4.0 out of 5.0 stars
Anotação em 2009: Este aqui é, na minha opinião, um dos melhores filmes que já foram feitos. Nada menos do que isso. Pertence àquela categoria excepcional dos pouquíssimos filmes perfeitos, em que nada sobra, nada falta. Tudo o que se vê na tela é obra de gênio.
É, muito provavelmente, a comédia dramática mais dramática, mais triste, mais amarga que já foi feita.
É tão triste, tão amarga, que, depois que escrevi os dois parágrafos acima fui ver no iMDB e no AllMovie como esses dois respeitáveis sites definem o filme. O iMDB diz “romance, comédia, drama”. E o AllMovie começa sua resenha com uma frase brilhante: “Visto como uma comédia em 1960, The Apartment parece mais melancólico a cada ano que passa”. Brilho de frase, esta, assinada por Hal Erickson.
Não sei quantas vezes já tinha visto The Apartment antes desta vez agora, em julho de 2009 – os cadernos antigos em que anotei os filmes vistos têm mais lacunas do que eu imaginava. Mas o fato é que, agora, fiquei muito impressionado com a imensa amargura do filme.
Com a amargura, e com a perfeição. Meu Deus do céu e também da terra, como o filme é perfeito, como todo pequeno detalhe é importante, e bem cuidado, bem realizado.
Um dos principais temas do filme é a solidão – essa coisa trágica que é a solidão de pessoas que vivem nas grandes cidades, no meio de milhões de outras pessoas. Fala sobre trabalho na sociedade capitalista – essa coisa dura que é a necessidade de se passar boa parte da vida executando tarefas chatas, desagradáveis, monótonas, repetitivas, perder a vida no ato de tentar ganhá-la, como diz Moustaki. Fala sobre concorrência, competição no ambiente de trabalho – e o escritório imenso, infinito, em que o personagem central, C.C. Baxter, magistralmente interpretado por um Jack Lemmon em sua maior forma, de fato parece tão insalubre e lúgubre quanto uma mina de carvão, como Lucy Dias muito bem definia as grandes redações de jornais e revistas.
A trama do filme se baseia na coisa do puxa-saquismo, o saco do chefe ou do superior hierárquico como corrimão da vida – essa coisa indecente que qualquer um de nós já observou nos colegas de trabalho, ou talvez até em nós mesmos.
A visão que o filme passa sobre o casamento e a infidelidade conjugal é uma das coisas mais amargas que o cinema já mostrou.
Para lembrar a trama, sucintamente: C.C. Baxter tem a sorte (e a desgraça) de morar sozinho num apartamento alugado – simples, sem nenhum luxo, mas com uma localização privilegiada, no meio de Manhattan, pertinho do Central Park. Ele empresta o apartamento para quatro pessoas em posição de chefia na empresa de seguros em que trabalha, para que eles possam trepar com suas amantes, em geral moças que trabalham na própria firma, e esperam, além de algum prazer momentâneo, a possibilidade de uma ascensão no emprego.
O texto é um brilho. Billy Wilder e seus co-roteiristas sempre foram excelentes escritores, mas neste filme aqui eles estavam especialmente inspirados. O filme abre com uma tomada aérea de Nova Nova York, depois um plano geral de um gigantesco edifício, depois um andar com centenas e centenas de mesas iguais, enquanto a voz de Jack Lemmon, em off, diz esta maravilha:
“No dia 1º de novembro de 1959, a população de Nova York era de 8.042.783 pessoas. Se você pusesse todas essas pessoas deitadas, enfileiradas, imaginando uma altura média de 1,70 metro, elas chegaram da Times Square até os arredores de Karachi, no Paquistão. Sei desses fatos porque trabalho num empresa de seguros – a Consolidated Life de Nova York. Somos uma das cinco maiores companhias do país no ramo. Nossa sede central tem 31.259 empregados, o que é mais do que toda a população de, hum, Natchez, Mississipi. Eu trabalho no 19º andar. Setor de Apólices Comuns, Divisão de Cálculo de Prêmio, Seção W, mesa número 861.”
