura fazia as pessoas se exaltarem, se superarem. Não é o caso de Tourneur. Nos seus filmes, a aventura é suportada, é como um fardo. Os personagens querem se livrar dela, querem que a aventura termine.”

É bem verdade. Neste Nightfall, quando o investigador de seguros se aproxima novamente de Jim Vanning, já quando o filme mais se aproxima do fim, o protagonista da história cede ao cansaço, ao extremo cansaço de ter passado meses e meses fugindo, fugindo, para não ser identificado. E repete várias vezes: – “Me prenda, me prenda, me prenda”.

A aventura é um fardo, um fardo pesado – e Jim Vanning quer se livrar daquilo, quer enfim se entregar, mesmo sendo inocente.

“Em Tourneur” – explica o estudioso Michael Henry Wilson –, “há o incrível e o inconcebível. O inconcebível é a força da qual nem se imagina a natureza, e o incrível seria, no caso desse filme, o fato de um evento, o carro que se acidenta, mudar toda a vida do personagem, o forçar a reconsiderar tudo em sua vida, e o fazer mergulhar na solidão.”

É fascinante: os comentários do crítico fazem o filme parecer muito melhor do que ele a rigor é.

Vários dos livros de David Goodis foram adaptados para o cinema

Nightfall foi a quarta novela publicada por David Goodis (1917-1967), um escritor de vida curta, apenas 49 anos, e obra vasta – 18 livros, vários deles adaptados para o cinema. Entre as adaptações estão, só para citar umas poucas, Prisioneiro do Passado/Dark Passage (1947), de Delmer Daves, Atirem no Pianista (1960), de François Truffaut, e A Lua na Sarjeta (1983), de Jean-Jacques Beinex.

Só por aí dá para ver como Goodis, um judeu da Filadélfia, foi amado pelos franceses. Bem, a verdade é que os cineastas franceses de antes e depois da nouvelle vague adoram os escritores americanos de novelas policiais. François Truffaut filmou quatro diferentes histórias deles, que resultaram no já citado Atirem no Pianista e também em A Noiva Estava de Preto (1968), A Sereia do Mississipi (1969) e De Repente. num Domingo (1983).

Nightfall não é muito popular nos guias de filmes. Pauline Kael, Roger Ebert e o Cinebooks’ não falam sobre ele. Leonard Maltin deu 3 estrelas em 4 e uma frase para o filme: “Rápida, bem feita história de homem inocente procurado pela polícia por ter matado um amigo, caçado pelos verdadeiros assassinos pelo dinheiro roubado que ele encontrou”.

A Wikipedia cita o crítico Jay Seaver, que disse o seguinte: “Nightfall não está preocupado com a pureza do gênero; ocasionalmente ele ameaça ficar tão leve quanto um filme escapista… A narrativa é um tanto pesada, complexa. O roteiro de Stirling Silliphant começa vacilante, com Vanning fazendo comentários desagradavelmente vagos sobre não ser capaz de se lembrar da origem de suas preocupações, e o aparecimento de Marie numa espécie de bar de classe baixa (epa! o bar não é, de jeito algum, de classe baixa!) onde ela o encontra parece sem sentido.”

O texto do sujeito vai embora nesse diapasão. Cansei e desisti de continuar a botá-lo aqui.

Minha opinião, resumida em considerações finais:

Um filme interessante, sem dúvida alguma, que merece ser visto. Um dos bons filmes de Jacques Tourneur dos que já vi. Dá até para esquecer os por quês não respondidos por causa da presença da jovem Anne Bancroft – e da extraordinária sequência de Marie-Anne Bancroft participando de um desfile de moda.

É a melhor coisa do filme, essa sequência. Um brilho.

Anotação em fevereiro de 2017

A Maleta Fatídica/Nightfall

De Jacques Tourneur, EUA, 1956

Com Aldo Ray (Jim Vanning), Anne Bancroft (Marie Gardner), Brian Keith (John), Rudy Bond (Red), James Gregory (Ben Fraser), Jocelyn Brando (Laura Fraser), Frank Albertson (Dr. Edward Gurston)

Roteiro Stirling Silliphant

Baseado em novela de David Goodis

Fotografia Burnett Guffey

Música George Duning

Montagem William A. Lyon

Produção Ted Richmond, Copa Productions, Columbia. DVD Versátil.

P&B, 78 min

**1/2

2 Comentários para “A Maleta Fatídica / Nightfall”

  1. Nem sabia que tinham filmado isso. Li a novela de Goodis tem muitos anos. Se bem me lembro tem algo de inverossímil, embora a gente simpatize com o casal central.

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