Ladrões de Bicicleta / Ladri di Biciclette

Nota: ★★★★

(Disponível no Amazon Prime Video e Belas Artes à La Carte.)

É impossível a gente não ficar pensando, ao revê-lo, sobre o que faz Ladrões de Bicicleta – este filme quase unanimemente incensado como uma das maiores obras-primas da História – se manter tão fresco, vívido, límpido, tocante, emocionante, depois de mais de 70 anos.

Há grandes filmes, marcos da História do cinema, que, vistos hoje, impressionam por sua importância, a beleza sublime de alguns de seus elementos, mas nos obrigam, o tempo todo, a lembrar do contexto em que foram feitos, a relativizar um tanto o que parece hoje um pouco estranho, esquisito, deslocado.

O filme que Vittorio De Sica produziu ele mesmo, em 1948, porque não encontrou empresa que se dispusesse a financiá-lo, não perde o viço, o frescor, a emoção.

Roger Ebert, um dos melhores críticos de cinema que já houve, fala disso na abertura do longo texto sobre Ladrões de Bicicleta no seu A Magia do Cinema, que trata dos “100 melhores filmes de todos os tempos”:

Ladrão de Bicicletas está tão bem solidificado como uma obra-prima oficial, que é surpreendente revê-lo depois de transcorridos tantos anos e perceber que ele se mantém cheio de vida, atualizado e vigoroso. Depois de ter recebido um Oscar Honorário em 1949 e ter sido votado rotineiramente como um dos grandes filmes de todos os tempos, ele é reverenciado como uma das pedras fundamentais do neo-realismo italiano, uma obra simples, mas poderosa.”

A edição brasileira de A Magia do Cinema, da Ediouro, de 2003, usa – erradamente – o título  Ladrão de Bicicletas. Falo mais adiante desse detalhe, o singular e o plural no título.

O importante é que o grande Ebert toca de cara nos pontos certos. Um filme que “se mantém cheio de vida, atualizado e vigoroso”. “Uma obra simples.”

Simplicidade, simplicidade, simplicidade. Um operário, um homem simples, humilde, que nunca havia sido filmado por uma câmara, no papel do protagonista da história, um operário simples, humilde. Um garotinho lindo, de olhos de uma expressividade inigualável, igualmente não ator, como o seu filho.

Acho que são esses elementos os responsáveis pela façanha de manter Ladrões de Bicicleta tão emocionante hoje quanto era mais de 70 anos atrás.

Simplicidade – e, nos papéis centrais, dois não atores

Simplicidade. Uma história simples, básica, direta, sem floreios, sem frescuras, sem sermões ideológicos.

Na periferia de Roma, a Itália ainda mal saindo das ruínas da Segunda Guerra Mundial, a sociedade desorganizada, a economia em frangalhos, altíssimos níveis de desemprego, o operário Antonio Ricci consegue finalmente, depois de meses, um trabalho como colador de cartazes de rua. A condição é que ele possua uma bicicleta: a bicicleta é ferramenta do trabalho.

A bicicleta de Antonio, uma Fides tipo ligeiro 1935, estava numa casa de penhor. Prática, despachada, Maria, a mulher dele, reúne todos os lençóis da casa e leva para a loja de penhor. Com o dinheiro obtido, dá para retirar a bicicleta.

No dia seguinte, feliz da vida, Antonio deixa o filho Bruno, garoto aí de uns 8 a 10 anos, na escola, vai até o local de trabalho, pega o material – uma escada, os papéis dos cartazes, a cola – e sai para trabalhar.

Está na escada, pregando um cartaz, quando passa um ladrão e leva sua bicicleta.

Antonio corre atrás do ladrão – mas não consegue alcançá-lo.

O roubo acontece quando estamos com 20 dos 90 minutos de duração do filme. Nos 70 minutos que virão a seguir, acompanhamos a dor, a angústia que toma conta desse pobre homem, de sua mulher e de seu filho, e sua luta para tentar encontrar e reaver a bicicleta que é seu meio de trabalho, sem a qual não tem emprego e portanto não tem como dar de comer à sua família.

Simples assim.

Muitos momentos de grande beleza

Há diversos, diversos momentos de grande cinema, de imensa beleza plástica e/ou impacto visual forte.

A sequência em que o funcionário da loja de penhores sobe diversas, diversas prateleiras de estante abarrotadas de lençóis, para encontrar espaço para os lençóis dos Ricci, é de fazer chorar – ou de querer escrever um tratado de sociologia sobre os absurdos que a humanidade é capaz de criar.

