Mistério de uma Mulher / Ladies in Retirement

Nota: ★★☆☆

(Disponível no Cine Antiqua do YouTube em 4/2022.)

Gótico. Esse foi o adjetivo que ficou pipocando na minha cabeça quando vimos Mistério de uma Mulher, no original Ladies in Retirement, uma produção de 1941 dirigida por Charles Vidor e estrelada pela sempre impressionante Ida Lupino.

Para falar bem a verdade, não sei muito bem o que significa gótico. Mas faz tempo que ouço dizer que há uma tribo que se diz gótica, adepta do gótico – algo próximo de dark, funéreo. Gente que gosta de se vestir só de negro. Uma amiga dizia, por exemplo, que The Smiths tem um estilo gótico.

E aí, diante desse filme praticamente todo passado em 1885 dentro de uma casa no campo inglês, perto de um pântano, cercada por espessíssima neblina que não sumia nunca, com uma atmosfera pesada, em que há um crime pavoroso, a palavra quicou na minha cabeça. A gente devia estar aí com uns 45 minutos dos 92 de duração de Ladies in Retirement quando saiu da minha boca sem que eu raciocinasse direito: – “Mas que filme gótico!” Mary riu, e por sua vez comentou algo do tipo “Filme muito doidão”.

Pois agora, ao começar a ler sobre o filme, vejo que Leonard Maltin usou exatamente esse termo. E ele gostou, deu 3 estrelas em 4: “Estático mas bem feito melodrama gótico sobre a tentativa da governanta Lupino de esconder um crime em uma excêntrica casa inglesa. Não tão potente – ou tão chocante – quanto deve ter sido em 1941, mas ainda bom. Refilmado como The Mad Room.”

Um melodrama gótico!

Diabo: o que é que vem a ser exatamente “gótico”?

Pântano, animais feios, neblina forte, espessa

Aprendo com a Encyclopaedia Britannica que o romance gótico é uma “ficção pseudo-medieval, tendo uma atmosfera predominante de mistério e terror”. Que é chamada de “gótica” porque “seu impulso imaginativo era tirado de construções e ruínas medievais, e comumente apresentava castelos e monastérios contendo passagens subterrâneas, ameias escuras, painéis escondidos e alçapões”.

E mais: “As histórias de horror clássicas Frankenstein (1818), de Mary Wollstonecraft Shelley, e Drácula, de Bram Stoker, são da tradição gótica, mas sem as armadilhas específicas do gótico.”

Hum… Complexo. Mas, sim: mistério, terror… Dark battlements…

Em seu Dicionário de Termos Literários, o professor Massaud Moisés começa lembrando que “o vocábulo ‘gótico’ designa, primeiramente, um estilo de Arquitetura em moda na Europa ocidental entre os séculos XII e XIV, caracterizado sobretudo pela utilização de arcos em ogiva que simbolizavam, graças ao acentuado movimento vertical, a ascensão mística do homem medieval.” Sim, que a palavra parte daquele estilo de arquitetura é sabido. Mas vamos ao sentido figurado que o termo acabou conquistando. Ah… Aí o professor Moisés chega perto da definição inicial da Britannica:

“Derivando o seu nome do fato de passar-se em ambiente medieval, a prosa gótica apresenta, de forma genérica, as seguintes características: histórias de horror e terror, transcorridas em castelos arruinados, com passagens secretas, portas falsas, alçapões, conduzindo para locais misteriosos e lúgubres, habitados por seres estranhos que convivem com fantasmas e entidades sobrenaturais, em atmosferas penumbrosas e soturnas, onde mal penetra a luz do dia.”

É. Acho que o Maltin tinha razão, e eu também: Ladies in Retirement é um filme gótico.

Os créditos iniciais já dão toda a pista de que virá pela frente algo próximo do horror, do terror. E são créditos iniciais bem interessantes, singulares, originais, naquela época em que o padrão era termos créditos rápidos, formais, padronizados – letras em cima de fundo negro, ou no máximo sobre um cenário que não desviasse muito a atenção do público para os nomes dos atores e da equipe.

