Nota:
Nunca te Vi, Sempre te Amei, no original 84 Charing Cross Road, é um filme feito com profundo amor – o espectador percebe isso com facilidade. Um profundo amor pela história real que conta, pelos personagens que de fato a viveram. Pelos livros, pela literatura. Pelas pessoas, de maneira ampla, geral e irrestrita. Pela vida.
É impossível não se apaixonar por um filme feito com tanto amor.
Estranhissimamente, Roger Ebert, o maravilhoso crítico que amava os filmes tanto quanto François Truffaut amava as mulheres, as crianças e os livros, deu a 84 Charing Cross Road a cotação de 2 estrelas em 4.
Ele escreveu:
“Quase amei o filme, porque 84 Charing Cross Road é um filme feito para pessoas que amam Londres e livros. O único problema é que a heroína não chega a Londres a não ser quando é tarde demais, e ninguém no filme parece ler. Ele se baseia numa peça que fez sucesso em Londres e Nova York, que se baseava num livro que foi um best-seller. Dado o tema magro e improvável, já vai aí uma série de milagres. E no entanto há pessoas que são seduzidas pela história. Eu deveria saber. Eu li o livro e vi a peça e agora o filme, e ainda não creio que a idéia básica seja sólida.”
Às vezes, por motivos desconhecidos, não sintonizamos com um filme
Não sei bem por que escolhi essas observações de Ebert para vir logo abaixo da minha abertura, minha introdução sobre o filme. Talvez seja porque fiquei chocado ao ver como a opinião do crítico que admiro muito, e que em geral coincide com as minhas, neste caso aqui ficou tão distante, tão dessemelhante.
Talvez seja porque essas opiniões de Ebert ilustrem bem algo de que falo sempre, nos meus comentários sobre filmes: às vezes – por motivos que não conhecemos bem – não sintonizamos direito com uma obra. Pode ser alguma coisa de momento, algo passageiro, nosso estado de espírito no momento em que nos sentamos diante da tela. Às vezes isso acontece: o espectador e o filme não se conectam, não se sintonizam. Não é culpa nem do filme nem do espectador – nem é o caso de se culpar ninguém. Às vezes simplesmente isso acontece.
E, além do mais, nenhum crítico é perfeito, nenhum crítico acerta sempre.
E, além do mais, é tudo uma questão de opinião – e em matéria de opinião não há nada a rigor certo ou errado. Cada um tem a sua. Há quem respeite a opinião dos outros, há quem não saiba que existe essa coisa chamada respeito pela opinião dos outros.
(Hoje mesmo vi um comentário enviado para este site que me chamava de idiota porque eu não tinha gostado de um determinado filme, nem me lembro mais qual. Rejeito poucas mensagens enviadas ao site – mas rejeitei essa, por entender que não houve argumentação suficiente para me qualificar como idiota.)
Mas aí estou tergiversando.
Não há mistério, paixão, triângulo amoroso, tragédia – é uma história simples
Nunca te Vi, Sempre te Amei se baseia numa história real. Um dos dois protagonistas da história, Helene Hanff (1916-1997), escreveu um livro de memórias, que deu origem a uma peça de teatro, assinada por James Roose-Evans, a uma adaptação para a TV e, em 1987, a este filme, cujo roteiro foi escrito por Hugh Whitemore. O filme foi dirigido pelo inglês David Jones (1934-2008).
A história real relatada por Helene Hanff não tem, a rigor, nada, nada de especial. A rigor, a rigor, é um fiapinho de história: jovem escritora de Nova York apaixonada por livros e por literatura inglesa descobre que uma livraria de Londres tem as obras que procura, e passa a se corresponder com um dos funcionários.
Só isso.
Nenhum mistério. Nenhum crime a ser desvendado. A rigor, a rigor, nem sequer há um caso de paixão; não há traição, triângulo amoroso.
Sexo, então, zero. Não há sexo, mistério, rock’n’roll, drogas, traição, violência, traumas de infância, traumas de qualquer espécie.
