45 Anos / 45 Years

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Nota: ★★★☆

Na semana em que está para comemorar, com grande festa, os 45 anos de casamento, um casal que se ama, vive bem, em harmonia e com carinho, se vê às voltas com um fantasma cuja presença cada vez mais forte vai se interpondo entre eles e os distanciando.

Fantasma, naturalmente, é uma figura de linguagem. Não é um filme de terror – é um drama sério sobre relações humanas, e sobre como lembranças, elipses, silêncios, pequenas atitudes podem causar danos graves a uma convivência até então terna, suave, harmônica, entre duas pessoas.

É um fiapo de história – baseado em um conto, “In Other Country”, de David Constantine, que foi adaptado por Andrew Haigh, também diretor do filme. Um fiapo de história, no sentido de que há poucos acontecimentos. É um filme feito muito mais de clima, atitudes, gestos, silêncios, expressões que de fatos ou mesmo palavras.

Assim, para que funcionasse, seria necessário ter dois atores esplendorosos. Como é um filme inglês, 45 Anos tem dois atores esplendorosos – Charlotte Rampling e Tom Courteney. Por isso, é um belo, sensível filme.

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Uma carta da Suíça informa que foi encontrado o corpo da ex-namorada dele

Geoff e Kate vivem numa casa confortável, no campo, mas a poucos minutos de carro de uma cidade média. Poderia ser qualquer uma, e portanto não se fala o nome da cidade em momento algum. Mas as filmagens foram em Norwich, em Norfolk, junto do litoral oriental da Inglaterra. Estão aposentados, os dois. Ele foi gerente de uma grande fábrica da região, ela foi professora. Kate casou-se muito nova, com uns 20 anos, e portanto está com uns 65. Geoff é um pouco mais velho, deve estar aí com 75.

(Charlotte Rampling é de 1946, e portanto estava com 69 em 2015, ano de lançamento do filme. Tom Courtenay é de 1937, estava com 78,)

Nunca tiveram filhos.

Kate é muito mais atuante, ativa que o marido; caminha todas as manhãs com Max, o cachorrão do casal, dirige até a cidade todos os dias, faz as compras, cuida da casa. É ela que, bem no início da narrativa, está cuidando de todos os preparativos da grande festa de 45 anos do casamento, a ser realizada num salão da cidade, na noite de sábado.

Geoff é menos ativo que a mulher, mas não está mal de saúde, e não tem problemas com a memória. Cinco anos antes, na época em que o casal iria comemorar com uma festa os 40 anos de união, ele teve um problema de saúde, e a comemoração foi canceladas. (Bem mais adiante, saberemos que foi um problema cardíaco – ele pôs uma ponte de safena.)

No dia em que a ação começa – a segunda-feira da semana em que haverá a festa –, após sua caminhada pelo campo inglês, Kate encontra o marido sentado à mesa da cozinha lendo uma carta. Pergunta o que é, ele diz que veio da Suíça, está em alemão – encontraram o corpo de Katya. “A minha Katya”, ele diz.

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Com o marido fora de casa, Kate mexe nas coisas dele – e tem uma grande surpresa 

O espectador percebe imediatamente que Kate sabia de Katya, que Geoff havia contado sobre a namorada que tinha tido antes de os dois se conhecerem, mais de 45 anos antes. Mas – isso o espectador irá percebendo ao longo da narrativa – Geoff nunca havia contado em detalhes para Kate como era sua relação com a jovem namorada, e exatamente como tinha sido sua morte.

Tinha acontecido quando os dois, bem jovens, em 1962, escalavam montanhas na Suíça; Katya tinha caído numa fenda da montanha, e seu corpo havia ficado ali, intocado e preservado sob a camada eterna de gelo.

Agora, mais de 45 anos depois, com o degelo maior do que o normal durante o verão, o corpo havia sido localizado, e as autoridades suíças avisavam Geoff e sugeriam que ele fosse à Suíça, caso quisesse providenciar um enterro.

A partir do recebimento da carta, Geoff passará a pensar em Katya, a falar dela para Kate, a contar detalhes sobre o relacionamento que jamais havia contado.