A sequência mesma que antecede ao roubo da bicicleta, em que Antonio está colando cartazes com uma foto descomunal de Rita Hayworth em Gilda, é de uma beleza chocante. Professores de Princípios Científicos da Comunicação, Semiótica e outros correlatos poderão extrair daí matéria para mais de um semestre de aulas.

A sequência às margens do Rio Tibre, quando uma pequena multidão se reúne para acompanhar uma luta para salvar uma pessoa que se afogava – e Antonio entra em pânico achando que pode ser Bruno, de quem havia se distanciado – é impressionantemente bem encenada.

Essas três são apenas alguns exemplos. Há diversas sequências impressionantes assim.

E há, sim, algumas momentos para evidenciar questões sociais, sociológicas, ideológicas, políticas.

A do final da tempestade, em que Antonio e Bruno se refugiam da chuva junto da parede de um grande prédio, e se vêem cercados por um grande número de padres, vários deles falando em alemão.

A das ricas senhoras de uma liga de caridade que cuida de mendigos e depois os encaminha à missa.

Aquela em que Antonio, não sabendo mais para quem apelar, recorre exatamente à cartomante fraudulenta a que Maria havia antes se rendido.

As sequências que mostram as multidões fascinadas com o jogo de futebol.

Religião, magia, futebol. Os críticos marxistas devem ter tido orgasmos diante daquelas demonstrações de como o povo oprimido é levado ao ópio que o afasta da consciência.

Mas nada dessas coisas aí, na verdade, tem qualquer importância.

O que pega o espectador – pela simplicidade absurda da narrativa – é a angústia daquele homem decente, que tudo que deseja na vida é ter um trabalho com que possa sustentar a família.

Do livro, o filme tem o título, e quase nada mais

Há algo esquisito, estranho nos créditos de Ladri di Biciclette, e vem logo após o nome do filme: “Soggetto di Cesare Zavattini tratto dall’omonimo romanzo di Luigi Bartolini”.

Diacho, isso aí é um oxímoro! Como silêncio estrondoso, obscura claridade, fanático racional – expressões em que uma coisa exclui a outra. Ora, se o soggetto, o argumento, é de Cesare Zavattini, como é possível que ele seja baseado em um romance de um outro fulano?

Ladri di Biciclette, o romance, foi publicado em 1946 por uma editora chamada Polin, e depois republicado em 1948 por outra, Longanesi. Tentei encontrar uma sinopse do livro, mas não achei nada além do que diz a Wikipedia em italiano: “O romance serviu de inspiração inicial para o filme homônimo de Vittorio De Sica, de 1948. O romance acompanha os acontecimentos dos roubos de bicicletas sofridos pelo autor na Roma do pós-guerra e as descobertas relacionadas.”

Soggetto, scenegiatto – aprendi essa dupla de palavras que significam argumento e roteiro quando era adolescente e comecei a ver os mestres italianos. Soggetto, scenegiatto.

O scenegiatto de Ladri di Biciclette é de – como informa o letreiro seguinte nos créditos iniciais – Oreste Biancoli, Suso D’Amico, Vittorio De Sica, Adolfo Franci, Gherardo Gherardi, Gerardo Guerrieri, Cesare Zavattini. Assim, em ordem alfabética pelo sobrenome.

Um documentário de curta-metragem extremamente informativo intitulado Working with De Sica, de 2007, esclarece as dúvidas todas. Um estudioso da obra de De Sica, Callisto Cosulich, diz, em poucas palavras, curto e grosso, que o roteiro do filme acabou tendo pouquíssimo, quase nada do romance de Luigi Bartolini. – “Acabaram pagando a Bartolini apenas para usar o título do romance”, sintetiza o estudioso.

Na maior parte do documentário, quem fala é Suso Cecchi D’Amico, então uma senhorinha de 93 anos de idade (ela morreria em 2010, aos 96). Ela dá um depoimento fantástico, maravilhoso, sobre como foi o trabalho que levou ao roteiro do filme.

