Nota:
(Disponível no Cine Antiqua do YouTube em 1/2022.)
“Hoje, minha mãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: ‘Sua mãe falecida. Enterro amanhã. Sentidos pêsames’. Isto não quer dizer nada. Talvez tenha sido ontem.
O asilo de velhos fica em Marengo, a oitenta quilômetros de Argel. Tomo o ônibus das duas horas e chego lá à tarde. Assim, posso passar a noite a velar e estou de volta amanhã à noite. Pedi dois dias de folga ao meu patrão e, com uma razão destas, ele não mos podia recusar. Mas não estava com um ar lá muito satisfeito. Cheguei mesmo a dizer-lhe: A culpa não é minha. – Não respondeu. Pensei então que não devia ter dito estas palavras. A verdade é que eu não tinha nada que me desculpar. Ele é que tinha de me dar pêsames. Mas com certeza o fará, depois de amanhã, quando me vir de luto.”
Assim começa O Estrangeiro, o romance de Albert Camus publicado em 1942 – e exatamente assim começa o filme do mestre Luchino Visconti de 1967. É muito impressionante como o roteiro de Lo Straniero é fiel à obra de Camus. É um trabalho feito a várias mãos, como era costume no cinema italiano: assinam o roteiro a magistral Suso Cecchi D’Amico, certamente uma das mais brilhantes roteiristas da História do cinema, o próprio Visconti, mais Georges Conchon e Emmanuel Robles.
Na minha opinião, toda a atmosfera do livro está no filme
O filme reproduz com exatidão os fatos narrados por Camus – o cotidiano de Arthur Meursault nos dias que se seguem à morte e ao enterro de sua mãe. Meursault (interpretado por Marcello Mastroianni, belo como o Deus Apolo) é um francês na Argélia, então uma colônia francesa, e na realidade que ele narra (o livro é escrito em primeira pessoa) é como se os árabes, os muçulmanos, os moradores originais fossem uma minoria, e vivessem em um mundo à parte. Ele usa a palavra “árabe” para designar os não-franceses, os não-colonizadores – ah, ali havia um árabe. Quase como se fosse uma raça inferior, ou um tipo de animal. Tipo assim: ah, ali no bar havia dois cães.
Meursault parece ser um homem comum, banal, “normal”. O fato de não chorar no velório e no enterro da mãe, de agradecer mas dizer não ao oferecimento para se reabrir o caixão para que pudesse vê-la, de aceitar um café e fumar diante do caixão – tudo isso que terá mais tarde uma importância imensa durante seu julgamento, tudo isso a rigor é o de menos. Tudo isso a rigor não tem importância. Ninguém é obrigado a chorar copiosamente num velório ou enterro, nem a ficar olhando para o parente morto no caixão.
Nem mesmo o fato de ele ter ido à praia no dia seguinte ao do enterro, e de por acaso ter encontrado na praia a bela Maria, que havia trabalhado como secretária na mesma empresa de Meursault, e de terem depois ido ao cinema ver uma comédia com Fernandel, e depois terem ido para a casa dele e trepado – nada disso, a rigor, comprova uma personalidade anormal, diferente, doentia. Muito embora o promotor vá usar tudo isso como “prova” de que aquele é um homem sem alma, com instinto assassino. (Maria é interpretado pela diva Anna Karina.)
O que mostra, sim, que Meursault é um homem estranho, distante da imensa maioria das pessoas, é a sua profunda indiferença diante de tudo, de absolutamente tudo.
Meursault narra, tanto no livro quanto no filme:
“À noite, Marie veio buscar-me e perguntou se eu queria casar-me com ela. Disse que tanto fazia, mas que se ela queria, poderíamos nos casar. Quis, então, saber se eu a amava. Respondi, como aliás já respondera uma vez, que isso nada queria dizer, mas que não a amava”.
