A Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata / The Guernsey Literary and Potato Peel Pie Society

Nota: ★★★☆

(Disponível na Netflix em junho de 2022.)

Embora esta produção inglesa de 2018 de nome comprido tenha em muitos momentos um tom bem humorado como o próprio título, é um drama, com muita coisa pesada, dura, doída. Parte dele se passa em território ocupado pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial.

No entanto, embora (de novo a adversativa) mostre muito do que a humanidade consegue fazer de mais cruel, é um filme believer, esperançoso. Quando ele termina, a gente fica achando que talvez quem sabe a raça humana, afinal de contas, não tenha sido uma invenção que não deu certo.

Baseado em um livro escrito por duas mulheres, Mary Ann Shaffer & Annie Barrows, realizado pelo diretor Mike Newell de forma sensível, cheia de afeto pelas pessoas, com respeito até pelos erros que elas cometem, The Guernsey Literary and Potato Peel Pie Society, no Brasil A Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata, vem se somar a outros belos filmes que acima de tudo fazem a elegia dos livros e do amor aos livros.

E que bela linhagem é esta a que pertence – a estirpe de pérolas como Nunca Te Vi, Sempre Te Amei/84 Charing Cross Road (1987).

Dele dá para dizer o mesmo que escrevi depois de rever aquela beleza que conta a história da correspondência entre um sisudo livreiro londrino e uma libertária escrjtora nova-iorquina, interpretados por Anthony Hopkins e Anne Bancroft:

“Quem gosta de livros, quem gosta de pegar no objeto, acariciá-lo, cheirá-lo – com o mesmo prazer de quem sente o aroma de um vinho ou um charuto – vai gostar mais deste filme que os demais mortais. Sorte deles.”

A ação começa na Ilha de Guernsey, Canal da Mancha

O filme abre com magníficas tomadas do céu estreladérrimo visto de um lugar sem muitas luzes, um céu com tantas estrelas quanto uma praia é cheia de grãos de areia. Vemos a Via Láctea, nesse fenômeno que é difícil de nós, os não astrofísicos, compreendermos – a gente ver no céu o lugar em que a gente vive. Quatro pessoas estão caminhando e conversando no brêu da noite no meio de um campo, sem uma luz acesa sequer. Estão evidentemente voltando de uma festa, um lauto jantar: falam sobre a comida, uma carne de porco sensacional, um gim que uma delas havia produzido.

Letreiros nos contam que estamos na “Ilha de Guernsey, Canal Inglês, sob a ocupação militar da Alemanha”.

São duas mulheres e dois homens. Um dos homens, o que fala mais, e mais alto, com voz de bêbado, é bem mais velho; os outros três são pessoas aí na faixa dos 30 e muitos ou 40 e tanto. Os três pedem ao velho que fale baixo – eles estão desobedecendo ao toque de recolher imposto pelo Exército invasor.

De repente, luzes fortes sobre os quatro. Um grupo de soldados nazistas, chefiados por um oficial, exige saber por que eles estão infringindo o toque de recolher. Uma das moças rapidamente responde que eles são de um grupo de leitura, que as autoridades alemãs têm incentivado a formação de grupos culturais. O oficial nazista pergunta o nome do grupo, e a moça fala “Sociedade Literária”… No momento em que o velho, não aguentando mais a quantidade de gim que tomou, fala, antes de vomitar, como se estivesse brincando na língua do P: – “Potato Peel Pie”.

Enquanto o velho vomita sobre a bota do oficial nazista, os três correm para tentar emendar o mau soneto: – “The Literary and Potato Peel Pie Society”. A Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata.

O oficial determina que, no dia seguinte, seus comandados examinem se aquela sociedade existe mesmo. E tira sua tropa dali, antes que o velho inglês volte a vomitar.

Corta, vemos surgindo na tela, como se estivessem sendo datilografadas por uma velha máquina de escrever, as letras que compõem o título do filme. Corta, e estamos em “Londres, 1946”, conforme um novo letreiro nos informa. Dentro de um daqueles ônibus londrinos vermelhos de dois andares, estão a protagonista da história, Juliet Ashton, o papel daquela gracinha da Lily James, e seu amigo Sidney Stark, o papel de Matthew Goode.

