Tudo Bem no Ano Que Vem / Same Time, Next Year

Nota: ★★★½

Anotação em 2011: Se fosse para ser apenas objetivo, talvez o certo fosse dizer que Tudo Bem no Ano Que Vem/Same Time, Next Year é um filme que trafega perigosamente no fio da navalha entre, de um lado, o brilho absoluto, e, de outro, a pieguice, o clichê, a caricatura, a babaquice.

Como minhas anotações sobre os filmes jamais foram objetivas (e se eventualmente alguém tiver chegado aqui através de um buscador procurando considerações objetivas, deveria desistir deste texto e deste site,  imediatamente), digo que Tudo Bem no Ano Que Vem é um dos filmes de que mais gosto na vida, que mais me emocionam.

Ah, sim: e digo logo de cara, também, que, ao ver agora pela talvez terceira vez (eu estava vendo, sei lá, pela sexta ou sétima), Mary chorou como um bebê, como uma mulher.

Just like a woman.

Ou, como diz Paul McCartney, “There is a fine line between recklessness and courage/ It’s about time you understood which road to take / (…) There is a long way between chaos and creation”.

Mas aí estou indo longe demais na falta de objetividade.

          Uma abertura extasiante, sem palavras, com uma canção

A abertura do filme é nada menos que extasiante. Um pequeno hotel com chalés no alto de um morro junto ao mar; no restaurante do hotel, os únicos hóspedes para o jantar são um homem e uma mulher, cada um deles em uma mesa, bem distantes um do outro. Fazem gestos gentis um para o outro, já que são os únicos hóspedes, e são pessoas educadas. Cada um janta em sua mesa solitária. Depois da refeição, na hora do café, o homem vai até a mesa da mulher. Começam a conversar, e conversam longamente – mas não se ouve o que eles falam. Robert Mulligan, o diretor, certamente tinha visto Um Homem, Uma Mulher, em que Claude Lelouch havia criado essa coisa fantástica de o espectador não ouvir o que conversam à mesa um homem e uma mulher.

Enquanto vê essa sequência de imagens sem palavras, o que o espectador ouve é uma canção romântica, “The Last Time I Felt Like This”, que trafega perigosamente no fio da navalha entre a absoluta beleza e a cafonice do romântico demais, cantada em dueto por Johnny Mathis (quer coisa mais bela e cafonamente romântica que a voz de Johnny Mathis?) e Jane Olivor, falando do encontro de um homem e uma mulher.

Há uma tomada especialmente preciosa: a mão esquerda do homem, com a aliança que indica que ele é casado, aproxima-se bastante da mão da mulher, no assento da cadeira.

Toda essa bela seqüência é apresentada enquanto são mostrados os créditos iniciais. Ao final deles, corta, é de manhã, e o homem está acordando, nu, na cama ao lado da mulher, e aí cai para ele a ficha de que, pela primeira vez depois de casado, tinha trepado com uma mulher que não era a sua esposa.

          Entre cada encontro e outro, um clip que mostra a Grande História

Era 1951. O homem, George (interpretado por Alan Alda), e a mulher, Doris (interpretada por Ellen Burstyn, os dois excelentes, ela, em especial, soberba, maravilhosa), vão continuar se vendo sempre naquele mesmo hotel na costa dourada da Califórnia, sempre durante um fim de semana, uma vez por ano, ao longo dos 25 anos seguintes. A peça de Bernard Slade, filmada em 1978 por Robert Mulligan, um dos grandes diretores americanos menos reconhecidos, menos badalados, focaliza os encontros de George e Doris de cinco em cinco anos – em 1951, 1956, 1961, 1966, 1971, 1976.

Entre cada encontro e o outro, cinco anos depois, Mulligan produz – sempre ao som da mesma canção linda-melosa escrita por Marvin Hamlisch com letra do genial casal Marilyn e Alan Bergman – curtos, sensacionais, emocionantes clips, com fotos que identificam cada época, da era da caça às bruxas do macarthismo até Jimmy Carter, passando por toda a história americana ao longo de um quarto de século, a primeira chegada dos filmes de terceira dimensão, Elvis jovem, Elvis indo para o Exército, Elvis balofo em Las Vegas, A Um Passo da Eternidade, Se Meu Apartamento Falasse, Eisenhower, o debate Kennedy-Nixon na TV, Kennedy presidente, Lyndon Johnson assumindo a presidência no avião de volta a Washington depois do assassinato de Kennedy, os Beatles, os Stones, a luta pelos direitos civis, Martin Luther King, as passeatas contra a guerra do Vietnã, Nixon que renuncia – a Grande História passando na tela em frente de nós, enquanto vemos a pequena história de George e Doris, que, a cada ano, se encontram no mesmo hotelzinho diante da paisagem loucamente bela do Pacífico lá embaixo de altos penhascos.