Suso Cecchi D’Amico, é bom registrar, foi uma das melhores roteiristas do cinema europeu. Como é tradição no cinema italiano, ela sempre trabalhou ao lado de outros profissionais. Seu nome aparece em 132 títulos como roteirista, em filmes dos maiores realizadores. Além de Vittorio de Sica, dirigiram filmes co-escritos por ela Luchino Visconti (Belíssima, Noites Brancas, Sedução da Carne, Rocco e Seus Irmãos, O Leopardo, Vagas Estrelas da Ursa, O Estrangeiro), Michelangelo Antonioni (Os Vencidos, As Amigas), Mario Monicelli (Tomara Que Seja Mulher, Em Busca do Paraíso, Parente é Serpente), Valerio Zurlini (Verão Violento), Francesco Rosi (O Bandido Giuliano).

Ela conta que, todas as manhãs, aquela turma – Oreste Biancoli, Vittorio De Sica, Adolfo Franci, Gherardo Gherardi, Gerardo Guerrieri, Cesare Zavattini e ela – se reunia na casa de Zavattini, e conversava, conversava, conversava… para, depois de bastante tempo, começar a discutir sobre o filme, sobre a trama, a história…

– “O trabalho mesmo acabou sendo feito por Zavattini, De Sica e eu mesma, e também pelo Gerardo Guerrieri, que na verdade não era roteirista, funcionava mais como um assistente de De Sica”, conta ela. “Sabíamos que estávamos fazendo algo fora das normas cinematográficas. Não tínhamos sequer uma linha narrativa. Hoje em dia, uma história sem enredo já não causaria comoção. Mas na época era muito raro.”

E então Suso Cecchi D’Amico, 93 anos de idade, sem motivo algum para ficar fingindo modéstia, conta que foi dela a idéia dos fatos que acontecem no final do filme.

Atenção: aqui há um spoiler!

Assim, caso o eventual leitor tenha chegado até aqui sem ter visto o filme, deveria deixar este texto de lado, ou no mínimo pular para o próximo intertítulo, porque a roteirista vai revelar o final do filme.

– “Eu achava que era essencial ter um fim. Porque um final em que ele volta para a casa e fecha a porta não me parecia suficiente. Pensei: como vamos contar essa história? Você precisa dizer o que aconteceu com o protagonista. Tive a idéia de que ele roubaria uma bicicleta, já que ele via tantas por aí. Falei sobre isso e foi o nosso final. Ficaria na memória do menino para toda a sua vida.”

Suso Cecchi D’Amico aborda também, em seu depoimento no documentário Working with De Sica, o jeito do realizador de se relacionar com os atores. Explica que ele mesmo – experiente diante das câmaras, que acumularia no final da vida 164 títulos na filmografia como ator – fazia todos os gestos, falava com toda a entonação que esperava dos profissionais que dirigia. E tinha um jeito especial com as crianças:

– “Era extraordinário como De Sica falava com as crianças. Sabia trabalhar com elas. Ele falava com elas, explicava o que queria que elas fizessem. De Sica era um grande diretor de atores. Fazia aparecer as emoções que ele queria deles.”

Uma das mais emocionantes interpretações de uma criança

Depois disso, o documentário dá a palavra a um senhor quase septuagenário, ainda com cabelos, belos cabelos brancos, ainda bonito – Enzo Staiola, o sujeito que, aos 9 anos de idade, foi escolhido para o papel de Bruno, o filho de Antonio, que percorre com o pai a via crucis da tentativa de encontrar, na metrópole milenária, a bicicleta que havia sido roubada.

Enzo Staiola nasceu em Roma em novembro de 1939, apenas dois meses, portanto após o início da Segunda Guerra Mundial. O depoimento que ele deu aos realizadores de Working with De Sica, quando estava com cerca de 68 anos de idade, não bate exatamente com a versão que ficou para a História:

– “A primeira vez que vi De Sica foi em 1948, quando saía da minha escola, e notei que um carro me seguia. Roma era perigosa naquela época. Aconteciam coisas com as crianças. Havia o estuprador Girolimoni, essas coisas… Então saí correndo para minha casa. E ficou nisso. Eu nem o conheci. No dia seguinte ele fazia testes no bairro em que eu morava, a Via Capo d’Africa, perto do Coliseu. Os testes eram bem em frente do meu prédio. Ele testou 5 mil garotos em toda a Itália. Ele chegou perto de mim e disse: – “Ele é o garoto”.”