Não há tragédia, catástrofe, pânico, pathos.
Não há absolutamente nada extraordinário. Nada, nada, nada.
Há apenas a relação entre uma impetuosa, independente, batalhadora jovem nova-iorquina que se esforça para ganhar a vida primeiro como leitora de roteiros e depois como escritora para a TV, e um sereno, tranquilo, cinzento senhor londrino que trabalha numa livraria especializada em edições raras de velhos livros.
Ela escreve de Nova York excitadamente, furibundamente, eloquentemente, ele responde de Londres profissionalmente, comercialmente, calmamente.
Não é preciso ter uma trama de Stieg Larsson para fascinar as pessoas
Não há nada de extraordinário na história da correspondência entre Helen Hanff, de Nova York, e Frank Doel, de Londres – e, no entanto, a história foi sucesso como livro, como peça em Nova York e Londres, e como filme.
E me espanta que o grande Roger Ebert não tenha percebido que a imensa, gigantesca extraordinariedade do filme seja exatamente isso, exatamente o fato de que uma história tão simples, tão fiapo de trama, seja capaz de apaixonar os espectadores por ser apenas isso: uma riquíssima história de sensações, emoções, escondida atrás de uma trama que a rigor não seria capaz de dar origem sequer a um conto.
Não é necessário ter uma trama de Stieg Larsson para fascinar as pessoas – eu achava que mestre Roger Ebert, à frente de todos os demais, saberia disso.
Não há como não se apaixonar pelos personagens feitos por esses atores
Tudo bem: se estivéssemos, por exemplo, diante de uma Helene Hanff interpretada por uma Cameron Diaz, ou até uma Jennifer Aniston, ou de um Frank Doel feito por um Jack Black, provavelmente eu não acharia muito encanto naquilo.
Mas Helene Hanff vem na pele de Anne Bancroft, e Frank Doel é interpretado por Anthony Hopkins. E não há como não amar os personagens que esses dois grandes atores interpretam.
Talvez a interpretação de Anne Bancroft como Helene Hanff seja sua segunda melhor na vida. Segunda, porque a atuação dela em O Milagre de Annie Sullivan/The Miracle Worker não poderia ser suplantada jamais, de maneira alguma.
A ação do filme se espalha por cerca de 20 anos – começa em 1949, e vai até o final da década de 60. Anne Bancroft aparece como se fosse desde jovem até bem madura, e está extraordinária em todas as fases. Quando ela se vira para a câmara e fala para ela – e portanto para o espectador –, mas na verdade está se dirigindo ao homem que ela nunca viu, mas de alguma forma sempre amou, essa atriz esplêndida é capaz de arrancar lágrimas de frades de pedra.
Ao rever o filme agora, vi no Frank Doel de Anthony Hopkins vários gestos do doutor Hannibal Lecter de O Silêncio dos Inocentes, e também do perfeito mordomo James Stevens de Vestígios do Dia, e também do ricaço Henry J. Wilcox, de Retorno a Howards End. Anthony Hopkins é daquele tipo de ator que é sempre ele mesmo – seja fazendo um assassino, um mordomo, um ricaço, um funcionário de livraria da Charing Cross Road. Mas o fantástico é que, na sua extraordinária representação de si mesmo, ele consegue nos dar boas atuações.
E está absolutamente perfeito, soberbo, como o inglês sério, sisudo, convencional, cinzento, como eram os ingleses na imaginação das jovens intelectuais americanas em 1949.
E não há como não amar aquela figura tão British, tão imaculadamente British, que se encanta com a compradora compulsiva de livros do outro lado do Atlântico.
A chegada de uma cesta de Natal a Londres torna-se um grande acontecimento
À falta de grandes fatos, o filme mostra alguns pequenos – e os mostra com uma suavidade, uma delicadeza, uma sensibilidade a toda prova.