Geoff havia transformado o sótão da casa em área exclusiva sua,  onde guardava antigos papéis, antigas fotos. Depois da carta, passou a ir para lá com frequência – e não seria difícil Kate imaginar que lá ele deveria estar remexendo em lembranças da antiga namorada.

O filme vai nos mostrando letreiros que identificam os dias da semana, que mostram a aproximação do dia da festa dos 45 anos – terça-feira, quarta-feira, quinta-feira.

Geoff vai ficando irritadiço, nervoso, anti-social.

Para a quinta-feira, seu maior amigo, ex-colega de trabalho, George (David Sibley), havia combinado um almoço na própria fábrica, em homenagem ao antigo funcionário que estava comemorando 45 anos de casamento. Na véspera, no entanto, Geoff demonstrava absoluto desinteresse por ir até a fábrica rever velhos companheiros. Kate força um tanto a barra para que ele vá.

E, enquanto o marido está lá, ela sobe até o sótão, o território exclusivo dele. Quem procura acha e não perde tempo, dizia minha mãe, e não dá outra – Kate encontra algo que a deixa surpresa, zonza, confusa, sem saber o que fazer.

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Geoff é um velho socialista, que defende suas idéias de maneira até agressiva

Dois detalhes sobre este filme belo e triste, um sobre política, outro sobre música.

Geoff é mostrado como um trabalhista ferrenho, renitente. Mais ainda: um socialista, mais à esquerda que o próprio Partido Trabalhista. Tem opiniões firmes, que às vezes manifesta de maneira grosseira, agressiva. Lena (Geraldine James), mulher de George e grande amiga de Kate, não consegue esquecer que um dia ela comentou que o governo de Margaret Thatcher tinha feito algumas coisas boas, e por isso Geoff a chamou de fascista.

Quando sai do almoço com os velhos companheiros na fábrica, e Kate está ainda quase em estado catatônico pela descoberta que acabara de fazer no sótão de sua casa, ele fica se queixando de tudo e de todos, em especial de Red Len, que tinha esse apelido em homenagem a Lênin, por ser um comunista de primeira linha, e hoje tem um neto que é banqueiro. – “Imagina”, ele grita, para a mulher que está absolutamente em outra frequência, em outro planeta, “Red Len tem um neto que é banqueiro!”

Música.

Os organizadores da festa perguntam que músicas devem ser tocadas no evento. O telefonema vem exatamente quando Kate está descendo do porão, em absoluto estado de choque.

Ela consegue enumerar algumas músicas que deseja. “Happy Together”, com The Turtles. “For what it’s worth”, com Buffalo Springfield – a canção de Stephen Stills que se tornou hino dos jovens americanos que protestavam contra a guerra do Vietnã. “Your precious love”, com Marvin Gaye. “Higher and higher”, com… E ela não conseguia se lembrar – Jackie Wilson?

O espectador não ouve o que o sujeito do outro lado da linha está dizendo, mas ouve ela responder: “No, no Elton John”.

Eis aí então a receita da trilha sonora de uma festa que pudesse agradar a um veterano lutador da working class inglesa.

Mas, em nome do romantismo, do amor, ela abre uma exceção para uma canção de amor, a primeira canção que Geoff e ela haviam dançado quando se conheceram, quase meio século atrás: “Smoke gets in your eyes”, com The Platters.

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Não há trilha sonora: o diretor quer que o espectador ouça bem o silêncio

É interessante notar que 45 Anos não tem trilha sonora. Não há trilha composta para o filme – apenas ouvimos algumas canções que tocam num rádio de carro, aqui ou ali. Música incidental, música que os personagens estão ouvindo. Não há música composta para o filme, para os momentos de silêncio, para – mesmo que o espectador não perceba – ajudar a criar um determinado clima, de tristeza, de agonia, de expectativa, seja o que for.

Nada.

O filme começa sem melodia. Há rápidos créditos iniciais, com o nome das companhias produtoras, o nome dos dois atores, Charlotte Rampling e Tom Courteney, nessa ordem, e o nome do filme, em letras brancas sobre fundo negro. Depois vemos uma tomada geral da casa do casal, no meio do campo inglês – e não há música, não há trilha sonora.