Aqui, não: os nomes dos atores e da equipe aparecem em placas colocadas… num cenário de pântano. Não há castelos arruinados, portas falsas, alçapões – mas pântano. E, meu, pântano é tão lúgubre, assustador quanto um velho castelo arruinado.

Pântano, animais feios, neblina forte, espessa. E uma trilha sonora (de autoria de Ernst Toch) assim fantasmagórica.

Uma senhora de meios, uma governanta exemplar

A casa em que se passa quase toda a ação – que fica naquela região pantanosa, repito – é bem ampla, confortável, coisa de gente bem de vida – mas não de milionário. Não, nada a ver com aquelas mansões de aristocratas tipo Downton Abbey. Uma casa de gente bem de vida no campo inglês no final do século XIX.

A dona é uma senhora muito simpática, alegre, jovial, que adora música, toca piano e canta canções alegres, Leonora Fiske – o papel de Isobel Elsom (1893-1981), 130 títulos na filmografia, inclusive My Fair Lady (1964) e O Fantasma Apaixonado (1947). Isobel Elson estava com apenas 48 anos quando o filme foi lançado, mas ela parece bem mais velha, parece uma senhoria bem passada dos 60 anos.

Leonora Fiske, a personagem, aparentemente nunca se casou – não há qualquer menção a marido ou filhos. A referência que é feita é ao fato de que, quando jovem, foi atriz e dançarina, não propriamente uma estrela, mas uma chorus girl. Quando ela conta isso, o faz com um jeitinho maroto, espevitado, que dá a entender que teve, na sua juventude, muitos fãs, muitos pretendentes. Talvez haja aí uma insinuação – muito discreta – de que ela tenha tido amantes que a deixaram bem de vida. Mas insisto: se há essa insinuação, é discretíssima, quase imperceptível.

Mas o fato é que agora, na meia idade, sem marido, sem filhos, Miss Fiske tem uma situação financeira bastante confortável. Tem aquela ótima casa, vive – como tanta gente nos filmes e livros ingleses passados de 1900 para trás – de rendas. E trabalham para ela não apenas uma boa empregada, Lucy (Evelyn Keyes), como também uma espécie assim de governanta ou dama de companhia, Ellen Creed – o papel de Ida Lupino, aos 23 aninhos de idade, mas já uma estrela, com mais de 20, 25 títulos na filmografia.

A Miss Ellen Creed que vemos no início do filme é um jovem profissional exemplar, toda correta, educada, cortês, inteligente, hábil, sempre à disposição da patroa.

Mas…

O momento de clímax é muito bem encenado

Sim, há logo uma grande adversativa aí. Na primeira sequência após os créditos, vemos a jovem senhorita Creed lendo uma carta que acaba de chegar. A câmara do diretor de fotografia George Barnes mostra a moça lendo a carta, testa franzida, e em seguida mostra a carta para que o espectador também possa ler. Está datada de Londres, 29 de setembro de 1885:

“Cara srta. Creed, suas irmãs têm que deixar minha casa imediatamente. A forma escandalosa com que elas se comportam está causando queixas dos meus outros inquilinos. A menos que a srta. faça algo já, eu chamarei a polícia para levá-las para onde elas deveriam estar.”

Agora acho que vou apertar a tecla de avanço rápido neste texto.

A jovem Ellen pede à patroa que permita que suas irmãs a visitem. Boa alma, boa pessoa, Miss Fiske concorda em receber em sua casa as irmãs da sua dama de companhia, por quem tem grande apreço.

As irmãs – Emily, o papel de Elsa Lanchester, e Louise, o papel de Edith Barrett – são duas loucas de pedra. A dona da casa de pensão em que elas estavam em Londres se expressou muito bem: “onde elas deveriam estar” era num hospício, naquela época em que havia hospícios.

Rapidamente há um corte no tempo, e a senhora Fiske simplesmente não aguenta mais a presença insuportável daquelas duas loucas dentro de sua casa. Elas transformaram a sua vida num inferno.