Mary se espantou, nesta revisão de Nunca te Vi, com o fato de que, em 1949, a Inglaterra ainda se visse diante da falta de bens básicos de consumo, e ainda houvesse racionamento – de carne, de ovos, de diversos alimentos.
Após menos de quatro anos da Segunda Guerra, a Inglaterra enfrentava, mostra o filme, um racionamento que normalmente associamos aos períodos de guerra, ou das crises que antecedem uma hecatombe, como a Alemanha de 1932, o Chile de 1972.
Nós, aqui, neste pá tropi abençoá por Dê e boni por naturê, nunca experimentamos isso, a falta das coisas básicas, e então para nós é difícil compreender aquela realidade.
No filme, o envio pela americana trabalhadora, sem dinheiro sobrando, de bens que os ingleses não tinham faz as vezes de acontecimentos extraordinários. E a chegada das mercadorias inexistentes na ilha britânica fornece mais motivos para belas cartas.
A princípio, apenas Frank Dole respondia às cartas de Helene Hanff. Mas, depois de algum tempo, a secretária Cecily Farr (Eleanor David) também passa a se corresponder com a americana. Suas cartas são encantadoras.
Os anos vão passando; Helene Hanff se muda para outro apartamento em Nova York; as filhas de Frank Dole vão crescendo.
Os costumes vão mudando. Numa seqüência simples e linda, vemos Frank Dole sentado em um parque londrino, e diante dele passa uma inglesinha de minissaia: a velha Londres sisuda do terno, chapéu coco e do guarda-chuva virava a Swinging London dos Beatles, Rolling Stones, Mary Quant.
Este é um filme que quem vê guarda no lado esquerdo do peito
A força, a extraordinária beleza de Nunca te Vi vem da importância, da simpatia, dos personagens. Das intepretações. Do texto. Da paixão e da delicadeza com que tudo é feito e mostrado.
Quando a esposa de Frank Doel, interpretada por nada menos que Judi Dench, escreve de volta a Helene Hanff, e confessa a ela que no passado havia sentido ciúme, Nunca te Vi, Sempre te Amei, alcança os píncaros a que só atingem as obras-primas.
Como os grandes amigos, como os filmes de fato especiais, 84 Charing Cross Road é uma obra que quem vê guarda no coração.
“Os sentimentos dos dois protagonistas são sinceros, delicados, cheios de nuances”
Provando que a vida é feita de supresas, Leonard Maltin parece ter compreendido mais o filme do que Roger Ebert. Deu a ele 3.5 em 4:
“Delicioso, literário e totalmente desarmador filmes sobre a correspondência de vários anos, e a amizade crescente, entre uma exuberante mulher de Nova York e um livreiro britânico que a provê de raros volumes que ela ama mais que tudo na vida. Uma evocação afetuosamente detalhada de Nova York e Londres ao longo de 20 anos que é valorizada por atuações ideais.”
O Guide des Films de Jean Tulard também se derrete. “Este filme é de uma grande originalidade quanto ao tema: trata-se do equivalente a um romance através de cartas, e no entanto ele não é de forma alguma entediante. Os trechos recitados (datas das cartas, trechos…) se alternam com os diálogos. Os sentimentos dos dois protagonistas são sinceros, delicados, cheios de nuances. A interpretação – inclusive dos demais personagens – é excelente.”
Os exibidores franceses mantiveram o título original: o filme foi lançado na França como 84 Charing Cross Road. Já em Portugal teve o título de A Rua do Adeus.
O título brasileiro foi um daqueles raros bons achados. Nunca te Vi, Sempre te Amei é, sem dúvida, um belo título.
Ele remete ao título brasileiro de um filme de 1951, Nunca Te Amei, no original The Browning Version. Como este filme aqui de 1987, o filme inglês tem a ver com livros, literatura. Baseia-se numa peça do dramaturgo inglês Terence Rattigan, sobre um velho professor de literatura e sua jovem, bela e infiel mulher. A peça de Rattigan teve uma bela refilmagem em 1994, com o mesmo título do original e o mesmo título brasileiro.