Um homem absurdamente indiferente a tudo – esse é o personagem que o livro mostra, e que o filme mostra exatamente como está no livro.
Basicamente todos os eventos descritos no livro estão no filme; vários, vários, vários diálogos foram preservados exatamente como Camus escreveu.
Os eventos e o clima, o ambiente, a atmosfera. O calor tenebroso, sufocante, o suor que não pára de escorrer pelo rosto de Meursault, que empapa suas camisas, seu paletó. O calor que o levou perto da insolação naquele dia na praia em que o rapaz árabe sacou uma faca para ele. O calor que faz todos no tribunal abanarem os leques. Tanto calor que, quando o juiz presidente do julgamento pergunta a ele se poderia “especificar os motivos que inspiraram o seu ato”, Meursault responde “rapidamente, misturando um pouco as palavras e consciente do ridículo, que fora por causa do sol”.
Essa atmosfera de calor sufocante que Albert Camus descreve ao longo das cerca de 140, 150 páginas de O Estrangeiro está toda ali no filme de Luchino Visconti.
Não é Meursault que é absurdo – é o mundo
Não era apenas Meursault que, com aquela absoluta indiferença diante de tudo, tinha um comportamento absurdo – era o mundo, a civilização. E foi isso que Albert Camus mostrou em O Estrangeiro, dizem os estudiosos de sua obra.
“Estava-se em 1942, no auge da Guerra total no mundo, o nazismo já colocava em voga a ‘solução final’, confiscando, estuprando, deportando e matando centenas de milhares de judeus, negros, gays, ciganos e comunistas. No front, a França havia caído e estava sob o domínio implacável de Hitler. Quase toda a Europa estava ocupada e sob o domínio nazista. Portugal, sob o fascismo de Salazar, Espanha, sob o de Franco, a Itália, sob o de Mussolini, o Japão expandindo-se na Ásia oriental, estuprando, matando e roubando chineses.”
O parágrafo acima é de Mario Filipe Cavalcanti, editor do site Homo Literatus, com, entre outros títulos, um mestrando em Ciências da Comunicação pela USP, e faz parte do ensaio “O Domínio Brutal da Indiferença em ‘O Estrangeiro’, de Albert Camus”.
Diz Mario Filipe Cavalcanti: “Muitos analistas de literatura esquecem, mas assim estava o mundo quando Albert Camus escreveu O Estrangeiro, que foi lançado na França em 1942. O livro (…) é um clarividente retrato de um mundo absurdo, à época da ascensão do fascismo e do ultra-direitismo.” Para Meursault, diz o estudioso, “com habitual frequência, tudo, absolutamente tudo, tanto fazia. A vida que se desenrola diariamente para o ser era simplesmente um apagar e reacender de velas, de luzes, de claridade e de escuro, portanto um mar de sensações numa ausência completa de sentidos.”
Muitos dizem que o filme não foi fiel ao livro
O crítico Leonard Maltin deu ao filme 3.5 estrelas em 4: “Excelente adaptação do romance existencialista de Albert Camus sobre um homem que se sente completamente isolado da sociedade. A escolha de Mastroianni para o papel é perfeita”.
Pois é. Foi o que achei, ao ver agora pela primeira vez o filme que, por algum motivo, não havia visto na época do lançamento.
Mas, pelo que diz muita gente boa – inclusive o próprio Luchino Visconti e a grande roteirista Suso Cecchi D’Amico –, não é nada disso. Leonard Maltin e eu não entendemos coisa alguma.
O filme – esta é a avaliação de diversos críticos, e do próprio autor – não conseguiu transmitir o que Albert Camus quis dizer.
Começo transcrevendo o verbete do Guide des Films de Jean Tulard:
“Um fracasso de Visconti. Embora ele se esforce por se manter fiel ao romance, o espírito deste está ausente do filme. Apenas algumas belas tomadas de Alger permitem que o espectador se lembre que se trata de um grande realizador.”
