Charada em Veneza / The Honey Pot

Nota: ★★★☆

Uma diversão inteligente, elegante, suavemente sofisticada – e extremamente palavrosa, é verdade. Não se poderia esperar nada diferente de Joseph L. Mankiewicz, um dos mais palavrosos, literários dos realizadores americanos, se não for o mais de todos.

Charada em Veneza, no original The Honey Pot, feito em 1967, foi um de seus últimos filmes. Veio depois de De Repente, no Último Verão (1959) e Cleópatra (1963); depois dele, Mankiewicz faria apenas Ninho do Cobras/There was a Crooked Man… (1970) e Jogo Mortal/Sleuth (1973).

O filme começa num palco de teatro – o que tem tudo a ver com Mankiewicz, o cara que fez A Malvada/All About Eve (1950), um dos mais brilhantes filmes sobre o teatro que já foram feitos.

Num belo teatro, encena-se uma peça clássica para apenas um espectador

Encena-se uma peça clássica, uma comédia de costumes. Para facilitar a vida dos espectadores pouco cultos, como eu, que não identifiquem qual é a peça, a câmara mostrará, daí a pouco, os cartazes à entrada do teatro, com o nome dela: Volpone.

Há apenas um espectador na platéia do suntuoso teatro: um sujeito bem vestido num impecável black-tie, fumando um imponente charuto. Chama-se Cecil Fox, e vem na pele elegante de Rex Harrison.

Quando a peça está no seu terceiro ato, Cecil Fox se levanta da poltrona do camarote onde estava sentado, agradece aos atores, e diz que não é necessário que continuem.

O ator que interpretava Volpone, um milionário que se preparava para anunciar sua própria morte, pelo prazer de ver seus parentes virem correndo atrás de alguma parte da herança, fica perplexo:

– “Mal começamos o terceiro ato!”

E Cecil, sorridente: – “Não faço objeção a que terminem sozinhos, se isso lhes dá prazer.”

O ator que interpretava Mosca, o secretário particular do milionário Volpone, e que, na peça, seria anunciado aos parentes do falso morto como o único beneficiário de seu testamento, ainda tenta argumentar:

– “Mas o senhor pagou tudo. Por que não assiste até o fim?”

E Cecil, sempre sorridente, colocando sobre os ombros uma leve capa:

– “Sei que será bom. Boa noite e… (bate palmas) Bravo!”

Deixa o teatro, e começam a rolar os créditos iniciais do filme. Enquanto vão aparecendo os créditos, vemos Cecil Fox sair do enveludado teatro, entrar num gôndola (estamos em Veneza, claro) e rumar para seu esplendoroso palazzo.

O plano é encenar a peça na vida real, as ex-amantes como protoganistas 

Chega ao palazzo um americano chamado William McFly. É interpretado por Cliff Robertson, um ator que as gerações mais novas conhecem como o tio de Peter Parker, o Homem-Aranha feito por Tobey Maguire nos filmes 1, 2 e 3 da franquia. Cliff Robertson, morto em 2011 aos 88 anos, teve longa carreira de mais de 110 títulos; alguns anos antes deste Charada em Veneza, em 1969, havia ganho o Oscar de melhor ator por Os Dois Mundos de Charly, um filme interessantíssimo que bem que poderia ser lançado em DVD.

 

 

 

 

 

 

William McFly vem se apresentar ao multimilionário Cecil Fox, depois de os dois trocarem correspondência. Cecil procurava um secretário particular de confiança, um homem que tivesse experiência de teatro, de atuação – e McFly tinha. Tentara ser ator de cinema, mas sua carreira não havia deslanchado. Tentara a sorte como jogador de pôquer em Las Vegas, e agora estava na Itália, lugar para onde iam – segundo ele mesmo diz – os atores de língua inglesa que não conseguiam fazer sucesso nem em Los Angeles, nem em Nova York, nem em Londres.

Cecil Fox apresenta a McFly – e ao espectador de Charada em Veneza – o seu plano.

Ele vai fingir que está à morte; que teve um ataque cardíaco, consultou os melhores médicos – não há o que fazer, é uma questão de tempo, a morte está decretada, virá em breve.

Isso será informado, por carta, a três das mulheres de sua vida, a quem ele havia ajudado a se tornarem elas próprias muitíssimo ricas. Elas serão convidadas a vir vê-lo em seu palazzo.

Cecil Fox quer ver o espetáculo da ganância de suas ex-mulheres. Quer ver como elas se comportarão na iminência de sua morte – e, ao final, fingirá deixar tudo o que tem exatamente para McFly.

Ou seja: ele quer encenar Volpone na vida real, ali em seu palazzo. Reescreve, ele mesmo, o texto centenário, e as atrizes serão suas ex-mulheres.