Mel Brooks comprou os direitos de filmagem para presentear Anne Bancroft
O IMDb traz uma penca imensa de fatos, curiosidades, a respeito de Nunca te Vi, Sempre te Amei. Transcrevo alguns, botando alguns pitacos meus.
* Em meados dos anos 80, quando o filme foi produzido, o prédio onde havia funcionado a livraria Marks & Co. na Charing Cross Road, no coração da área mais agitada de Londres, tinha virado uma loja de discos. A produção teve que construir uma livraria nos estúdios Shepperton.
* Mel Brooks aparece nos créditos iniciais como um dos produtores executivos. Deve ser provavelmente o único drama (embora contenha pitadas cômicas) na filmografia do diretor de comédias escrachadas como O Jovem Frankenstein e Banzé no Oeste. Brooks comprou os direitos de filmagens para dar de presente de aniversário para sua mulher, Anne Bancroft.
* Uma curiosidade deliciosa para quem, como eu, gosta desse tipo de coisa a rigor absolutamente inútil: este foi o segundo filme em que Anne Bancroft e o outro protagonista principal não aparecem juntos em única tomada sequer. Antes, em 1965, ela e Sidney Poitier haviam feito juntos Uma Vida em Suspense/The Slender Thread, do então jovem Sydney Pollack; ela interpreta uma mulher deprimida, em crise, perto do suicídio, e Poitier faz o voluntário que atende ao telefonema dela numa dessas organizações de ajuda às pessoas, tipo CVV.
Quem gosta do objeto livro, de cheirá-lo como um vinho, gosta especialmente do filme
Me ocorreu, enquanto revíamos este belo filme, que, embora conte fatos ocorridos há menos de meio século, pouquíssimo tempo, portanto, ele trata de duas coisas muito antigas, já superadas pela tecnologia de hoje: livros e cartas.
(A frase acima, é claro, é uma citação do que diz Horacio Ferrer na letra de “Preludio para un canillita”: “Se prohibirá el romanticismo y el asombro. Han descubierto que son cosas muy antiguas, ya superadas por la técnica de hoy”.)
Livros e cartas – coisas mais pré-históricas, dinossáuricas, jurássicas.
Quem precisa hoje botar no Correio uma carta para uma livraria, encomendando um livro? Basta comprar a versão digital e ler no computador.
Ninguém mais quer saber de suportes físicos – discos, filmes, livros –, essas coisas que só ocupam espaço e juntam poeira. Tá tudo na nuvem.
Claro que isso aí que me ocorreu é uma imensa bobagem. Bullshit pura e simples
As pessoas continuam se correspondendo. Talvez hoje as pessoas se correspondam ainda mais do que em 1949, quando Helene Hanff escreveu a primeira de suas dezenas e dezenas de cartas aos livreiros ingleses. Se menos gente vai hoje a uma agência dos Correios, mais gente tem à sua disposição os e-mails, as mensagens via redes sociais, via telefone. Se eu fosse juntar a correspondência que troco com minha filha e com Mary via mensagens internas no Facebook, daria um volume três vezes maior do que o livrinho de 240 páginas que fiz logo que me aposentei, Floriano e Maria – Uma História em Cartas – 1932-1956, transcrevendo as cartas trocadas entre meu pai e minha mãe e entre meu pai e o banco que o demitiu.
Podem mudar os meios, o tipo de suporte – mas livros e cartas vão existir sempre.
Claro: quem gosta de um bom livro, quem gosta de pegar no objeto, acariciá-lo, cheirá-lo – com o mesmo prazer de quem sente o aroma de um vinho ou um charuto – vai gostar mais deste filme que os demais mortais.
Sorte deles.