          A junção da intimidade com o afresco, na visão de um diretor intimista

Filmes que mesclam as pequenas histórias das pessoas com a Grande História por trás são dos melhores que há na vida.

Há várias maneiras de se fazer isso – juntar o micro com o macro, a intimidade com o afresco, o close-up com o plano geral. Sir David Lean era mestre imbatível nessa arte soberana. Nenhum cineasta poderia, como ele, contar a história da revolução russa entremeada a uma das mais belas histórias de amor de que se tem notícia, a história de Jivago e Lara, criada pelo gênio poético de Bóris Pasternak. Os americanos King Vidor e Richard Brooks fizeram belas obras a partir de outros igualmente caudalosos e infilmáveis monumentos da literatura russa, respectivamente Guerra e Paz e Os Irmãos Karamázovi. O húngaro tornado americano Michael Curtiz juntou a Segunda Guerra e o amor de um americano expratiado e uma européia cuja pátria era o anti-nazismo numa das obras mais adoradas da humanidade, Casablanca.

 Robert Mulligan era um diretor muito menos épico do que todos os citados acima. Muito menos prestigiado, muito menos pretensioso – mas um ótimo diretor. Fez um filme baseado numa peça teatral muito menor do que todas as obras citadas acima. E é um filme absolutamente emocionante.

 Ao misturar a Grande História com a pequena história de amor entre George e Doris, o dramaturgo Bernard Slade, também autor do roteiro de Tudo Bem no Ano Que Vem, não teve medo da pieguice, do clichê, da caricatura, da babaquice.

George e Doris balançam ao vento (blowin’ in the wind), mudam ao sabor do tempo (the times they are a-changin’, you don’t need a weatherman to know which way the wind blows). Uma vez ele está de terno de grife muito cara, totalmente careta, ganhando rios de dinheiro, pró-bomba atômica sobre o Vietnã, ela está hippie absoluta. Outra vez ela está empresarial, ele está pós-hippie, new age, autoanalisando-se todo, não dando a mínima para dinheiro.

Muitas vezes eles não parecem gente – parecem arquéticos, caricaturas.

          Uma mistura de comédia e drama em que os personagens passam por mudanças exageradas

A peça de Bernard Slade é uma mistura de comédia e drama. Tem drama, tensão, problemas, questões, mas foi feita também para fazer rir – e há muitos exageros, forçações de barra, para criar situações cômicas. Na maior parte do tempo, George é bobo demais. Atrapalha-se como um garotinho ginasiano quando, após a primeira noite em que ele e Doris dormem juntos, ouvem o sr. Chalmers, o gerente do hotel, bater à porta para trazer o café da manhã. Exagera demais no sentimento de culpa por estar traindo a mulher, os filhos – a sequência em que joga Doris no chão para atender, apatetado, ao telefonema da filhinha de sete anos que conta sobre a perda do dentinho de leite e a fada dos dentes chega a ser um tanto patética – além de engraçada de fato.

Todas as mudanças pelas quais George e Doris passam ao longo dos anos são violentas demais, exageradas – como já se citou alguns parágrafos acima. De dona de casa católica que freqüenta retiros espirituais com freiras, inculta, sem ginásio completo, Doris passa a ser leitora voraz, depois culta, depois hippie, depois rica empreendedora – assim como George passa de rico contador de milionários a pós-hippie que não liga a mínima para dinheiro.

          Estranho, mas aqueles estereótipos se parecem com você e comigo

E no entanto, de alguma louca, esquisita forma, enquanto vão vivendo aquela estranha forma de amor ao longo de um quarto de século, mesmo sendo muitas vezes clichês, estereótipos, caricaturas, George e Doris se parecem demais da conta com eu e você, com qualquer um de nós, com todos nós.

Ninguém que já tenha um dia traído ou pensado em trair sua mulher, seu marido (e será que existe alguém que não?), pode deixar de se identificar ora com George, ora com Doris.