Tanto Jack Lemmon quanto Shirley MacLaine – que interpreta a Senhorita Kubilik, Fran Kubilik, uma ascensorista do prédio – estão esplêndidos, maravilhosos, perfeitos. Os dois são mestres na arte de interpretar papéis ao mesmo tempo cômicos e dramáticos; trabalhariam juntos de novo, sob a direção de Wilder, em Irma La Douce. Têm o que se costuma definir como a química perfeita.
Wilder dirigiu Lemmon em diversos filmes; já havia dirigido também Fred MacMurray 16 anos antes num dos noirs mais noir de todos os tempos, Pacto de Sangue/Double Indemnity; e Ray Walston, que faz um papel pequeno, como um dos chefes de seção que usa o apartamento de C.C.Baxter, faria um dos principais papéis em Beije-me, Idiota, quatro anos mais tarde, em 1964.
O filme é todo repleto de grandes momentos – é um grande momento atrás do outro –, mas um dos que me deixaram mais impressionado, boquiaberto, de queixo caído, foi a seqüência da festa no escritório na véspera do Natal; C.C. Baxter está feliz da vida; tinha levado um copo de bebida até a Senhorita Kubilik no elevador e conseguido tirá-la de lá; ele a deixa por um momento, e aí então ela fica sabendo uma verdade trágica – seu mundo desaba. C.C. Baxter volta para junto dela e não percebe que ela está em estado de choque; quer saber a opinião dela a respeito de um chapéu coco que havia comprado por US$ 15, uma pequena fortuna; coloca o chapéu na cabeça, sempre rindo muito – e a Senhorita Kubilik o olha sem ver nada, seu mundo caindo num estrondo. A seqüência, a interpretação de Lemmon e Shirley, é tudo de chorar, de aplaudir de pé como na ópera, de voltar o DVD para ver de novo uma, duas, três, muitas vezes.
Shirley MacLaine brilha fortissimamente também na seqüência, logo depois desta, em que está chorando sem parar, as lágrimas escorrendo sobre o rosto muito maquiado, e ela diz uma das frases mais cruéis da história do cinema:
– “Como eu pude ser tão burra? A esta altura, já deveria ter aprendido. Não se usa rímel quando se está apaixonada por um homem casado.”
No meio da história mais amarga que qualquer jiló, Billy Wilder consegue criar frases cômicas como esta, dita por um dos caras que usam o apartamento de C.C. Baxter, e que andou tendo de trepar com a telefonista – uma mulher grande – num Volkswagen:
– “Ela me disse para arranjar um carro maior ou então uma amante menor.”
Credo em cruz.
Por trás das camadas de humor, a desolação
O filme teve dez indicações ao Oscar, e ganhou os prêmios de melhor filme, direção, roteiro original para Wilder (na foto, com Shirley MacLaine durante as filmagens) e I.A.L. Diamond, montagem para Daniel Mandell e direção de arte em preto-e-branco para Alexandre Trauner e Edward G. Boyle. Jack Lemmon e Shirley MacLaine foram indicados para os troféus de melhor ator e melhor atriz, mas não levaram; isso não tem a menor importância – são duas interpretações absolutamente soberbas. Shirley ganhou o prêmio de atriz no Festival de Veneza.
O livro 501 Must-See Movies – que classifica o filme como romance – faz uma boa observação: “Billy Wilder muito habilmente constrói o lado humorístico do roteiro antes de descascar o humor, camada por camada, até que vemos a desolação por detrás dele”.
O livro 1001 Filmes para Ver Antes de Morrer sentencia: “Apesar do humor, Se Meu Apartamento Falasse é, em realidade, uma severa crítica social, bem como um exame da vida na América contemporânea e seus comportamentos sexuais. É também um ataque vigoroso contra a corrupção básica no sistema capitalista, no qual quem tem um pouco de influência pode se dar bem em detrimento dos outros”.
O professor e crítico alemão Hellmuth Karasek, autor do livro Billy Wilder – e o resto é loucura, uma biografia do mestre que contém longos depoimentos do próprio biografado – diz que este é seu filme preferido, e acredita que também seja o preferido de Wilder, embora ele se recuse a dizer isso. Karasek conta também que o filme foi muito criticado, na época, como imoral, por ter um protagonista que “transforma seu apartamento numa espécie de bordel”.