Em um dia em que as três irmãs estão fora, aparece na casa um sujeito que se diz sobrinho de Ellen – na verdade sobrinho torto, filho da segunda mulher de alguém da família da moça. Chama-se Albert, é interpretada pelo galã Louis Hayward, que fazia sucesso na época, e tem todo o jeito de um grande vigarista. Pede um dinheiro emprestado à boa senhora – e ela, alma boa, pessoa boa, vai até um cofre na parede da sala e de lá tira o dinheiro e entrega a ele.

Aquele cofre na parede tem uma importância gigantesca na trama.

Miss Fiske não suporta mais, e diz para a sua dama de companhia, clarissimamente, que quer ver as duas irmãs dela fora daquela casa. Imediatamente.

Relatar mais, contar o que vem a partir daí seria spoiler.

Só gostaria de registrar que o que acontece de fundamental, de mais importante na história é quando o filme está com 38 dos seus já proclamados 92 minutos – e é uma sequência cinematograficamente brilhante.

É o momento climático deste “melodrama gótico”, para usar a expressão de Leonard Maltin – e é encenado de forma brilhante.

“História gótica de casa rural solitária”

Charles Vidor viveu pouco, apenas 59 anos. Nasceu Károly Vidor em Budapeste, em 1900, quando a hoje capital da Hungria era uma importante cidade do Império Áustro-Hungaro. Passou pelo cinema alemão, nos estúdios da UFA, onde trabalhou como montador e assistente de direção. Em 1924, emigrou para os Estados Unidos – e aqui noto que foi um pioneiro, talvez um visionário. Dezenas e dezenas e dezenas de pessoas do cinema europeu emigrariam em direção à Meca do cinema mundial fugindo do nazismo em ascensão, mas isso nos anos 30.

Preguiça de ver o que ele fez nos primeiros anos de Hollywood, mas o fato é que em 1933 dirigiu seu primeiro longa-metragem, Garotas Vampiras, no original. Sensation Hunters, um drama que, parece, não tem vampira alguma. Faria, entre 1933 e 1960, apenas 34 filmes, um número muito pequeno para um diretor em ação naqueles anos 30 e 40, quando cada um realizava mais de um filme por ano. Entre suas obras há pelo menos um filme muito bom, Ama-me ou Esquece-me/Love me or Leave me (1955), e um dos filmes mais famosos e mais amados de Hollywood, Gilda (1946).

Já foi mostrado aqui que Leonard Maltin gostou do filme. Pauline Kael também escreveu sobre ele em seu livro 5001 Nights at the Movies. Quando Sérgio Augusto selecionou os que figurariam na edição brasileira, que teve o título de 1001 Noites no Cinema, deixou de fora este Mistério de uma Mulher – e, na minha opinião, estava certíssimo. Não é mesmo um filme importante. Pena é que por isso sobra para o degas aqui traduzir o texto sempre irônico, rico e em geral afetado da prima donna da crítica americanas:

“An entertainingly hokey murder chiller on the stage…”

Como é que é? Chiller tudo bem, mas hokey? Dame Kael é danadinha. Dois dos meus dicionários Inglês-Português não contêm a palavra hokey. O Dictionary of English Language and Culture não traz a palavra kokey! Diabo, eu poderia ir ao meu dicionário de Cambridge ou ao gigantesco Webster de três tomos imensos, mas e a preguiça? Segundo o tradutor do Tio Google, hokey é piegas. Não sinto firmeza, mas vamos lá:

“Uma história assustadora de assassinato piegas (?) no palco, mas adaptado para a tela sem muito sucesso. Com Charles Vidor dirigindo, essa história gótica de casa rural solitária parece se levar a sério demais, como se fosse realmente um estudo psicológico. Ida Lupino trabalha duramente como uma (me recuso a traduzir o adjetivo que Dame Kael usa) de rosto severo. Isobel Elsom toma seu vinho e mordisca seus bombons como a mulher que inocentemente a trata bem, e Elsa Lanchester e Edith Barret são as irmãs malucas de Lupino, que enchem seus quartos até então arrumados com coleções de penas de corvo, pássaros mortos e arbustos. Baseado em uma peça de Reginald Denham e Edward Percy; com Louis Hayward. Columbia.”