Eis o que diz Pauline Kael, na tradução de Sérgio Augusto para a edição brasileira de 1001 Noites no Cinema:
“Marcello Mastroianni faz o papel de Meursault, o herói de Camus, de uma maneira muito simples, e com escrupulosa inteligência e concentração. Dirigido por Luchino Visconti, o filme tem trechos notáveis e é muitíssimo eficiente na sugestão da atmosfera do romance – o calor argelino, a violência inesperada e não premeditada. O que falta é a originalidade psicológica que tornou o livro importante. O romance era uma visão nova definitiva – uma visão mais honesta da conduta humana. Mas na época em que o filme foi feito essa visão já havia penetrado na sensibilidade moderna, e o conceito de alienação tornara-se um artigo convencional e barato no cinema. Desta maneira, embora o filme se passe na época correta – a década de 30 –, isso não ajuda a relacioná-lo com o que significava a visão de Camus nos anos do pós-Segunda Guerra Mundial, e o filme parece apenas um relato factual do crime e julgamento de Meursault.”
Dame Kael tropeça ligeiramente ao dizer “anos do pós-Segunda Guerra Mundial”, já que em 1942 o conflito estava acontecendo ainda.
Visconti não gostou de Marcello, detestou o filme
Mais impressionante ainda é o que se fala do filme na excelente biografia Luchino Visconti – O Fogo da Paixão. Ali, o dedicado biógrafo do cineasta, Laurence Schifano, mostra que o filme definitivamente não saiu como Visconti desejava, devido a vários problemas, inclusive atritos com o produtor Dino De Laurentiis.
Visconti não conseguiu que o produtor aceitasse o ator que ele queria para o papel de Meursault – Alain Delon, que ele já havia dirigido em Rocco e seus Irmãos (1960) e O Leopardo (1963). E teve que aceitar, a contragosto, Marcello Mastroianni – que ele também já havia dirigido antes, em Noites Brancas (1957).
Fiquei bastante espantado com o que se fala na biografia de Visconti sobre Marcello Mastroianni, esse que para mim é um dos maiores atores do cinema europeu.
Laurence Schifano escreve que, sempre que filmava um grande romance, Visconti procurava encontrar “os signos precursores de mutações históricas” que só viriam a acontecer mais tarde. E dá o exemplo do personagem de Tancredi em O Leopardo, que já anunciava o conluio que viria entre as classes dirigentes e o fascismo.
Isso deveria ter acontecido com O Estrangeiro de 1967, que Visconti – diz o autor – “renegará por não ter podido dar-lhe o sentido que lia nas entrelinhas: no assassinato, por exemplo, ‘o terror do pied-noir que, criado naquele meio, sente-se rejeitado, e sabe que vai ter que partir, deixando aquela terra para seus donos” – o anúncio, portanto, da guerra da Argélia, que acabava de terminar: ‘Minha interpretação e meu roteiro do Estrangeiro existem mesmo – dirá ele -, eu o escrevi com a colaboração de Georges Conchon, e é algo completamente diferente do filme. Havia ali os ecos do Estrangeiro – ecos que, como percebemos, chegavam até hoje, até a OAS, até a guerra da Argélia; este era realmente o significado do romance de Camus. Eu diria que ele previa o que aconteceu, e essa previsão que se encontra no romance, eu a teria concretizado cinematograficamente.’”
Em seguida, o biógrafo de Visconti fala da escolha do ator:
na opinião de Visconti, Meursault só podia ser Alain Delon. Mas o produtor exigiu que fosse Mastroianni.