Uma ex-pobretona hoje milionária, outra ex-pobretona hoje atriz 

A saber:

. Lone-Star, hoje senhora Crockett Sheridan (o papel de Susan Hayward, 1917-1975, na foto acima, uma das atrizes de maior fama do cinema americano nos anos 40 e 50, Oscar em 1959 por Quero Viver!, então com 50 anos). Cecil a conhecera jovem e muito pobre; ensinou a ela muitos truques, ela se tornou uma empresária de sucesso, milionária;

. Merle McGill (interpretada por Edie Adams, 1927-2008, na foto ao lado com Cliff Robertson), atriz de cinema e TV, mais de 60 títulos no currículo). Tinha 16 anos e era bastante pobre quando Cecil a conheceu, levou ao dentista, deu força para que iniciasse uma carreira de atriz. Deu certo, e agora a ex-pobretona ganhava fortunas a cada filme;

. Dominique (interpretada por Capucine, 1928-1990, francesa de beleza rara, estranha, que foi modelo da Givenchy antes de ser descoberta pelo produtor Charles K. Feldman, e teve grande sucesso a partir de A Pantera Cor de Rosa, de 1963). Era casada com um príncipe, vivia num castelo da França, e tinha tido um caso com Cecil tempos atrás.

As três irão se hospedar no palazzo de Cecil Fox em Veneza, para participar da encenação de um novo Volpone. Junto com a ex-Lone Star, hoje senhora Sheridan, chegará uma jovem enfermeira inglesa – a dondoca é hipocondríaca, toma pílulas para dormir, para acordar –, chamada Sarah Watkins. Sarah é interpretada por Maggie Smith, então com 33 aninhos e aparência de uns 25, 26, e já uma excelente atriz.

Todo tipo de referência a teatro, a cinema

Um filme em que o protagonista resolve encenar sua própria versão de Volpone, uma peça clássica.

Um filme baseado numa peça de teatro que se baseia num romance que por sua vez se baseia numa peça clássica. (O roteiro escrito por Mankiewicz se baseia na peça Mr. Fox of Venice, adaptada da novela The Evil of the Day, de Thomas Sterling, por sua vez baseada na peça Volpone, de Ben Jonson.)

Jogos de palavras, brincadeiras com os nomes. Volpone significa raposa em italiano, que em inglês é fox, o sobrenome de Cecil. Mosca, o nome do mordomo-secretário particular de Volpone, tem tudo a ver com fly de McFly.

Só poderia ser Joseph L. Mankiewicz – e ele, como quase sempre, é o próprio autor do roteiro do filme. Manckiewicz começou como roteirista, virou produtor e só depois de 16 anos de carreira passou a dirigir, substituindo Ernst Lubitsch, em Dragonwick, de 1946.

Há todo tipo de referência a teatro, a cinema. Metalinguagem a dar com o pau.

Charada em Veneza tem bastante a ver com A Condessa Descalça – um dos melhores filmes sobre o cinema jamais feitos – e também com aquele que seria o canto de cisne do grande realizador, o já citado Jogo Mortal/Sleuth.

Da obra-prima A Condessa Descalça tem a visão irônica, amarga, dura, do showbusiness e do poder do dinheiro, a convivência entre americanos e europeus. De Jogo Mortal, tem a trama emaranhada de mistério policial, cheia reviravoltas, e o fosso entre as clases sociais.

O fosso entre as classes sociais: Cecil Fox é um multimilionário, a sra. Sheridan idem, Dominique é princesa e Merle McGill é uma nova-rica – nova, mas rica.

Os trabalhadores, os que precisam ganhar o pão com o suor do próprio rosto, são apenas o ator desempregado William McFly e a enfermeira Sarah Watkins.

Ah, sim, e também o inspetor Rizzi, que adentrará o palazzo para investigar uma morte acontecida ali, quando o filme está aí mais ou menos na metade. O inspetor Rizzi vem na pele de Adolfo Celi (1922-1986), o grande ator italiano que teve um dos maiores sucessos quando, já no fim da vida, interpretou o bandidão do filme 007 Contra a Chantagem Atômica/Thunderball.

Muito maior que seu papel como o vilão Largo, Adolfo Celi tem imensa importância na cultura brasileira. Italiano de Messina, Adolfo Celi virou brasileiro aos 27 anos incompletos, quando desembarcou em São Paulo, e, juntamente com Ziembinsky, Luciano Salce e outros diversos artistas, foi responsável pela fase áurea do TBC, o Teatro Brasileiro de Comédia. Segundo a bela Enciclopédia do Cinema Brasileiro de Fernão Ramos e Luiz Felipe Miranda, o TBC com seus grandes êxitos foi responsável para que o público teatral paulista aumentasse de 5 mil para quase 100 mil espectadores por ano, “sendo responsáveis, igualmente, pela construção de muitos teatros no eixo Rio-São Paulo que até hoje estão funcionando”.