Eis o que diz o IMDb, em um dos 30 e tantos itens de Trivia – informações, curiosidades – sobre o filme:

“Vittorio De Sica ainda não havia encontrado o ator ideal para interpretar Bruno quando as filmagens começaram. Foi enquanto filmava a sequência em que Antonio procura por seu amigo que poderia ajudá-lo a localizar a bicicleta que o destino interferiu. ‘Eu estava falando alguma coisa com Maggiorani (o operário que ele havia escolhido para interpretar Antonio) quando eu me virei, chateado com os curiosos que estavam se juntando ao redor de mim, e vi uma criança com um estranho olhar e uma face redonda, um grande nariz engraçado e olhos maravilhosos, vívidos. San Gennaro mandou ele para mim, pensei. Era a prova de que tudo estava dando certo.’”

San Gennaro, 272-305 D.C., o patrono de Nápoles, cidade presente em muitos filmes de De Sica. São Januário, em Português,

Bem, se foi San Gennaro, o destino, o fado, as musas, o próprio Deus, se De Sica o seguiu de carro ou não, se De Sica o viu durante os testes à procura de um garoto para interpretar Bruno, ou se Enzo Staiola estava no meio da multidão acompanhando as filmagens numa rua de Roma, isso não interessa tanto. O fato é que aconteceu: De Sica bateu os olhos naquele menino de olhos maravilhosos, e Enzo Staiola presenteou o mundo com uma das mais fantásticas, emocionantes, inesquecíveis interpretações de uma criança na História do cinema.

Fico sempre muito impressionado com interpretações magistrais de crianças e/ou adolescentes bem jovens. Não quero me alongar sobre o assunto, mas eu diria que Enzo Staiola está num time de craques que inclui Jack Coogan em O Garoto (1921), Jean-Pierre Léaud em Os Incompreendidos (1959), Patty Duke em O Milagre de Annie Sullivan (1962), Tatum O’Neil em Lua de Papel (1973). Henry Thomas em E.T.: O Extraterrestre (1982) e Haley Joel Osment em O Sexto Sentido (1999).

Nos papéis centrais, um operário, uma jornalista…  

Sobre a escolha de Lamberto Maggiorani para o papel principal, não há diferentes versões, parece. O que se conta é que aquele operário que tinha então 39 anos de idade (nasceu em Roma, em 1909, o ano da minha mãe) levou seu filho para fazer um teste para o papel de Bruno. De Sica bateu o olho nele, não ligou para o filho, fez um teste e o contratou.

O que demonstra que De Sica, além de todos as suas outras qualidades – a de ótimo ator, a de um excelente contador de histórias, a de um extraordinário diretor de atores –, é um absoluto mestre, um gênio em bater o olho em alguém que nunca fez curso algum de arte dramática e identificar ali um talento de ator.

Na época da filmagem de Ladrões de Bicicleta, uma jovem jornalista foi entrevistá-lo. Chamava-se Lianella Carell (na foto acima), e não era especialmente bela. A rigor, nem era muito bonita. De Sica perguntou se ela não gostaria de interpretar Maria, a mulher de Antonio, mãe de Bruno e mais um bebezinho. Lianella Carell podia não ter a beleza de uma Sophia Loren, que De Sica dirigiu tantas vezes, mas boba não era, e aceitou.

Depois de aparecer nas telas gigantescas, como não querer continuar? Lianella Carell apareceria depois em 17 filmes como atriz. Lamberto Maggiorani, em 16. O garoto Enzo Staiola, em 15.

Um operário, um garoto que estudava no primeiro grau, uma jornalista. Atores não profissionais.

O uso de atores não profissionais era uma das marcas do neo-realismo italiano. Mais importante de todos os movimentos cinematográficos da História, influenciador da nouvelle vague francesa, do cinema dos angry young men ingleses, do cinema novo brasileiro, do dinamarqueses chatos do Dogma 90, do novo cinema do Irã na breve primavera antes da radicalização da ditadura dos aiatolás, o neo-realismo italiano focalizava a vida dos mais pobres, das classes trabalhadoras, usava cenários reais, as ruas das cidades, em vez dos estúdios, e, sempre que possível, recorria a gente comum para fazer o papel de gente comum.

Roma, Cidade Aberta (1945), de Roberto Rossellini, tido como o filme que lançou o neo-realismo, foi comprado por muitos críticos como sendo um filme de atores não profissionais – embora, na verdade, tivesse um bom mix de atores e não atores.

Creio que Ladrões de Bicicleta é o filme neo-realista que mais fundo foi na coisa de mostrar não atores. Não há profissionais diante das câmaras.

Atrás delas, no entanto… Meu, só profissas.

Quando Rossellini fez Roma, Cidade Aberta, a Segunda Guerra mal havia acabado, as condições todas eram absolutamente precárias, o orçamento praticamente não existia – e a própria experiência do realizador não chegava a ser grande. Havia dirigido apenas uns seis curtas e três longas.