“Talvez – confirma Suso Cecchi d’Amico – Mastroianni não fosse exatamente o ator indicado, pois ele não tem problemas existenciais, é preguiçoso, enfim, não dá ao filme uma dimensão suficiente.” Mastroianni permanecia muito ‘italiano’, e ninguém mais que Visconti era sensível aquilo que a origem de um ator pode dar ou tirar de um personagem. Comparando Dirk Bogarde a Mastroianni, ele nota no primeiro ‘um lado profissional, inglês, bem mais profundo, uma espécie de disciplina geral bem mais desenvolvida. Bogarde nunca abandonou seu personagem durante Morte em Veneza: mesmo quando voltava para casa, continuava a ser Aschenback; foi Aschenbach durante dois meses e meio! Quanto a Mastroianni, é um menino que, quando vê tagliatelli ou espaguetes, esquece completamente que está fazendo Meursault. Vai comer, e depois recomeça. É muito diferente, é o lado italiano, um tanto leviano.’”
E Laurence Schifano prossegue:
“Apesar da magia de certas atmosferas à Tennessee Williams no início do filme, apesar da limpidez despojada da narrativa, da reconstituição fiel, feita por Piero Tosi, da Alger dos anos quarenta, apesar de conter seqüências soberbas – o assassinato, a prisão comum, onde a câmara descobre lentamente, sinuosamente, os corpos ocultos dos árabes, e sobe até a silhueta do tocador de flauta, o pesado calor do processo, que relembra inapelavelmente as tomadas do processo de Koch, em 1945 -, o conjunto do filme também não se beneficia dessa ‘participação’ íntima do artista, que nos outros filmes de Visconti consegue ‘elevar a matéria’ sobre a qual se apóia: uma matéria que é sempre a mesma, isto é, segundo sua própria definição, ‘histórias verdadeiras, com base na terra, mas que permitem que nos elevemos acima da terra’. ‘Se tivéssemos rodado o filme assim que terminamos o roteiro – observa Suso Cecchi d’Amico –, creio que ele teria ficado melhor, mas tivemos que esperar três anos. Há partes que eu amo, como por exemplo o assassinato, o diálogo com o padre, mas no conjunto não creio que tenha sido bem-sucedido. Nunca mais o revimos com Luchino. Quando ele estava doente, quis rever todos os seus filmes em videocassetes, exceto Ludwig, que não queria ver de jeito nenhum, porque estava mutilado; O Estrangeiro parecia esquecido.”
Meu Deus. Gostei do filme que o autor desprezou!
Anotação em janeiro de 2022
O Estrangeiro/Lo Straniero
De Luchino Visconti, Itália-França, 1967
Com Marcello Mastroianni (Arthur Meursault)
e Anna Karina (Marie Cardona), Bernard Blier (o advogado de defesa), Alfred Adam (o promotor), Georges Geret (Raymond, o amigo), Georges Wilson (magistrado), Bruno Cremer (o padre), Pierre Bertin (o juiz), Jacques Herlin (o diretor do asilo), Marc Laurent (Emmanuel), Jean-Pierre Zola (empregado), Mimmo Palmara (Masson), Angela Luce (Madame Masson), Saada Cheritel (árabe), Mohamed Ralem (árabe), Brahim Hadjadj (árabe), Vittorio Duse (advogado)
Roteiro Suso Cecchi D’Amico, Georges Conchon, Emmanuel Robles, Luchino Visconti
Baseado no romance homônimo de Albert Camus
Fotografia Giuseppe Rotunno
Diiretor musical Bruno Nicolai
Música Piero Piccioni
Montagem Ruggero Mastroianni
Direção de arte Mario Garbuglia
Figurinos Piero Tosi
Produção Dino De Laurentiis
Cor, 104 min (1h44)
***
Olá Sérgio!
Esqueceu de mencionar o nosso querido Ebert, que deu a este filme um espantoso 4/4, em 1968 e ainda um rapaz de 25 anos!
Um abraço!
ALM
Olá, ALM!
Rapaz, não vi. Não fui atrás do Ebert nesse caso! Que interessante!
Bem, me sinto então em boa companhia… Não fui só eu que gostei do filme!
Muito obrigado por enviar o comentário.
Sérgio