Informação demais nos primeiros minutos

Muito rapidamente, mas muito rapidamente mesmo, ficamos sabendo que Juliet Ashton havia escrito um livro chamado Izzy Bickerstaff Vai à Guerra, com o subtítulo Uma Coleção de Contos, que estava fazendo um tremendo sucesso. Sidney, além de grande amigo, era seu editor, e havia combinado com um jornalista do The Times, nada menos que The Times, aquela instituição tão britânica quanto a própria monarquia, que Juliet viajaria por diversas cidades inglesas fazendo leituras de trechos de seu livro, e depois escreveria artigos para o jornal contando sua experiência.

Vemos também que Juliet acha toda aquela história de seu personagem Izzy Bickerstaff uma coisa menor, boba. Antes, ela havia escrito uma biografia crítica de Anne Brontë, a menos celebrada das irmãs Brontë, que havia vendido exatamente 48 cópias. E, perguntada numa reunião para autógrafos numa importante livraria se estaria preparando um seguindo livro, ela diz que sim, que está preparando Manias Inglesas, uma coletânea de absurdos que acontecem no país. Por exemplo: existe uma Sociedade Londrina Para Decência Pública, que defende que os cavalos usem calças. Os londrinos presentes riem bastante disso.

Também muito rapidamente, vemos que Sidney está acompanhando Juliet para ver apartamentos que ela poderia eventualmente comprar – e, quando estamos com apenas 6 minutos de filme…

Sim, tudo o que relatei até aqui acontece nos 5 primeiros minutos de filme.

Quando estamos com apenas 6 minutos de filme, Juliet entra num imenso apartamento em um grande prédio recém construído, juntamente com Sidney e um corretor – e há um flashback de imagens impressionantes, um tanto surreais, em que ela vê o próprio apartamento em que morava com os pais ser destruído por bombas da Luftwalle.

Antes que o filme chegue aos 10 minutos, Juliet está dançando aquelas coisas americanas animadérrimas com um americano, diplomata e milionário, Mark Reynolds (o papel de Glen Powell, na foto abaixo). O americano está absolutamente encantado com a moça, e os dois começam a namorar.

Confesso que a quantidade de informação que os roteiristas comprimiram nesses primeiros minutos do filme me deixaram… Não, não me deixaram zonzo. Me deixaram distante, desligado, sem conseguir entrar em sintonia com o filme.

Como assim, um clube literário por causa de um porco?

Quando estamos com 10 minutos de filme, Juliet recebe uma carta de um tal Dawsey Addams, de quem ela nunca ouviu falar – mas que o espectador já havia visto, naquela primeira sequência, em que os quatro amigos caminhavam na noite estreladíssima em Guernsey e são parados pelos nazistas.

E foi aí que me liguei com o filme, entrei em sintonia com ele.

Dawsey (o papel do holandês Michiel Huisman, o Daario Naharis de Game of Thrones) conta na carta que tinha ido parar na mão dele um livro que havia pertencido a ela, tinha seu nome, um livro de Charles Lamb, Ensaios Selecionados de Elia. Ele pertence a um clube de leitura, a Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata, formada por um grupo de amigos na ilha de Guernsey, durante a ocupação nazista. “Nós formamos a sociedade para esconder um porco assado dos alemães”, relata. E pede: como na ilha não há livrarias, será que ela poderia indicar a ele uma livraria de Londres que pudesse remeter para ele um exemplar de um outro livro de Charles Lamb, Contos de Shakespeare?

É claro que a carta deixa Juliet absolutamente encantada – e curiosa. Como assim? Um grupo de amigos formou uma sociedade literária na ilha de Guernsey para esconder um porco dos nazistas? Ela compra um exemplar de Contos de Shakespeare e o envia para o endereço de Dawsey, com uma carta.