Há um imenso sentimento de culpa – mas o prazer de cada novo encontro faz a culpa diminuir, por momentos até a desaparecer. E é fascinante a forma como George e Doris vão ficando amigos, camaradas, cúmplices, ao longo dos anos, cada um mantendo intacto o seu amor por seu respectivo cônjuge e seus filhos. E vão ficando íntimos, embora naturalmente bem à distância, da família do outro – é emocionante quando Doris diz que, de alguma forma, tornou-se muito amiga de Helen, a mulher de George, e é ao mesmo tempo surpreendente e engraçadíssimo quando George fala ao telefone com Harry, o marido de Doris.

Como muitos de nós, o operário que Agnès Varda criou em As Duas Faces da Felicidade/Le Bonheur teve a ingênua crença de que merecia ser feliz duas vezes, com a mulher e a amante. Paga-se sempre muito caro por essa ousadia. Doris e George de alguma maneira conseguem viver um pouco essa felicidade dupla – mas sabem, e são relembrados disso sempre, a duras penas, que esse, afinal, é um sonho impossível.

          Ellen Burstyn, atriz grande, atriz maior

Alan Alda é um grande ator, e está muito bem no papel – apesar dos exageros do personagem, dos gestos largos demais. (Além de bom ator, é também um ótimo ativista, um batalhador, um believer.) Mas o brilho maior é de Ellen Burstyn.

Mulher fantástica, atriz fantástica, Ellen Burstyn. Nascida em Detroit, em 1932, quando bem jovem trabalhou como modelo, dançarina de boate; nos anos 60, atuou em diversas séries na TV, antes de chegar ao teatro na Broadway e ao cinema em Hollywood. No início dos anos 70, estudou interpretação na escola mais prestigiada do país, o Actors Studio de Lee Strasberg – e, quando Strasberg morreu, foi escolhida co-diretora artística do grande celeiro de atores, ao lado de Al Pacino.

Quando isso aconteceu, em 1979, Ellen Burstyn já havia acumulado grandes interpretações e prêmios tanto na Broadway quanto em Hollywood. No teatro em Nova York, fez Tudo Bem no Ano Que Vem (e levou um Tony, o Oscar do teatro), Três Irmãs, de Tchécov, 84 Charing Cross Road – a peça que deu origem ao filme Nunca Te Vi, Sempre Te Amei.

No cinema, trabalhou em filmes importantes, marcantes, nos anos 70: A Última Sessão de Cinema (1971), O Exorcista (1973), Providence (1977), mais este Tudo Bem no Ano Que Vem e ainda o fundamental Alice Não Mora Mais Aqui (1974). Foi ela que comprou os direitos de filmagem de Alice…, e que escolheu o jovem diretor, ainda pouco conhecido, Martin Scorsese. Alice Não Mora Mais Aqui, ao lado de Uma Mulher Descasada, de Paul Mazursky, de 1978, com Jill Clayburgh, foi uma das obras que definiram o status da nova mulher que surgia após a década que havia mudado quase tudo.

“A profundidade de Burstyn como atriz é evidenciada pela variedade de seus papéis no cinema”, diz o livro Actors & Actresses. “Com uma notável exceção, sua carreira veio a ser caracterizada por produções de orçamentos modestos, com elencos pequenos, intimamente concebidos. Isso permitiu que sua sutileza explorasse a vida interior dos personagens, um luxo normalmente oferecido apenas no teatro. (…) Em seus papéis jamais faltou variedade e mesmo excentricidade. Suas habilidades foram provadas em filmes tão diferentes quanto o melodrama psicológico de Alain Resnais Providence, em que ela trabalhou ao lado de Sir John Gielgud e Dirk Bogarde, Same Time Next Year, uma peça popular pela qual ela já havia ganho um Tony na Broadway e, talvez mais impressionante, Ressurection, em que ela interpreta uma mulher que se recupera de um acidente de carro quase fatal com poderes psíquicos de cura.”

A notável exceção citada pelo livro – o único filme dos anos 70 em que ela trabalhou que teve grande orçamento – é O Exorcista, de William Friedkin. Já do citado Ressurection, de 1980, dirigido por Daniel Petrie, nunca tinha ouvido falar, e aparentemente não chegou a ser lançado no Brasil.

Ellen Burstyn coleciona 23 prêmios e outras 26 indicações. Teve seis indicações ao Oscar, inclusive por este Tudo Bem no Ano Que Vem, e levou a estatueta por seu papel em Alice Não Mora Mais Aqui – que lhe deu também o Bafta. Para outro prêmio importante, o Globo de Ouro, foi indicada sete vezes, e ganhou por sua Doris em Tudo Bem no Ano Que Vem.