Anotação em outubro de 2013
Nunca te Vi, Sempre te Amei/84 Charing Cross Road
De David Jones, Inglaterra-EUA, 1987
Com Anne Bancroft (Helene Hanff), Anthony Hopkins (Frank Doel)
e Judi Dench (Nora Doel), Jean De Baer (Maxine Bellamy), Maurice Denham (George Martin), Eleanor David (Cecily Farr), Mercedes Ruehl (Kay), Daniel Gerroll (Brian), Wendy Morgan (Megan Wells), Ian McNeice (Bill Humphries)
Roteiro Hugh Whitemore
Baseado no livro de Helene Hanff
Fotografia Brian West
Música George Fenton
Montagem Christopher Wimble
Produção Geoffrey Helman, Brooksfilm, Columbia Pictures. DVD Columbia.
Cor, 97 min
R, ****
Título em Portugal: A Rua do Adeus. Título na França: 84 Charing Cross Road.
Eu gosto mais desse filme que os demais mortais 🙂
Eu tinha visto esse filme há muitos anos, e só lembrava do essencial: que eles não conseguiram se encontrar. Isso me causava uma certa melancolia.
Acho que quem gosta de livros tende a gostar mais dele mesmo, e se gosta de correspondências a simpatia dobra. Se de quebra a pessoa gostar também de Londres (ou da Inglaterra de modo geral) aí se torna “amor eterno, amor verdadeiro”.
Nessa vez em que o revi, fiquei pensando que não devemos adiar indefinidamente uma coisa que queremos muito, principalmente se se tratar de encontrar amigos/entes queridos, por causa de outras tão pequenas. A Helene deixou de ir para Londres duas vezes: uma, por ter mudado de apartamento e ter tido que pagar um aluguel mais alto, e outra, por ter que fazer um tratamento de canal. Caramba, que economizasse em outros setores, passasse a pão e ovo, adiasse o tratamento! Poucas coisas são piores do que ficar com o sentimento de algo mal resolvido por uma atitude não tomada, ou tomada quando já não havia mais jeito. Uma espécie de remorso. Triste demais.
Quanto à correspondência, me pergunto se ela vai mesmo sempre existir. Pois hoje já há quem não goste mais de e-mails e se comunica apenas por redes sociais (são mais rápidas, mas mais impessoais). Muitos já não gostam nem das mensagens nas redes e se comunicam apenas por mensagens (curtas) de celular (conheço quem fez do celular a extensão das próprias mãos, e meio que se comunica só por ele, mesmo que um ser humano de carne e osso esteja em frente dela – meda!)
De todo modo, por algum meio escrito as pessoas vão ter que continuar se comunicando, então quem viver verá. Mas do jeito que andam escrevendo mal e cada vez com mais abreviações, sei não. Daqui a pouco vamos voltar a escrever por códigos.
Só torço para que os livros físicos persistam e tenham vida longa; eu gosto muito de tecnologia (quando ela funciona), mas não consegui ainda pegar gosto pelo livro eletrônico.
And last but not least: esse é um dos melhores títulos de filmes em português ever, e acho que resume muito bem o espírito da história.
Texto excelente, como sempre (eu sou do time dos que gostam das curiosidades, ainda que inúteis).
Boa tarde. Este é o primeiro comentário que escrevo em um blog, o qual, aliás, encontrei “por acaso”, comentário este endereçado, em primeira linha, a uma pessoa que também não conheço, autor do blog em questão, o que me leva a confirmar o fato de que o que nos une uns aos outros não se reduz a laços consaguíneos ou proximidade física. O filme em discussão trata exatamente disso, e acaba por mostrar algo que, sendo tão simples e podendo ser considerado como óbvio – palavra mais enigmática do que podemos imaginar –, revela precisamente aquilo que nos caracteriza como seres humanos: a capacidade de nutrir simpatia por alguém, de descobrir em um (aparente) estranho algo com que se identificar e, em consequência disso, ser capaz de pequenos lindos gestos. É o que me pergunto sempre quando penso sobre o que, de fato, conecta as pessoas, sobretudo aquelas que já se conhecem há algum tempo, ou mesmo as que julgam se conhecer há muito tempo.