Celi não brincava em serviço – nem fora de serviço. Foi casado com Cacilda Becker e depois com Tônia Carrero. Com ela e Paulo Autran, criou em 1956 a Companhia Teatral Tônia-Celi-Autran.

Me distanciei um tanto de Charada em Veneza, mas era impossível não falar um pouquinho que fosse de Adolfo Celi.

Nos últimos 400 anos, Volpone vem sendo encenada e adaptada 

É preciso falar de Volpone, a peça clássica de que eu, ignorante, não tinha ouvido falar (ou tinha ouvido e esquecido, o que dá na mesma).

Credo em cruz: Volpone foi apresentada pela primeira vez em 1606! Dez anos antes da morte de William Shakespeare!

Seu autor chama-se Ben Jonson (1572–1637). Adorava uma controvérsia, uma polêmica. Escreveu diversas peças satíricas, as mais famosas das quais são exatamente Volpone, The Alchemist e Bartholomew Fair.

Volpone vem sendo encenada ao longo destes últimos 400 anos – encenada, e adaptada para novas formas. Jules Romains e Stefan Zweig fizeram uma adaptação em 1928, com um final diferente do original de Ben Jonson. Essa versão foi usada por Geroge Antheil na criação da ópera baseada na peça, em 1953.

Em 1964, um musical da Broadway, que parece não ter feito lá grande sucesso, transportou a ação da Veneza antiga para a corrida do ouro em Yukon, no Canadá, no final do século XIX – a mesma que inspirou Chaplin a fazer seu clássico Em Busca do Ouro/The Gold Rush.

Na França, fizeram-se três filmes baseados na versão de Romains e Zweig. Em 1988, houve um filme italiano, Il Volpone, dirigido por Maurizio Ponzi. Em 2004, uma companhia de ópera da Virgínia produziu uma nova ópera baseada na peça.

E eu não sabia o que era Volpone. Vivendo e aprendendo – e depois esquecendo.

Dois críticos desceram a lenha no filme que achei divertidíssimo

Leonard Maltin e Pauline Kael não gostaram do Volpone de Joseph L. Mankiewicz. Maltin deu 2.5 estrelas em 4, e disse que Mankiewicz atualizou Volpone numa mistura dissimulada de alta comédia e whodunit – a trama policial tipo quem matou, à la Agatha Christie, e o resultado nunca é tão divertido quando se esperaria.

Dame Kael arrasa com o filme, diz que é uma versão “supercomplicada e verborrágica” e que o próprio Mankiewicz deve ter se perguntado como ia sair daquela confusão toda.

É a opinião deles. Legal.

Não concordo. Achei o filme divertidíssimo – e inteligente, como tudo que já vi de Mankiewicz.

Anotação em setembro de 2012

Charada em Veneza/The Honey Pot

De Joseph L. Mankiewicz, EUA, 1967

Com Rex Harrison (Cecil Fox), Susan Hayward (Mrs. Lone-Star Crockett Sheridan), Cliff Robertson (William McFly), Capucine (Princesa Dominique), Edie Adams (Merle McGill), Maggie Smith (Sarah Watkins), Adolfo Celi (Inspetor Rizzi), Hugh Manning (Volpone), David Dodimead (Mosca)

Roteiro Joseph L. Mankiewicz

Baseado na peça Mr. Fox of Venice, adaptada da novela The Evil of the Day, de Thomas Sterling, por sua vez baseada na peça Volpone, de Ben Jonson

Fotografia Gianni Di Venanzo

Música John Addison

Montagem David Bretherton

Produção Charles K. Feldman, Joseph L. Mankiewicz, MGM. DVD Fox.

Cor, 131 min

***

 

7 Comentários para “Charada em Veneza / The Honey Pot”

  1. Sérgio, concordo com você: o filme é muito divertido e inteligente. Mankiewicz, como dizem hoje, era do ramo. Sabe quem também concorda com você? O papa dos críticos, Roger Ebert. O belo texto dele a respeito do filme, está em “https://www.rogerebert.com/reviews/the-honey-pot-1967”
    Ele encerra a crítica assim:
    “And, after 155 minutes, the ending is all that could be desired: complex, logical, unexpected and gloriously satisfying.
    There is no need to put up a sign in front of the theater asking audiences not to tell who did it. That’s only half the answer. The rest is how. And why.”

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