A situação geral da Itália em 1948 era seguramente melhor – ou, no mínimo, menos pavorosa – do que três anos antes. De Sica era mais experiente do que o colega augusto, excelso, havia sido três anos antes. De Sica já havia dirigido sete longa-metragens – o mais recente deles, Vítimas da Tormenta/Scuistà, em inglês Shoeshine, de 1946, havia sido muitíssimo bem recebido pela crítica, tido uma indicação ao Oscar de melhor roteiro original e homenageado com um Oscar honorário, para o qual a Academia escreveu: “A alta qualidade deste filme feito na Itália, trazido à vida eloquente em um país que se cicatrizava da guerra, é prova para o mundo de que o espírito criativo pode triunfar sobre a adversidade”.

Ele podia se dar ao luxo de fazer um filme só com não atores. Afinal, atrás das câmaras tinha Cesare Zavattini, o principal teórico, o principal autor das histórias dos filmes neo-realistas, e mais Suso Cecchi D’Amico…

Um filme que inspirou grandes cineastas

Ao ler um pouco sobre Ladrões de Bicicleta, depois de revê-lo agora, para poder escrever sobre ele, um detalhe pipocou à minha frente. Bem, a rigor não é um detalhe. É uma característica, diabo.

Ladrões de Bicicleta não é apenas um filme amado por uma quantidade imensa de críticos e cinéfilos. Ele é amado por – e de alguma forma fez parte da vida de – um time excepcional de realizadores.

O grande mestre indiano Satyajit Ray – isso é voz corrente, é fato indiscutível – dizia que se sentiu inspirado a fazer filmes depois de ver Ladrões de Bicicleta.

O grande mestre inglês David Lean apareceu em uma das locações nas ruas de Roma em que De Sica filmava uma sequência; consta que ficou muito impressionado com a forma com que o realizador italiano manejava as multidões na rua.

Outro diretor indiano, Anurag Kashyap, abandonou a universidade e resolveu se dedicar ao cinema depois de ver Ladrões de Bicicleta.

Sergio Leone, o grande Sergio Leone… Ah, meu, essa aqui é demais. Sergio Leone, de 1929, portanto com 19 anos em 1948, faz uma ponta no filme, como um dos padres que se protegem da chuva junto de uma grande edificação – onde Antonio e o garoto Bruno vão também buscar proteção.

Ettore Scola – diacho, parece até invenção de roteirista criativo… –tinha 15 anos de idade quando, a caminho da escola, passou pela Piazza Vitrorio e estranhou que ela estivesse tão vazia. “Só um trabalhador, um varredor de rua e uma criança estavam cruzando a rua, indo na direção do mercado”, contaria muitos anos depois o grande diretor. Uma voz baixa e estranhamente próxima, como de alguém usando um megafone, chegava até os atores e a multidão reunida atrás das barreiras: ‘Mais devagar, Lamberto. Deixe o Gino ir em frente. Enzo, fique atrás do papai’. A voz, quase um sussurro, vinha de uma pequena torre em cima da qual, em uma cadeira de madeira, estava sentado um cavalheiro usando um chapéu, um cachecol e um casaco de pele de carneiro.”

De Sica sempre foi um homem muito elegante…

Em sua obra-prima de 1974, Nós Que Nos Amávamos Tanto, Ettore Scola fez um panorama da história italiana desde o final da Segunda Guerra até aqueles meados dos anos 70 – e aproveitou para fazer várias citações sobre o cinema de seu país. Da mesma forma com que ele na vida real acabou assistindo à filmagem de uma sequência de Ladrões de Bicicleta, seus personagens por acaso passam perto da Fontana di Trevi quando  Federico Fellini está filmando a famosérrima cena em que Anita Ekberg entra na fonte, em A Doce Vida. E um dos três grandes amigos que lutaram juntos contra o fascismo e depois se apaixonam pela mesma mulher, interpretada pela diva Stefania Sandrelli, é um fanático por cinema, por Vittorio de Sica em especial, e por Ladrões de Bicicleta em particular.

Uma delicadeza de traço que por vezes o aparenta a Chaplin”

Um registro sobre o título antes de passar para algumas opiniões de grandes críticos.