Um breve addendum ao seu comentário a respeito da crítica de Roger Ebert: de fato, considerando o processo de leitura em sua duração objetiva no tempo, os atores do filme, no geral, não aparecem constantemente lendo os seus livros nessa perspectiva, o que, a meu ver, não corresponde, em todo caso, à noção de leitura pretendida, ouso dizer, pois me parece que o mais importante no filme é a relação que as pessoas mantêm com os livros, o significado que a leitura tem para elas e o fato de isso acabar unindo pessoas, em primeira mão, estranhas uma à outra de uma maneira absolutamente particular. No tocante a isso, faz-se mister atribuir “nota máxima”, se for esse o caso, ao filme, que nada deixou a desejar nesse quesito.
Por que não podemos ser honestos, capazes de gestos simples, de valorizar as melhores qualidades das pessoas ao nosso redor, ou melhor, de olhar as pessoas com quem convivemos de um ângulo diferente que nos permita captá-as como de fato são, como por vezes, assim como no filme, acontece com pessoas que não simplesmente nunca vimos antes? Por que temos a tendência de querer “melhorar” as pessoas (amigos, parentes, parceiros); por que não tentamos dar o espaço necessário (como o espaço de tempo para redigir uma carta, o que naturalmente pressupõe certa calma interior) para fazer as pessoas enxergarem a preciosidade que guardam dentro de si? Por que não cultivamos o que as pessoas, em verdade, já apresentam de melhor em si, o que se revela quando estamos dispostos a reconhecer as afinidades que nos unem e nos levam a nos completar nas amizades que vemos brotar das maneiras mais inusitadas possíveis, tão inesperadas e que, no final das contas, fazem tanto sentido, que parecem ter sido pensadas previamente e escritas por alguém, como em um bom livro?
Relações com determinadas pessoas, no momento atual, “forçosamente” próximas a mim têm sido difíceis nas últimas semanas. Preciso descobrir como manter a minha calma interior. A sensibilidade do filme me fez rever o meu sentido de humanidade, e, quem sabe, isso poderá me ajudar a contornar os meus presentes e futuros rumos. Ter chegado ao conhecimento de 84 Charing Cross Road me conforta ao revelar que acabamos por encontrar aquilo que procuramos mesmo que ainda não saibamos bem o que seja.
Maravilhoso artigo!Esse é meu filme de cabeceira, já perdi a conta das vezes que assisti, e sempre com o mesmo encantamento. O fato que mais surpreende as pessoas é como um filme tão sem história pode ser tão bom. Logicamente o talento do diretor, do roteirista e dos atores contribui muito, mas nesse caso em especial, acho que tem algo que vai mais além. O livro (ou melhor, as cartas)no qual o filme se baseia, é ainda mais simples em seu conteúdo, que são apenas cartas, sem nenhum tipo de narrativa intermediária. Todas as cenas do filme que não sejam trechos literários, nõa existem no livro (a dança de Frank e Nora, os extras de Helene como baby-sitter, os diálogos na livraria, e por aí vai… – tudo isso sabemos pelo texto das cartas), mas mesmo assim a leitura é completamente envolvente, fantástica. Percebe-se mais ainda o já comentado amor com que o filme foi realizado. Sou apaixonado por leitura (nem tanto pelos livros), mas nem de longe compartilho os mesmos gostos literários de Helene, exceto, talvez, a paixão por tudo o que é tipicamente inglês… E, como a vida imita a arte, já lá se vão uns dez anos que venho ensaiando minha ida a Londres, sempre abortada por um ou outro assunto mais urgente…
Nesta madrugada de inopino me esqueci do nome dela, essa notável senhora que já se foi – então apelei pro doctor Google que me remeteu a essa blog tão charming ( para dizer o mínimo).E amei tudo, que maravilhaaaaa! /////////soube à época que ela deu o roteiro ao marido, que considerou que seria um esplêndido fracasso – mas ela pediu.Salvo engano, eram 25 anos de casamento, que ela queria homenagear. Que coisa mais doce, né não? pois foi um tremendo sucesso. E lembro nitidamente uma frase que ele enviou: ”Estamos em 1956, os primeiros turistas estão chegando”. O que há por trás dessa frase é todo um mundo………….. também maravilhoso! Agradeço o comentário, tem…. APLOMB……… palavra velhíssimas repleta de charme*glamour!!!!!
