Irresistível / Irresistible

Nota: ★★★½

(Disponível no Prime Video em 9/2023.)

Irresistível/Irresistible, produção do cinema independente norte- americano de 2020, escrito e dirigido por Jon Stewart, é engraçadíssimo, hilariante. Mas, ao fim, deixa um gosto bem amargo na garganta do espectador, em especial do espectador que preza a democracia, as liberdades básicas, o respeito aos direitos fundamentais.

Mostra que democracia não é nada fácil – e as ameaças a ela são muitas, e poderosas. E como está sendo difícil defender os princípios progressistas em uma sociedade que cada vez mais cede aos apelos do populismo de direita.

Irresistível é uma sátira política forte, rasgada, virulenta, da estirpe de outros belos filmes, como o Dr. Fantástico/Dr. Strangelove de Stanley Kubrick (1964), Mera Coincidência/Wag the Dog de Barry Levinson (1997), Politicamente Incorreto/Bullworth de Warren Beatty (1998), A Lavanderia/The Laundromat de Steven Soderbergh (2019), Não Olhe Para Cima/Don’t Look Up de Adam McKay (2021).

Como todos eles, é engraçadíssimo e ao mesmo tempo trata de temas sérios, pesados, densos. Como todos eles, faz uma crítica feroz à direita radical.

Sobretudo, o filme mostra a extrema dificuldade que os progressistas dos Estados Unidos estão tendo, cada vez mais, para conseguir se comunicar com o povo, a massa, das classes médias para baixo – em especial no interiorzão do país, fora dos grandes centros urbanos.

E, nesse ponto – que, afinal, é o cerne do filme –, Irresistível, que fala, claro, da realidade muito específica da política partidária dos Estados Unidos, torna-se uma obra que tem sentido universal.

Políticos de esquerda e centro-esquerda do mundo inteiro estão tendo essa dificuldade de falar para os mais pobres, mais desassistidos, menos escolarizados – exatamente a parte da população que eles pretendem defender. No mundo inteiro, seja nos países mais ricos e desenvolvidos, seja nos do Terceiro Mundo. Estados Unidos, Itália, Alemanha, e até mesmo a tradicionalmente social-democrata Suécia, para dar só alguns exemplos, enfrentam um crescimento da direita e da extrema direita. No Brasil, tivemos os quatro anos apavorantes da Presidência do inominável – e, nas eleições de 2022, por muito pouco ele não foi reeleito.

Marqueteiro de Washington vai para o interior bravo

Uma sinopse é necessária. Tenho tentado sempre apresentar uma sinopse. Eis a do IMDb: “Um estrategista democrata ajuda um veterano aposentado a concorrer a prefeito em uma cidade pequena e conservadora no Centro-Oeste.”

Os americanos usam Meio-Oeste, e em vez de estrategista a melhor palavra seria talvez marqueteiro, mas a frase do IMDb é um resumo correto da base da trama.

O estrategista, o marqueteiro democrata, Gary Zimmer, é o papel de Steve Carell (na foto acima), esse ótimo ator, comediante de mão cheia. O veterano militar, fazendeiro do interiorzão do Wisconsin, coronel Jack Rastings, é interpretado por Chris Cooper (na foto abaixo), ator excelente, filmografia extensa, com talvez mais títulos independentes do que produções dos grandes estúdios.

Parece que se deram bem trabalhando juntos esse astro de grandes comédias e esse senhor ator de filmes indies – a dupla está ótima na tela.

São os dois atores principais, e os mais conhecidos do elenco. Eu, pelo menos, não conhecia as duas atrizes que fazem os papéis femininos mais importantes, Rose Byrne e Mackenzie Davis. Rose Byrne interpreta Faith Brewster, a grande marqueteira do Partido Republicano, a inimiga, a rival de Gary Zimmer – e ao mesmo tempo sua ex-amante. Faith trabalha para um partido conservador, muitas vezes abertamente reacionário, mas é desbocada e safada – e Rose Byrne exagera nessas características da personagem.

Um jeito oposto ao de Mackenzie Davis, que faz Diana, a filha do coronel fazendeiro. A Diana composta pela atriz é uma mulher bonita, mas não demais; é simpática, agradável, suave – mas de um jeito um tanto recatado. Afinal, diacho, é uma moça do interiorzão profundo.