O texto da carta é um encanto: “Caro sr. Dawsey, que bom que sua carta me encontrou, e meu livro a você. Foi triste eu me separar do sr. Lamb, mas estava sem dinheiro na época. Talvez os livros tenham um instinto secreto que os leve até os leitores perfeitos. Seria tão bom se fosse assim! Achei o livro, e fico feliz em presenteá-lo, em troca de respostas para três perguntas. Por que tiveram que esconder um porco assado? Como um porco fez com que formassem a sociedade literária? E, a mais importante de todas: o que é uma torta de casca de batata?”

O namoro com o americano milionário vai ficando sério – mas a curiosidade de Juliet sobre as pessoas da ilha de Guernsey que formaram uma sociedade literária para esconder um porco assado não parava de crescer. E a moça decide ir até lá para conhecer aquele grupo.

No momento em que ela vai embarcar no navio em direção a Guernsey, Mark Reynolds a pede em casamento, ajoelhado no cais, e a presenteia com um anel daqueles que brilham mais que o sol e custam o preço de um bom apartamento.

Fala-se muito de Elizabeth, mas ela não está na ilha

Como já foi dito, Dawsey Adams era um dos quatro que havíamos visto na sequência de abertura do filme. O outro homem, o idoso que vomita junto da bota do oficial nazista, chama-se Eben Ramsey, é o carteiro da ilha – e é interpretado pelo grande Tom Courtenay, o Pasha de Doutor Jivago (1965).

Uma das duas moças é Isola Pribby (Katherine Parkinson), que produz gim em sua própria pequenina fazenda. A outra é Elizabeth McKenna (Jessica Brown Findlay), que terá importância gigantesca na trama.

Faz ainda parte do grupo de amigos que fundou a sociedade literária Amelia Maugery (o papel de Penelope Wilton, a Isobel Crawley de Downton Abbey), uma senhora que perdeu a filha na guerra, e tinha um amor maternal por Elizabeth, que era a maior amiga da filha morta. Duas crianças costumam participar das reuniões do grupo: Eli Ramsey, neto de Eben e seu ajudante no posto de correio (o papel de Kit Connor), garoto aí de uns 10 a 12 anos, creio, e Kit (Florence Keen), uma garotinha louríssima, uma gracinha, de uns quatro anos, por aí. Kit é filha de Elizabeth.

Ao chegar à ilha de Guernsey, Juliet ficará conhecendo todo esse grupo, é claro – menos Elizabeth.

Juliet e também os espectadores vão ficar sabendo informações a respeito de Elizabeth bem pouco a pouco, ao longo do filme. Há um certo mistério em torno da bela moça. O que primeiro dizem para Juliet é que ela está fora da ilha, viajou. Depois, que ela foi presa pelos alemães e levada da ilha.

As informações que aquelas pessoas fascinantes demoram muito a fornecer para Juliet – e para o espectador – são surpreendentes.

É claro que não faria sentido falar sobre elas – seria spoiler. É importante registrar que isso que contei acontece nos primeiros 20, 25 minutos do filme, que tem encantadores 124.

Não houve filmagens na ilha em que se passa a história

Guernsey.

Eu tinha ouvido falar nessa ilha, mas não sabia absolutamente nada sobre ela, a não ser o fato de que fica no Canal da Mancha – ou The English Channel, como eles chamam aquele trecho do Atlântico que separa as Ilhas Britânicas do continente europeu.

Guernsey na verdade fica mais perto da Normandia, na França, do que da Grâ-Bretanha. Juntamente com Jersey, que é menor que ela, Guernsey forma as Ilhas do Canal. As duas ilhas são dependências da Coroa Britânica, mas não fazem parte do Reino Unido, conforme explica a Wikipedia. Sua população não chega a 70 mil habitantes.

O filme nos mostra paisagens belíssimas. Comentei mais de uma vez com a Mary sobre a beleza do lugar. Foi uma surpresa saber, depois de ver o filme, é claro, que nenhuma sequência foi de fato filmada em Guernsey.