Há muitas sequências em que se faz silêncio – e o diretor não quis preencher aquele espaço com trilha sonora. Faz até lembrar as regras rígidas dos dinamarqueses do Dogma 95. A segunda regra de castidade do Dogma dizia: “O som não deve jamais ser produzido separadamente da imagem ou vice-versa. (A música não poderá ser utilizada a menos que ressoe no local onde se filma a cena).”

Com algum mau humor, poderíamos dizer que o diretor quer, com esse estilo seco, e um tanto distanciado – há uma grande insistência em tomadas amplas, planos gerais, planos de conjunto –, chamar a atenção da audiência para o fato de que ele é jovem, e seu estilo difere daquele do cinemão comercial.

Sem má vontade, dá para dizer que o diretor quer que o espectador ouça o silêncio nos muitos momentos em que não há diálogos.

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O filme tem recebido diversos prêmios; os dois atores venceram em Berlim

Andrew Haigh nasceu em 1973; entre 2003 e 2009 escreveu e dirigiu quatro curta-metragens. Seus dois primeiros longas – Greek Pete, de 2009, e Weekend, de 2011 – são sobre temas relacionados à homossexualidade: o primeiro é sobre prostituição masculina, e o segundo, um drama romântico sobre o encontro de dois homens. Haigh é casado com um escritor, Andy Moorwood.

45 Anos, portanto, seu terceiro longa, é o primeiro não dedicado à temática gay.

Aos 42 anos de idade, dirigiu dois monstros sagrados do cinema inglês, interpretando um casal que festeja mais anos de casamento do que ele, o diretor, tinha de vida.

Sujeito corajoso. E – é preciso dizer também – talentoso.

O filme conquistou 19 prêmios e 39 outras indicações – entre estas últimas, uma indicação ao Oscar de melhor atriz para Charlotte Rampling.

O filme foi aceito para participar do Festival de Berlim, um dos três mais importantes do mundo (ao lado dos de Cannes e Veneza), e lá tanto Charlotte Rampling quanto Tom Courteney venceram os ursos de prata de melhor atriz e melhor ator.

Para encerrar, tomo a liberdade de contar que vimos o filme no mesmo dia em vimos também Uma Mulher do Outro Mundo/Blithe Spirit, uma deliciosa comédia romântica escrita por Noël Coward e dirigida pelo então jovem David Lean, em 1945 – 70 anos antes deste filme de outro jovem diretor inglês. Como o título do filme no Brasil já adianta, surge na vida de um casal uma mulher do outro mundo – a ex-esposa dele.

O comentário de Mary sobre a coincidência entre esses dois filmes ingleses separados por 70 anos e por absolutamente tudo por tudo foi certeiro: Katya, a moça morta deste 45 Anos, é um fantasma muito, mas muito mais perturbador que a ex-esposa morta que de repente aparece na casa do casal Rex Harrison-Constance Cummings.

Anotação em fevereiro de 2016

45 Anos/45 Years

De Andrew Haigh, Inglaterra, 2015

Com Charlotte Rampling (Kate Mercer), Tom Courtenay (Geoff Mercer

e Geraldine James (Lena), Dolly Wells (Sally), David Sibley (George), Sam Alexander (Chris, o carteiro)

Roteiro Andrew Haigh

Baseado no conto “In other country”, de David Constantine

Fotografia Lol Crawley

Montagem Jonathan Alberts

Na TV a cabo (Now). Produção Film 4, BFI Film Fund, British Film Institute, The Bureau, Creative England.

Cor, 95 min

***

5 Comentários para “45 Anos / 45 Years”

  1. AGUARDO ansiosamente a resenha de Blithe Spirit com o delicioso Rex Harrison e Margaret Rutherford arrasando com a festa.

  2. É um belo e triste filme, como você disse, talvez mais triste do que belo.
    Eu não entendi por que Kate criou tanto caso com a descoberta do corpo da ex-namorada do marido, e até matei a charada muito antes do diretor mostrar. Ainda assim, não vejo o porquê de tanta raiva e aborrecimento, após tantos anos, já que não foi um acontecimento que mudou a vida de ninguém (depois que encontraram o corpo); não era um esqueleto no armário, digamos assim. Se ela quisesse saber, que tivesse feito todas as perguntas quando conheceu Geoff, e ele lhe contou sobre o acidente. Por outro lado, o comportamento dele desde o dia em que recebe a carta, é muito irritante, e por esse lado entendo o desgosto dela.