Eu me encantei com a filha do coronel Jack, e é possível que boa parte dos espectadores tenham reação semelhante. O marqueteiro espertalhão de Washington D.C., que se considera o maior gênio da raça (da mesma maneira que sua semelhante só que do lado oposto Faith Brewster) se encanta absolutamente por ela.

Tadinho.

         Tomadas curtas, montagem rápida, informação demais

O autor e diretor Jon Stewart criou personagens interessantes, situações engraçadíssimas e uma trama gostosa, envolvente. Com um detalhe fantástico: quando o espectador está certo de que já sabe onde a história vai dar… tcham-tcham-tcham-tcham! Muda tudo!

É uma absoluta delícia: há uma grande, sensacional, incrível reviravolta.

Obviamente não haverá aqui o spoiler. Talvez, a rigor, a rigor, eu dizer que há uma reviravolta já seja um spoiler… Se bem que não. Diabo: pode até abrir o apetite do eventual leitor que tenha chegado aqui sem ter antes visto o filme.

Formalmente, visualmente, Irresistível é um filme cheio de pequenas brincadeiras. E em muitos momentos Jon Stewart usa um ritmo um tanto rápido demais, um tanto frenético, na montagem.

O início da narrativa, os primeiros momentos… Vixe! É tudo rápido demais, informação demais. Os teóricos dizem que o excesso de informação prejudica a comunicação (aprendi isso na Escola de Comunicações e Artes), mas muitos filmes mais recentes acham que é bonitinho, chique, cult, despejar informação demais na abertura.

O filme abre com tomadas curtas e montagem acelerada de uma mistura de realidade e ficção: estamos na campanha presidencial de 2016, aquela em que os candidatos eram a senadora Hillary Clinton e o empresário bufão Donald Trump. O espectador ouve frases que de fato foram ditas por Hillary e pelo idiota laranja. Em seguida uma legenda informa, na primeira tomada em que vemos Steve Carrell, que aquele ali é “Gary Zimmer, estrategista democrata”, e no mesmo momento está também falando com os repórteres “Faith Brewster, estrategista republicana”.

Tomadas curtas do democrata, corta, tomadas curtas da republicana, corta.

Novo letreiro na tela negra: “8 de novembro de 2016 – Dia da Eleição”. Vemos uma tomada de um velho filme em preto-e-branco em que um homem leva um tiro de canhão na barriga – um tiro de uma grande bola, não de uma bala. A voz de um locutor diz: – “A América está em choque”. A voz de uma locutora diz: – “Sua vitória põe em xeque pesquisas…” A voz de um outro locutor diz: – “Houve um terremoto de 9.5 na escala Richter…”

A voz dos apresentadores de um jornal de TV fala sobre a derrota dos democratas e sobre como Gary Zimmer, apenas uma semana antes, garantia que Trump não seria eleito, que Hillary seria a presidente dos Estados Unidos – enquanto a câmara vai mostrando a roupa do marqueteiro espalhada pela casa. Na noite anterior, é claro, o cara havia enchido a cara, e estava agora na maior ressaca física, moral e cívica do mundo.

Estamos chegando aos 4 minutos do filme. Vemos cenas dos grandes monumentos de Washington em velhos noticiários em preto-e-branco, e aí rolam os créditos iniciais, sobre fotos P&B de presidentes dos Estados Unidos em momentos informais, em geral fazendo lanche, comendo – John F. Kennedy, Lyndon B. Johnson, Richard M. Nixon, Jimmy Carter, Ronald Reagan, Bill Clinton.

George W. Bush aparece em foto em cores, e depois dele surgem John Kerry, uma garotinha na campanha de Milt Romney, Barack Obama – e aí há uma foto fake, em que Hillary Clinton está acompanhada por Steve Carell-Gary Zimmer. Mezzo História real, mezzo a história fictícia criada por Jon Stewart.

A última foto que aparece nessa sequência dos créditos iniciais é uma em que aparece ele mesmo, o estrupício laranja.

Um fazendeiro contra uma medida xenófoba

É uma bela abertura de sátira política. Visualmente e conteudisticamente – com perdão pelo neologismo – interessante, instigante, convidativa.

E que beleza que agora, além de nas grandes salas, no escurinho do cinema, temos também a opção de ver os filmes em casa, onde há essa possibilidade mágica de voltar atrás e rever quantas vezes quiser uma determinada sequência!