Excelente análise de um filme que sempre considerei ótimo. Sou do time que cheira, apalpa, acaricia o livro. É quase uma relação com uma mulher que amo. Só não gosto muito do título que lhe deram no Brasil. Acho meio novela das sete.
Obrigado pela inteligente análise.
Muito infelizmente, filmes maravilhosos como esse não voltam a passar na TV. E quando notificar que pode ser visto no YouTube,não se consegue, mesmo estando inscrito no canal. Mas contjnuar insistindo,na esperança de encontrá-lo.
Bom dia!
Volto a este belo espaço para um novo comentário.
Concordo inteiramente com sua observação quanto ao desencontro de opiniões sobre o filme com o crítico Roger Ebert. São coisas que acontecem. Arte é expressão de sentimento. Quando não bate, não bate. Cabe a cada um respeitar a opinião do outro.
Quanto a mim, estou inteiramente ao seu lado. Acho “Nunca Te Vi, Sempre Te Amei” único. Está no meu panteão cinematográfico. Anne Bancroft, Anthony Hopkins… Simplesmente soberbos. Verdadeira aula de interpretação, o trabalho da dupla.
Um filme realmente com cheiro de livro, de um bom livro, daqueles que ficam guardados na nossa memória. Aliás, lamento até hoje não ter lido a obra literária que deu origem ao filme.
E também concordo inteiramente com você na observação que faz quanto ao (mau) destino que o filme teria com seus protagonistas nas mãos de atores inaptos para os papéis principais. Já vi muitos – você, certamente, já viu mais – enredos bons sucumbirem à má escolha do elenco.
Acabei de rever o filme. Sei lá quantas vezes o vi. Passam-se os anos, mas sempre que preciso ver algo que me toque, que faça com que me perca no encanto que pode ser um filme de cinema, “Nunca Te Vi, Sempre Te Amei” é um dos primeiros filmes que me vêm à mente.
Olá, David.
De fato, esse filme tem cheiro de livro! Você sintetizou muito bem!
Um abraço!
Sérgio
Concordo inteiramente com o colunista Sérgio Vaz. Roger Ebert quando viu o filme devia estar de ressaca ou mal humorado. Eu, que tenho o hábito de adquirir livros antigos e esgotados pela Internet – Estante Virtual – amei o filme. Abrir o pacote com a tão desejada encomenda é uma alegria simples e encantadora. Ainda não me rendi à leitura digital e continuarei a resistir. A descrição da atriz, amiga de Helene, que visita a livraria é magnifica! Que não viu, veja!
Endosso o texto inteiro. ◠‿◠
Adorei a crítica do filme. Sempre gostei desse filme, desde a primeira vez que o vi. Agora, na maturidade, gosto ainda mais. Gostei muito na sua escrita da capacidade de destacar a simplicidade da trama. Atores bons, sentimentos verdadeiros, personagens sinceros….isso é o suficiente para um bom filme!
Boa noite! Eu vi esse filme la no longíquo ano de 1988, quando passou aqui no Brasil. Confesso que, na época, nao tive maturidade suficiente para saborear o filme, na incipiência dos meus 18, 19 anos. Anos mais tarde, pelo começo da década de 2000, numa madrugada dessas, num “corujão” desses, eu revi essa obra e, numa mudança de visão, mais qualitativa, eu fiquei encantado pelo filme. Você sente as emoções nas entrelinhas das cartas. Isso! É um clássico que se vê nas entrelinhas, nos detalhes mínimos, ou subtendidos, como ocorre numa boa leitura. Grande filme, grandes atores, grande direção!