As filmagens foram, em parte nos estúdios Ealing, em Londres. Algumas sequências de exteriores foram filmadas no London Charterhouse, um complexo histórico de prédios no bairro de Farringdon, na capital inglesa. As cenas nas docas foram feitas em Bristol, e boa parte das filmagens aconteceu em North Devon.

Não consegui encontrar uma explicação para o fato de a produção ter optado por não filmar nada na própria ilha de Guernsey. Questões de logística, certamente.

O livro tem sido elogiadíssimo

The Guernsey Literary and Potato Peel Pie Society, o livro Mary Ann Shaffer e Annie Barrows, foi escrito em forma de cartas entre um personagem e outro – assim como Ligações Perigosas, de Choderlos de Laclos, de 1782. Lançado em 2008, foi um sucesso de crítica e público, entrou para as listas dos mais vendidos e teve críticas extremamente positivas. A Amazon selecionou frases de jornais e revistas, e transcrevo algumas:

Da revista People: “Uma jóia. Comovente, com observações interessantes, Guernsey é uma pequena obra-prima sobre amor, guerra e o imensurável apoio encontrado em bons livros e bons amigos.”

Do Chicago Sun-Times: “Uma delícia para os amantes de livros, um hino implícito e às vezes explícito a todas as coisas literárias.”

Do Sunday Times de Londres: “Um cintilante romance epistolar de inteligência radiante, uma erudição suavemente antiga e escrito com grande segurança e desenvoltura.”

Do próprio The Times de Londres, tão citado no filme: “Cozinhado perfeitamente ao ponto: sutil e elegante no sabor, e ainda assim emocionalmente satisfatório até o fim.”

Uau!

Mary Ann Shaffer infelizmente não viveu para ouvir esses elogios ao livro escrito a quatro mãos por ela e sua sobrinha Annie Barrows. The Guernsey Literary and Potato Peel Pie Society foi publicado em 2008, pouco depois da morte de Mary Ann naquele mesmo ano.

Me surpreendo ao saber que as duas – ao contrário do que imaginei, ao contrário do que seria mesmo de se imaginar – não são inglesas, e sim americanas. Mary Ann Shaffer nasceu no interior da Virginia Ocidental, em 1934; estava portanto com 74 anos no ano em que seu livro foi publicado. Sempre trabalhou com livros – em bibliotecas, em livrarias e em editoras de livros.

Sua sobrinha Annie Barrows nasceu em 1962, em San Diego, Califórnia. Escreveu uma série de livros para crianças, Ivy and Bean, que fez muito sucesso nos Estados Unidos, segundo a Wikipedia, e também diversas obras para o público adulto.

A editora Rocco lançou o livro no Brasil, com o título certinho, A Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata, em tradução de Léa Viveiros de Castro,

Nos créditos, aparece escrito que o roteiro é de autoria de Don Roos e Kevin Hood e Thomas Bezucha. A conjunção “e”, “and”, indica, segundo as normas do Screen Writers Guild, o sindicato dos roteiristas, que Don Roos elaborou um roteiro, que depois foi retrabalhado por Kevin Hood, que depois foi retrabalhado e posto em forma final por Thomas Bezucha. (Quando dois ou mais roteiristas trabalham juntos, a quatro, seis mãos, usa-se fulano & sicrano & beltrano.)

Ou seja: foi bastante trabalhosa a tarefa de transformar o romance escrito em forma de cartas por essas duas americanas obviamente apaixonadas por livros em um roteiro cinematográfico.

Não li o livro, e então não dá para saber o quanto o roteiro final acabou sendo fiel, se não aos detalhes da trama, ao menos ao espírito do romance. Muito provavelmente foi, sim.

O veterano diretor Mike Newell tem em seu currículo o que eu considero um crime: o filme O Amor nos Tempos do Cólera, de 2007, é uma absoluta porcaria – algo que parecia impossível de se fazer a partir do belíssimo, maravilhoso, extraordinário romance de Gabriel García Márquez. Mas ele é também o autor daquela admirável pérola que é Quatro Casamentos e um Funeral (1994), e tem no currículo um bando de bons filmes, de Donnie Brasco (1997) a Harry Potter e o Cálice de Fogo (2005).