Ladri di Biciclette, o título original, não tem artigo no início, e usa as duas palavras no plural. O título brasileiro tirou o plural da segunda palavra, ficou Ladrões de Bicicleta (e não Ladrão de Bicicletas, como grafa erradamente o livro A Magia do Cinema de Roger Ebert). Nos países de língua inglesa, usaram as duas palavras no singular e acrescentaram o artigo, The Bicycle Thief. Na França, segundo o IMDb, foram usados dois títulos, um com o artigo, o outro sem – Le Voleur de Bicyclette e Voleur de Bicyclette.

“Grande filme do neo-realismo, Le Voleur de Bicyclette conheceu um enorme sucesso no seu lançamento e foi classificado em um referendo em 1958 entre os 12 melhores filmes do mundo”, diz o Guide des Films de Jean Tulard. “Ele conheceu depois um eclipse, mas conserva um indiscutível charme.”

Nunca soube que o filme tenha passado um período no esquecimento, mas então tá.

Eis o que diz o livro As Obras-Primas do Cinema, de Claude Beyle:

“Durante muito tempo ator de comédia, especializado nos papéis de janota desenvolto ou de namorado romântico, Vittorio De Sica (1901-1974) vai se revelar, a partir de 1940, um diretor sensível e eclético, tão à vontade no cinema ligeiro quanto no cinema engajado. Seu encontro com Cesare Zavattini, fervente adepto do neo-realismo, vai fazê-lo bifurcar para o melodrama social, com laivos de ideologia marxista. Sob a máscara de constatação objetiva de um país arruinado pela guerra, Ladrões de Bicicleta, como mais tarde Milagre em Milão (1951) e Umberto D (1952), denuncia na verdade a impotência das instituições para resolverem dignamente os dramas do proletariado. O humor vem socorrê-lo, transformando essa melancólica perambulação de um homem e seu filho em busca iniciática. O filme foi feito em locações, com intérpretes não profissionais (dentre os quais desempregados de verdade!).

“O sucesso da primeira parte dessa ‘trilogia da pobreza’ foi enorme e valeu a seu autor uma reputação de grande cineasta humanista, que depois teve dificuldades de assumir. É preciso pôr em seu ativo uma delicadeza de traço que por vezes o aparenta a Chaplin.”

O livro 1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer focaliza a relação entre Antonio e Bruno: “Ladrões de Bicicleta contém o que talvez seja a maior representação do relacionamento entre pai e filho da história do cinema, repleto de oscilações e gradações progressivas em termos de respeito e confiança entre os dois personagens, além de ser impressionantemente desolador. Ele também tem seus momentos de comédia à Chaplin, como o comportamento contrastante de dois menininhos almoçando no mesmo restaurante. Se comparado a um filme como A Vida é Bela, ele dá uma idéia de como o cinema comercial mundial e sua relação com a realidade foram infantilizados no decorrer do século passado.”

Leonard Maltin – que, naturalmente, deu ao filme a cotação máxima de 4 estrelas – fez uma curta porém corretíssima avaliação: “A história simples, realista de um trabalhador cuja tarefa depende de sua bicicleta, e a semana desesperadora que ele passa com seu filho depois que ela é roubada. Um filme honesto, belo, que merecidamente recebeu um Prêmio da Academia (antes que os filmes estrangeiros passassem a ter sua própria categoria); um dos clássicos de todos os tempos.”

Anotação em novembro de 2023

Ladrões de Bicicleta/Ladri di Biciclette

De Vittorio De Sica, Itália, 1948

Com Lamberto Maggiorani (Antonio),

Enzo Staiola (Bruno),

Lianella Carell (Maria), Elena Altieri (a senhora da caridade), Gino Saltamerenda (Baiocco, o líder operário), Giulio Chiari (o mendigo), Vittorio Antonucci (o ladrão)

Roteiro Oreste Biancoli & Suso Cecchi D’Amico & Vittorio De Sica & Adolfo Franci & Gherardo Gherardi & Gerardo Guerrieri & Cesare Zavattini

Argumento Cesare Zavattini, baseado no romance homônimo de Luigi Bartolini

Fotografia Carlo Montuori      

Música Alessandro Cicognini

Montagem Eraldo Da Roma   

Direção de arte Antonio Traverso     

Produção Giuseppe Amato, Vittorio De Sica, Produzioni De Sica

P&B, 90 min (1h30)

R, ****

Um comentário para “Ladrões de Bicicleta / Ladri di Biciclette”

  1. Toda a delicadeza, criatividade e genialidade de Vittorio De Sica reunidas em uma de suas principais obras.

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