Os puristas insistem em que os filmes têm que ser vistos nas salas de cinema, os theaters, como dizem os de língua inglesa. Claro, claro, nas salas de cinema há uma magia única – mas, diacho, lá não dá pra dar rewind!

Revi a excelente abertura de Irresistível agora, enquanto fazia esta anotação. Meu, que maravilha poder rever, e voltar, e rever de novo! E que beleza de início de filme!

Mas vamos em frente.

A história que Jon Stewart bolou começa de fato a rolar depois que vemos tomadas de um campo, vaquinhas pastando, com um letreiro insistindo em dizer o óbvio: “América rural. Interior, EUA”.

Em Inglês fica bem mais forte, significativo, do que simplesmente “interior”. Está escrito “Heartland, USA”. Heartland, o coração do país. Poderia ser outro pedaço do corpo humano, que também começa com c e é um oxítono, mas deixa pra lá.

O coronel Jake chega a uma reunião do que aqui chamamos de Câmara dos Vereadores, Os councilmen estão reunidos com o prefeito, o prefeito Braun (Brent Sexton). E o prefeito Braun está colocando em votação uma resolução que exige carteira de habilitação válida, ou prova de cidadania americana, para se ter direito a participar de qualquer programa de benefícios estadual ou municipal.

Uma resolução obviamente anti-imigrantes. Coisa de conservador, de direita.

O coronel Jack se aproxima do microfone – e faz um discurso contra a resolução.

O coronel Jack-Chris Cooper é uma figura bonita, impressionante – assim como seu discurso.

Tudo, hoje em dia, é filmado no celular, e então alguém filma a fala do coronel e posta na internet. Um rapaz leva o filme ao escritório de Gary Zimmer.

O marqueteiro vê ali a chance de o Partido Democrata se aproximar do povo da Heartland, o povo da América profunda, os eleitores conservadores que estão cada vez mais se inclinando para a direita – a direita que é contra os programas de ajuda aos mais pobres, que é retrógada, reacionária, raivosa, racista, xenófoba.

E vai para a pequenina Deerlaken, no fiof…, perdão, no interiorzão de Wisconsin, oferecer seus préstimos ao coronel Jack, para que ele derrote o prefeito Braun na eleição seguinte.

A presença do grande marqueteiro de Washington numa cidadezinha perdida no interiorzão de Wisconsin faz a mídia nacional ir para lá. E aí é claro que o Partido Republicano manda sua marqueteira Faith Brewster para apoiar o prefeito Braun.

Uma questão séria, difícil: o financiamento das campanhas

O filme explora bastante a questão do choque cultural entre as pessoas das grandes metrópoles e os moradores do interior – um tema bastante frequente nos filmes americanos. Há dezenas e dezenas de obras que tratam disso. Eu até criei um nome comprido para esse subgênero: “Gente da cidade grande detestando e depois amando a vida no interiorzão bravo”.

Faith Brewster, em especial, choca os habitantes de Deerlaken com seus palavrões, suas referências desbocadas a sexo. E tanto ela quanto seu igual do lado oposto do espectro político demonstram volta e meia um jeitão de soberba de quem se acha muito melhor do que aqueles caipiras broncos.

Há ótimos diálogos sobre isso. Aliás, o filme todo tem ótimos diálogos – Jon Stewart se demonstra um mestre como escritor de diálogos. Neste aqui, por exemplo, a jovem e bela Diana, a filha do coronel Jack (na foto acima, a atriz Mackenzie Davis), encurrala o metidérrimo, presunçosíssimo D.C. Gary, como ele é chamado por “caipiras” que fica conhecendo assim que chega a Deerlaken. (D.C., claro, é referência à capital federal, Washington, Distrito de Columbia.)

Pouco antes, ele havia falado alguma coisa que demonstrava menosprezo pelos habitantes do lugar, tipo “mentes pequenas”.

Gary: – “Eu estava terminando esses panfletos sobre imigração.”

Diana: – “Ooh! Parece complicado. Espero que as mentes pequenas consigam entender.”

Gary: – “Desculpe. Às vezes, as mensagens para a base não repercutem no eleitorado mais amplo. ”

Diana: – “Tá certo. Assim, para lisonjeá-los, você tem que ser condescendente. Entendo.