Fez um belíssimo trabalho com o roteiro baseado no romance das duas americanas.

Ouvimos, ao final, trechos de grandes obras

Falei na abertura deste texto da estirpe de filmes sobre livros, a paixão por livros. Gostaria de registrar alguns outros deste belo conjunto, que agora tem também este The Guernsey Literary and Potato Peel Pie Society:

* o já citado Nunca te Vi, Sempre te Amei/84 Charing Cross Road, de David Jones, 1987, com Anthony Hopkins e Anne Bancroft;

* Fahrenheit 451, de François Truffaut, o cineasta que amava as mulheres, os livros e a ternura, 1966, com Oskar Werner e Julie Christie;

* O Mestre dos Gênios/Genius, de Michael Grandage, 2016, a história real de William Maxwell Evarts Perkins, que foi editor de livros na Charles Scribner’s Sons, de Nova York, descobriu F. Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway, e editou os livros deles – editou mesmo, muitas vezes dizendo a eles que deveriam reescrever algumas partes. Com Colin Firth, Jude Law e Nicole Kidman;

* Um Ano em Nova York/My Salinger Year, de Philippe Falardeau, 2020, outra história real, sobre uma jovem, muito jovem, Joanna Rakoff, que foi trabalhar numa das mais prestigiosas, importantes agências literárias de Nova York – e acabou tendo contato com o autor mais recluso da História, o lendário J.D. Salinger. Com Margaret Qualley e Sigourney Weaver;

* A Livraria/The Bookshop, de Isabel Coixet, 2017, a história de uma jovem viúva amante das letras e dos livros que luta para abrir e manter uma livraria em uma pequenina cidade litorânea inglesa no finalzinho dos anos 1950. Com Emily Mortimer, Bill Nighy e Patricia Clarkson.

No final de Fahrenheit 451, o ex-bombeiro Montag está na região onde vivem as pessoas da resistência à ditadura que proíbe os livros, e cada um sabe de cor uma obra literária, para manter acesa a arte. Um velhinho está ensinando para o neto a íntegra de uma obra de Charles Dickens, creio que Oliver Twist.

No final deste The Guernsey Literary and Potato Peel Pie Society, enquanto vão rolando os créditos finais, ouvimos as vozes dos atores que fazem os principais papéis recitando trechos de romances. Alguns são bem óbvios, a gente reconhece imediatamente – outros não são tão fáceis assim. O IMDb, esse site enciclopédico que tem absolutamente tudo, traz a relação das obras:

* Ao Farol/To the Lighthouse, de Virginia Woolf, na voz de Amelia Maugery-Dame Penelope Wilton;

* A Ilha do Tesouro/Treasure Island, de Robert Louis Stevenson, nas vozes de Eben Ramsey-Sir Tom Courtenay e Eli Ramsey-Kit Connor;

* A Tempestade/The Tempest, de William Shakespeare, nas vozes de Dawsey Adams-Michiel Huisman e Juliet Ashton-Lily James;

* Jane Eyre, de Charlotte Brontë, na voz de Isola Pribby-Katherine Parkinson;

* A Importância de Ser Honesto/The Importance of Being Earnest, de Oscar Wilde, na voz de Sidney Stark-Matthew Goode;

* “The End”, de A.A. Milne, na voz da garotinha Kit-Florence Keen.

Coincidências – e uma garota que tirou a sorte grande

Mathew Goode. Dame Penelope Wilton. Jessica Brown Findlay. E Lily James.

Todos esses quatro atores já haviam trabalhado juntos – bem, se não propriamente juntos, ao menos na mesma obra, a maravilhosa série Downton Abbey.

Penelope Wilton, que aqui faz Amelia Maugery, interpretou, como já foi dito, Isobel Crawley, a mãe do primeiro marido de Lady Mary Crawley – o papel de Michelle Dockery.

Matthew Goode, que aqui faz Sidney Stark, o amigo fiel e agente da jovem escritora Juliet Ashton, na série interpreta Henry Talbot, sujeito elegante, interessante, charmoso, porém desprovido de título de nobreza e de dinheiro, por quem Lady Mary se sente atraída na sexta temporada.