Hum… Dame Kael, a língua mais ferina do Oeste (e do Leste), se utiliza como sempre palavras pouco usadas – hokey, nibble –, mas de alguma forma não desce a lenha no filme, coisa que faz em 98,6% dos casos. E usou a danada da palavrinha “gótica”!

A história é ruim. Não poderia dar um bom filme

Diz o livro The Columbia Story:

“Sem perder tempo, Lester Cowan levou para as telas uma versão bastante digna de crédito da peça thriller de Reginald Denham e Edward Percy que havia estreado na Broadway no ano anterior. Trazendo em seu rastro todas as armadilhas góticas de um melodrama vitoriano, e passado numa casa isolada no estuário do Tâmisa, esta aqui era uma história cheia das tensões que se desenvolvem entre uma atriz aposentada (uma Isobel Elson parecendo uma matrona), e sua governanta-dama de companhia (uma Ida Lupino mal escolhida para o papel, representado no teatro por Flora Robson) quando esta convida suas duas irmãs mentalmente perturbadas (Elsa Lanchester e Edith Barrett) para uma visita à casa.”

O verbete do livro sobre os filmes da Columbia ainda prossegue longamente.

Não sei de onde o livro tirou que a casa da senhora Fiske fica perto da foz do Tâmisa. Me parece que o autor, como creio que em geral são os americanos, é péssimo em Geografia. Os pântanos, os marshes ingleses ficam no centro da ilha, não junto do mar, me parece.

Mas o fantástico é que ele também usa a tal da palavra “gótico”.

Bem. Já relatei um pouco sobre o filme, transcrevi opiniões. Agora falo eu. Repito pela décima milionésima vez que tenho paixão pelo cinema de Hollywood nos anos 30 a 60. E tenho uma admiração imensa por essa fantástica Ida Lupino, atriz, depois roteirista e diretora, uma pioneira como diretora nessa profissão dominada até hoje por homens. Gostaria de ver todos os filmes que essa senhora fez – tanto os como atriz, tanto os como diretora. Mas para isso teria que viver até os 120, então não vai dar.

Por causa disso aí expresso no parágrafo acima, achei interessante ver este Ladies in Retirement.

Mas não é um bom filme, de maneira alguma. E a questão não é o filme – e sim a história que ele conta.

Charles Vidor conseguiu fazer um bom trabalho. A questão, me parece, é que a história é ruim.

Pelo que dá para ver, no teatro, na Broadway, em 1940, a história funcionava. Era potente, chocante, para usar os adjetivos usados por Leonard Maltin.

Legal.

Eu acho a história uma besteira. Uma bobagem. Uma perda de tempo.

Não dá para se fazer um filme bom – nem sequer mais ou menos – em cima de uma história que é uma besteira, uma bobagem, uma perda de tempo.

Anotação em abril de 2022

Mistério de uma Mulher/Ladies in Retirement

De Charles Vidor, EUA, 1941

Com Ida Lupino (Ellen Creed, a governanta)

e Elsa Lanchester (Emily Creed), Edith Barrett (Louisa Creed), Evelyn Keyes (Lucy, a empregada), Isobel Elsom (Leonora Fiske, a dona da casa), Louis Hayward (Albert Feather, o sobrinho das irmãs Creed), Emma Dunn (irmã Theresa), Queenie Leonard (irmã Agatha), Clyde Cook (Bates, o cocheiro)

Roteiro Garrett Fort, Reginald Denham

Baseado em peça de teatro de Reginald Denham e Edward Percy

Fotografia George Barnes

Música Ernst Toch

Montagem Al Clark

Direção de arte Lionel Banks

Produção Lester Cowan, Gilbert Miller, Columbia Pictures.

P&B, 92 min

**

2 Comentários para “Mistério de uma Mulher / Ladies in Retirement”

  1. Sergio, vc não tem alguma rede social onde podemos te acompanhar? Até mesmo para receber as atualizações do site com mais facilidade?

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