O filme também teve três outras indicações ao Oscar – roteiro adaptado para Bernard Slade, fotografia para Robert L. Surtees e canção original para “The Last Time I Felt Like This”, de Marvin Hamlisch e Marilyn & Alan Bergman.

          Todo mundo tem direito à sua opinião

Como comecei esta anotação exacerbando no pessoal, termino objetivamente mostrando a opinião de outros.

Leonard Maltin dá 3 estrelas em 4: “A peça de Bernard Slade da Broadway com dois personagens dá um filme agradável, com Alda e Burstyn como um casal adúltero que compartilha um fim de semana por ano durante 26 anos; comédia-drama calorosa, humana, reflete as mudanças na vida americana e no comportamento desde o início dos anos 50 de uma maneira apreciável.”

E agora a língua ferina, o texto cortante de Pauline Kael:

“Uma refeição tépida doce. Polido adultério de vida inteira de duas pessoas insignificantes. O tempo se espalha entre 1951 e 1977. O truque é a forma como as mudanças sociais e as tendências na moda e nas idéias são refletidas nesses dois, e a única piada é que o adultério pode ser regulado e celebrado, exatamente como o casamento. É claro que pode, se você remover cada grama de paixão e de tensão sexual dele, que é o que o autor, Bernard Slade, e o diretor, Robert Mulligan, fizeram. Se alguém fizer o erro de insistir em que você vá ver esse filme, leve uma lanterna e um livro.”

Bem, todo mundo tem direito a sua opinião.

Procuro uma terceira opinião, para desempatar. O Guide des Films de Jean Tulard dá a sinopse e conclui, curto e grosso: “Bom diálogo, excelentemente interpretado por Aldá e Burstýn.” Hêhê – ficam bonitinhos os nomes com a pronúncia em francês.

Gosto quando Dame Pauline Kael chama os personagens de insignificantes. É o que eu mais gosto, no cinema, na literatura – personagens insignificantes, gente como a gente. Não um grande herói, nem um grande bandido. Os grandes heróis, os grandes bandidos, eles devem representar algo em torno de 0,1% da humanidade – e no entanto 99% dos filmes são feitos sobre eles. O que é ridículo.

Gosto especialmente dos filmes sobre personagens que, segundo Dame Pauline Kael, são insignificantes. Que, segundo Sir James Paul McCartney, são ordinary people. Que, segundo Philipe de Broca, são as pessoas que podem tentar alguma felicidade na vida. O tipo de personagem que Jacques Demy retrata, o tipo de personagem que Agnès Varda retrata. 

Para mim, repito, este é um dos filmes mais queridos, mais emocionantes que já vi. E olhe que não vi poucos.

Tudo Bem no Ano Que Vem/Same Time, Next Year

De Robert Mulligan, EUA, 1978

Com Ellen Burstyn (Doris), Alan Alda (George), Ivan Bonar (Chalmers)

Roteiro Bernard Slade, baseado em sua peça teatral

Fotografia Robert Surtees

Música Marvin Hamlisch, letras Alan e Marilyn Bergman

Canções originais cantadas por Johnny Mathis e Jane Olivor

Montagem Sheldon Kahn

Figurinos Theadora Van Runkle

Produção Walter Mirisch e Morton Gottlieb, Universal Pictures. DVD NBO

Cor, 117 min

***1/2

Título em Portugal: À Mesma Hora para o Ano Que Vem. Título na França: Même Heure, l’Année Prochaine

11 Comentários para “Tudo Bem no Ano Que Vem / Same Time, Next Year”

  1. E voltei a ser tartaruguinha de feira, acenando com a cabeça. Este é um filme especial, tocante, terno, generoso com seus personagens e com quemj o assiste. Eu gosto. E concordo com você quanto à beleza de personagens simples e cotidianos terem como pano de fundo a Grande História. lembrei-me logo de Sophia e Marcello (e fui olhar e sim, você tem um post sobre Una Giornata Particolare, outro terno e querido filme, aí fui fuçar nos meus e vi que também eu escrevi sobre ele e pus link pra seu texto).
    Affe, comentário enorme e confuso, eu só devia dizer: concordo, filme pra ser visto e revisto.

  2. Luciana, caríssima, seu comentário não está enorme, nem confuso. Está claro, suave e doce como tudo o que você escreve.
    Um abraço.
    Sérgio

  3. Pingback: No Escurinho |
  4. adoro esse filme, consegui fazer minha esposa assistir ele pela primeira vez, ontem . chorou,riu e adorou

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