Jessica Brown Findlay aqui interpreta Elizabeth McKeena, a moça de quem Amelia gosta como se fosse filha biológica, e que é presa pelos alemães durante a ocupação. Em Downton Abbey ela faz Lady Sybil Crawley, a mais jovem das três filhas do conde de Grantham.

E, finalmente, Lily James, essa moça que, provavelmente mais do que qualquer outra atriz de língua inglesa surgida nas últimas décadas, nasceu com a bundinha voltada para a Lua, se o eventual leitor me permite usar a expressão da sabedoria popular.

O IMDb traz um interessantíssimo item na página de Trivia. Há um aviso no site enciclopédico de que se trata de um spoiler; sou muito cuidadoso com spoilers, mas não creio que aquele item chegue a ser assim propriamente um estraga-prazeres, uma revelação que atrapalhe o espectador.

É o seguinte:

“Quando Lady Sybil (Jessica Brown Findlay) deixou Downton Abbey, Lady Rose (Lily James) a substituiu como uma personagem feminina jovem com uma visão inovadora do mundo. Neste filme, Juliet (Lily James) substitui Elizabeth (Jessica Brown Findlay) como a personagem que faz a sociedade permanecer coesa, com amor.”

É fascinante como a arte imita a vida.

E aqui vai mais um item da página de Trivia do IMDb sobre o filme:

Várias atrizes foram consideradas pelos realizadores para o papel central, esse da jovem escritora Juliet Ashton. Pensaram em Rebecca Ferguson, a belíssima sueca de A Garota no Trem (2016) e O Rei do Show (2017). Em Michelle Dockery – olha aí Downton Abbey de novo… Houve uma tentativa de contratar Sir Kenneth Branagh para dirigir, e por essa época optou-se por Kate Winslet, aquela absoluta maravilha. Depois pensou-se na também bela e talentosa Rosamund Pike.

Mas o papel acabou caindo no colo da garota Lily James. De 2015 para cá, essa moça nascida em 1989 no Surrey já foi, além de Lady Rose em Downton Abbey, a Cinderela na produção da Disney de 2015 dirigida por Kenneth Branagh, a Natasha Rostova numa minissérie baseada no Guerra e Paz de Tolstói de 2016, uma secretária de Winston Churchill em O Destino de uma Nação de Joe Wright de 2017, e uma jovem aprendiz de arqueologia em A Escavação (2021), ao lado de Ralph Fiennes e Carey Mulligan. Vai ter sorte assim na… Deixa pra lá, que a moça merece.

Atenção, cuidado: abaixo vai um spoiler.

Este texto já está grande demais, mas ainda gostaria de comentar sobre um ponto do filme.

Não vou entrar em detalhes sobre a trama do film além do que acontece nos primeiros 20, 25 minutos, e já relatei aí acima. Mas vai agora, a rigor, um spoiler, e então eu pediria ao eventual leitor que ainda não viu o filme que parasse por aqui.

Vários filmes sobre a Segunda Guerra Mundial já mostraram as reações das populações de países invadidos pelos nazistas às mulheres que tiveram relações com soldados invasores. Não me lembro assim de repente, de cabeça, de vários títulos, mas tenho na memória as cenas de mulheres que tiveram seus cabelos cortados com máquina zero e expostas à execração pública – muitas vezes na França. Ter tido relação com um invasor nazista era considerado um crime tão grave quanto colaborar com ele, passar informações, ajudar o inimigo.

A protagonista de Hiroshima Mon Amour, o grande clássico de Alain Resnais de 1959, interpretada por Emmanuelle Riva, quando jovem tinha tido um caso com um soldado alemão. Embora tenha quase meio século que não reveja o filme do mestre Resnais, algumas imagens dele ainda estão na minha memória.

Acho num site do qual jamais tinha ouvido falar, pragmatismopolitico.com.br, um informativo texto sobre o assunto, “O triste fim das viúvas da ocupação”. Vou transcrever uns poucos parágrafos.