Gary: – “Ah, não, não, não era isso… Não era isso que eu… Desculpe.”

Ao final, depois de mostrar claramente as dificuldades que o estrategista democrata tem para falar com o povo do interiorzão, e depois da grande reviravolta, Irresistível aborda, com seriedade, outra questão delicada, dificílima: o financiamento dos partidos, dos gastos de campanha eleitoral.

É um dos grandes problemas das democracias, parece – tão importante lá, no país mais rico do mundo quanto aqui no Brasil, onde milhões e milhões e milhões de reais são destinados aos partidos políticos.

O autor e diretor Jon Stewart entrevista um cientista político especialista em financiamento dos partidos, e conclui:

– “Então, para resumir, nós atualmente temos centenas de milhões a bilhões de dólares que são… ahn… não podem ser rastreados, e que… ahn… podem ser colocados nas mãos de grupos que de fato estão coordenados com candidatos que afinal precisam passar uma boa parte de seu tempo levantando mais e mais dinheiro para acompanhar a corrida que está ocorrendo. O dinheiro continua chegando e corrompendo não apenas onde eles gastam seu tempo e como eles gastam seu tempo, mas nos tipos de legislação que eles trariam à tona. E o único grupo que deveria cuidar da regulamentação dessa torneira… não funciona.”

É. A democracia é difícil, complicada – e caríssima. (Na foto abaixo, Faith Brewster, que faz Rose, a marqueteira republicana.)

O filme não foi sucesso de crítica nem de público

Não conhecia esse Jon Stewart, um roteirista e diretor que demonstra imenso talento. Nasceu em Nova York, em 1962, e ficou famosíssimo nos Estados Unidos como o apresentador principal do programa The Daily Show de 1999 a 2015. Foi um duro crítico dos políticos e da “mídia tradicional”.

É premiadíssimo. Ganhou nada menos de 23 Primetime Emmys, o principal prêmio da TV americana. Ao todo, já recebeu 45 prêmios e 98 indicações. Sua filmografia como roteirista tem 23 títulos – mas este Irresistível foi apenas o segundo filme que dirigiu, depois de 118 Dias/Rosewater, de 2013, sobre a história real do jornalista iraniano-canadense Maziar Bahari que foi preso pelo governo do Irã acusado de espionagem.

Ao contrário do seu autor, Irresistível não levou prêmio algum – e não teve sucesso nem de crítica, nem de público. No IMDb, tem nota média de 6,3 em 10 na avaliação do público. No site agregador de opiniões Rotten Tomatoes, tem apenas 40% de aprovação dos críticos e 62% dos leitores. O consenso da crítica, segundo o site, é o seguinte:

“Uma sátira política suave que se prova frustrantemente menor que a soma das partes talentosas. É qualquer coisa, menos irresistível.”

Credo. Eu vi outro filme. O filme que eu vi é uma sátira que não tem nada, mas nada, mas nada de soft. É hard a não mais poder: é, como falei já no início desta anotação, uma sátira forte, rasgada, virulenta. Que faz rir muito – mas, diabo, é séria pra cacete.

E preocupante.

Anotação em outubro de 2023

Irresistível/Irresistible

De Jon Stewart, EUA, 2020

Com Steve Carell (Gary Zimmer, o marqueteiro democrata)

e Chris Cooper (coronel Jack Hastings, o fazendeiro),

Mackenzie Davis (Diana Hastings, a filha do coronel), Rose Byrne (Faith Brewster, a marqueteira republicana), Brent Sexton (prefeito Braun), Will Sasso (Big Mike), C.J. Wilson (Dave Vanelton), Kevin Maier (vereador Jacobson), Tom Key (vereador Pietkowski), Charles Green (padre Heuvel), Alan Aisenberg (Evan), Topher Grace (Kurt), Matt Lewis (Pearl), Vince Pisani (Kaplan)

Argumento e roteiro Jon Stewart

Fotografia Bobby Bukowski

Música Bryce Dessner  

Montagem Jay Rabinowitz, Mike Selemon 

Casting Meredith Tucker

Desenho de produção Grace Yun      

Figurinos Alex Bovaird

Produção Dede Gardner, Jon Stewart, Lila Yacoub, Busboy Productions, Plan B Entertainment.

Cor, 101 min (1h41)

***1/2

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