    Pena só a Charlotte Rampling (que eu não via desde a última e bizarra temporada de “Dexter”) ter sido indicada ao Oscar. Tom Courtenay está muito bem também, e eu até gostei mais da atuação dele do que da dela. As falas pausadas, que não sei se são do ator ou do personagem, e a fragilidade que ele transmite, são tocantes. Mas ela também está ótima como a mulher desconfiada, que adora remoer mágoas. A última cena, quando ela puxa com raiva a mão que estava junto a dele na dança, em plena festa de comemoração, impressiona. Todo mundo aplaudindo, e ela querendo enfiar uma faca no cara. (Já sabemos que Rampling não levou a estatueta, e eu ainda não vi os outros filmes para poder opinar; mas o papel dela é bem difícil, pois era minimalista e exigiu que ela transmitisse os sentimentos apenas com expressões faciais).

    Quanto ao diretor querer impressionar e insistir nos planos gerais e de conjunto: eu, particularmente, não gosto, e acho que ele quis aparecer. Esses planos servem para mostrar o todo, mas eu sempre fico esperando que em seguida a câmera se aproxime do objeto principal, e isso ele não faz. Fica cansativo. Tudo bem ele querer que o espectador ouça o silêncio, o que acontece e até funciona bem nas cenas com o casal. Mas nas tomadas externas ele poderia ter aliviado para o nosso lado, o lado do espectador.

    Max, o cachorrão, melhor pessoa peluda. E ainda era bem resolvido.

    Spoiler:

    A única coisa que me ocorreu para a raiva que Kate passou a demonstrar depois de ter visto as fotos, é que a gravidez da tal Katya mexeu com ela. Mas isso só faria sentido se ela quisesse ter tido filhos, e Geoff não.
    E a comoção dele creio que se explica por aquela velha máxima, que sempre deixa uma dúvida dolorosa: o que poderia ter sido mas não foi. Também conhecido como “e se”. E se tivesse sido diferente, ele tivesse se casado com Katya e tido o filho juntos? Talvez ele tenha passado os mais de 45 anos pensando nisso, pois às vezes as coisas que não vivemos ou não conseguimos realizar, ficam rondando como fantasmas, causando a ilusão de que poderia ter sido divino, maravilhoso, quando na realidade não podemos afirmar nada. Ainda que eles tivessem se casado, quem é que pode assegurar que teria dado certo e durado tanto quanto o casamento com Kate, que ao que tudo indica – apesar dos altos e baixos, que ele mesmo disse que teve, quando discursou na festa – havia sido muito bom e feliz?

  3. E por falar em música, esqueci de dizer que gostei da cena em que Kate toca piano, apesar de ser uma peça triste e sombria. O diretor não queria ver ninguém feliz, não.

  4. Agora que já vi “O Quarto de Jack”, cuja atriz principal levou o Oscar, posso falar que não concordo com a escolha. Brie Larson está bem, sim, mas ainda acho que Charlotte Rampling está melhor.
    A questão é que Larson fez um papel cuja história tem um peso dramático maior, e ainda envolve uma criança. A Academia ama esse tipo de coisa.

    Dificilmente Rampling vai ter oportunidade de ser indicada novamente. Acho isso de uma injustiça tremenda. Larson tem a vida inteira pela frente.

  5. Vi este filme no HBO e confesso que gostei. O tema não dá oportunidade para fogos de artifício e o realizador mantem o tom discreto do princípio ao fim.
    Os dois actores protagonistas estão óptimos. Não me lembro de ter visto Tom Courteney.
    Sobre a falta de música: do Dogma 95 não sei nada, aliás foi aqui no 50 Anos de Filmes que soube que houve essa coisa.
    Os filmes dos Irmãos Dardenne não têm regra geral música e isso não afecta nada o resultado.

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