Karasek e o próprio Wilder contam que a gênese de Se Meu Apartamento Falasse aconteceu quando o cineasta viu Desencanto/Brief Encounter, de David Lean, em 1946. Naquele filme, os personagens de Trevor Howard e Celia Johnson, ambos casados, se conhecem na estação de trem, e se apaixonam; usarão, para seus encontros, o apartamento de um amigo de Alec, o personagem de Trevor Howard. “Desde então”, diz Wilder, “esse amigo não me saiu mais da cabeça. No filme ele aparece apenas em uma ou duas cenas ínfimas, mas fiquei imaginando como ele voltava para casa, dormia na cama ainda quente que o casal acabara de deixar. Naturalmente, uma história assim era inconcebível em 1946.”
Os tempos mudaram, os costumes mudaram, o filme pôde ser feito em 1960 – embora parte da crítica o tenha considerado imoral. Depois disso, os tempos e os costumes mudaram muito mais: “Hoje”, diz Wilder, “acredito que a história de Se Meu Apartamento Falasse tem sobre o espectador o mesmo efeito que um filme de Walt Disney, pode-se levar os filhos sem escrúpulos para assistir ao filme. Na época, todavia, foi uma empreitada bastante arriscada.”
Também no livro de Karasek, Wilder conta uma história absolutamente deliciosa. Um ano depois de fazer Se Meu Apartamento Falasse, ele foi a Berlim, onde queria filmar Cupido Não Tem Bandeira/One, Two, Three. Foi convidado para dar uma palestra na Möwe, em Berlim Oriental, ponto de encontro de artistas e intelectuais comunistas. Se Meu Apartamento Falasse foi exibido ali e aplaudido pelos convidados, “funcionários soviéticos ligados à cultura, gente do cinema e do teatro da então República Democrática Alemã, da Polônia e da União Soviética”.
“Fui elogiado como crítico social”, conta Wilder, “como alguém que tivesse desmascarado o mundo capitalista da mercadoria e dos empregados, onde cada um tinha que se vender. Levantei-me e falei. Disse que aquilo que era mostrado (no filme) poderia de fato acontecer em toda parte, tanto em Tóquio quanto em Londres, em Paris como em Munique. Só não poderia acontecer numa cidade do mundo, Moscou. Aplausos lisonjeiros dos convidados na Möwe. Não poderia acontecer em Moscou, continuei, porque lá Lemmon não poderia de forma alguma emprestar seu apartamento. Porque três outras famílias ainda morariam com ele ali. Silêncio e perplexidade na platéia.”
Se Meu Apartamento Falasse/The Apartment
De Billy Wilder, EUA, 1960
Com Jack Lemmon, Shirley MacLaine, Fred MacMurray, Ray Walston, David Lewis, Jack Kruschen, Joan Shawlee, Edie Adams, Hope Holiday
Argumento e roteiro Billy Wilder e I.A.L. Diamond
Fotografia Joseph La Shelle
Música Adolph Deutsch
No DVD. Produção The Mirisch Corporation, United Artists
P&B, 125 min
R, ****
Título em Portugal: O Apartamento
Tudo é fabuloso nesse filme.! Diretor,atores,fotografia e sua maravilhosa historia.Tenho ainda mais motivos para achar tudo isso, pois o assisti em companhia de uma pessoa que muito quero e que com seu entusiasmo e conhecimento, me fez apreciá-lo mais ainda! M-a-r-a-v-i-l-h-a!
Por incrívrel que pareça ainda não havia assistido o filme. Só lido os comentários. O tema musical é sensacional e já havia tocado muito em boates (fui músico profissional).
Depois de assistí-lo corri para a Internet e adquiri o DVD para minha coleção, onde poucos filmes compõem minha filmoteca. Não muitos porque procuro selecionar !
pelo que eu vi é muitho louco
Excelente, vi há poucos dias pela primeira vez.
É a “comédia dramática mais dramática, mais triste, mais amarga” como diz o Sérgio. Por mim digo que nem um sorriso despertou, é dos filmes mais tristes que já vi.
Mas excelente!
O filme retrata a realidade do submundo da “meritocracia” que ocorre nas grandes empresas.