“Após a liberação dos territórios ocupados pelos alemães dos países europeus, milhares de mulheres que tinham relacionamentos com soldados alemães foram expostas a execuções humilhantes e brutais nas mãos de seus próprios concidadãos. Era a ‘Épuration Légale’ (‘purga legal’), a onda de julgamentos oficiais que se seguiu à liberação da França e da queda do Regime de Vichy. Estes julgamentos foram realizados em grande parte entre 1944 e 1949, com ações legais que perduraram por décadas depois.

“Ao contrário dos Julgamentos de Nuremberg, a ‘Épuration Légale’ foi conduzida como um assunto interno francês. Aproximadamente 300.000 casos foram investigados, alcançando os mais altos níveis do governo colaboracionista de Vichy. Mais da metade foram encerrados sem acusação. De 1944 a 1951, os tribunais oficiais na França condenaram 6.763 pessoas à morte por traição e outros crimes. Apenas 791 execuções foram efetivamente realizadas. No entanto, 49.723 pessoas foram condenadas a ‘degradação nacional’, que consistia na perda total de direitos civis.

“A campanha para identificar e massacrar os colaboracionistas do regime alemão puniu cerca de 30.000 mulheres com humilhação pública, por suspeita de que tiveram ligações ou porque eram prostitutas e se relacionaram com os alemães. Algumas vezes, a coisa toda não passava de briga de vizinhas – uma denunciando a outra como acerto de contas pessoais – ou então uma denúncia vazia de participantes realmente ativos, que dessa forma tentavam salvar sua pele desviando a atenção de sua cooperação com as autoridades da ocupação. (…)

“A perseguição não se limitou a França, quase todos os países do bloco europeu de aliados fizeram o mesmo. Na Noruega, cinco mil moças que deram à luz filhos de alemães foram condenadas a um ano e meio de trabalho forçado. Quase todas as crianças foram declaradas pelo governo como deficientes mentais e enviadas para uma casa para retardados, onde foram mantidas até os anos 60.”

Pois é.

São raríssimos os filmes que mostram histórias de amor entre mulheres de países invadidos com soldados invasores de uma forma mais humana, sensível, com afeto pelas pessoas, com respeito até pelos erros que elas eventualmente possam ter cometido. Que mostram essa verdade tão básica, tão fundamental, de que nem todo soldado alemão era um nazista filho da puta – que, ao contrário, milhares e milhares deles eram apenas pessoas que haviam sido forçadas a servir o exército nazista, a ir lutar em outros países.

Este belo, simpático A Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata faz isso.

Que maravilha.

Anotação em 6/2022

A Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata/The Guernsey Literary and Potato Peel Pie Society

De Mike Newell, Reino Unido, 2018

Com Lily James (Juliet Ashton)

e Michiel Huisman (Dawsey Adams), Katherine Parkinson (Isola Pribby), Tom Courtenay (Eben Ramsey), Penelope Wilton (Amelia Maugery), Jessica Brown-Findlay (Elizabeth McKenna), Matthew Goode (Sidney Stark, o amigo e agente de Juliet), Glen Powell (Mark Reynolds, o milionário americano), Kit Connor (Eli Ramsey, o neto de Eben), Bronagh Gallagher (Charlotte Stimple, a que aluga quartos), Florence Keen (Kit, a filhinha de Elizabeth), Marek Oravec (oficial alemão), Andy Gathergood (Eddie Meares)

Roteiro Don Roos e Kevin Hood e Thomas Bezucha

Baseado no romance de Mary Ann Shaffer & Annie Barrows  

Fotografia Zac Nicholson

Música Alexadra Harwood

Montagem Paul Tothill

Casting Susie Figgis

Direção de produção James Merifield

Produção Graham Broadbent, Paula Mazur, Mitchell Kaplan, StudioCanal, Blueprint Pictures, Canal+, Ciné+, Mazur / Kaplan Company.

Cor, 124 min (2h04)

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Um comentário para “A Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata / The Guernsey Literary and Potato Peel Pie Society”

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