(Disponível na Netflix em 2/2023.)
Co-produção Argentina-França-Espanha, La Mirada Invisible, no Brasil Olhar Invisível, de 2010, é um filme esmeradamente realizado – e esmeradamente pretencioso. Pretende ser uma metáfora sobre a ditadura argentina de 1976-1983, ou, de maneira mais ampla, sobre todas as ditaduras; sobre os paralelos entre as pessoas reprimidas, psicológica e sexualmente, e a repressão exercida pelas ditaduras; sobre a disciplina rígida exigida por algumas instituições da sociedade, e como as pessoas com algum grau de poder, do general-presidente ao guarda da esquina, são tomados de fascinação exatamente pelo poder que assumiram.
Não é pouca pretensão, não.
Assim mais especificamente, Olhar Invisível conta a história de uma jovem bedel de um rígido colégio de elite – uma moça simples, simplória, inocente, virgem, que não conhece nada de nada – que se vê possuída pelo desejo por um aluno.
É um belo filme. Duro, pesado, inquietante, aterrador.
Um colégio de disciplina extremamente rígida
O diretor Diego Lerman – ele também co-autor do roteiro, ao lado de María Meira, com base no romance lançado em 2007 por Martin Kohan – abre seu filme com as vozes de muitas pessoas ao fundo cantando uma música marcial, patrioteira e, logo após os nomes das companhias produtoras em letras brancas sobre fundo preto, este letreiro:
“Argentina, março de 1982. A sangrenta ditadura militar que governa o país há seis anos começa a ruir.”
Ruir é forte, mas, em castelhano, o verbo é ainda mais poderoso: resquebrajar. La dictadura empieza a resquebrajarse.
A partir daí, vemos belas, muito bem construídas tomadas de uma mulher que caminha à frente de um grande grupo de moças e rapazes aí de uns 16, 17 anos, todos em uniformes sóbrios, rígidos, através de longos corredores e escadarias de um prédio antigo, impressionante, imenso – enquanto vão rolando os créditos iniciais.
O último crédito – o nome do diretor Diego Lerman – surge quando o grupo finalmente pára sua longa marcha, em um belo corredor. Dois homens, um deles um sujeito grande, em um terno preto, com todo jeito de chefão, estão ali para examinar as dezenas de garotos, verificar se há alguma botão fora do lugar, alguma blusa mal abotoada, alguma meia que não seja da cor exigida.
O homem grande de terno preto cochicha alguma coisa com a mulher que conduzia os adolescentes, e ela vai até um garoto para admoestá-lo sobre algum detalhe idiota qualquer que destoa da perfeição exigida.
Os moços e moças entram na sala de aula. A mulher faz a chamada. Quando conclui, manda que os estudantes fiquem de pé, e então o professor entra na sala, assina o livro em que a mulher havia feito as anotações da chamada – e ela sai da sala, caminha pelos longos, belos corredores do prédio majestoso.
Quando Maria Teresa Cornejo (o papel de Julieta Zylberberg) caminha pelo corredor, estamos com cinco minutos de filme. Nestes cinco minutos que abrem La Mirada Invisible, o espectador vê – além dos créditos iniciais que vão rolando sobre as imagens – uma sequência de belas tomadas em que alunos se encaminham para uma sala de aula, um ou outro aluno é advertido sobre uma questiúncula sobre postura ou vestuário, é feita uma chamada, e pronto, e é isso aí.
Tudo se concentra na personagem central da trama
La Mirada Invisible é um filme de poucos fatos, eventos, acontecimentos. Espectadores aficionados por filmes de ação, policiais, thrillers, aventuras, realidades paralelas não se sentirão muito confortáveis com ele – poderão dizer que não acontece nada, que a narrativa é tai-chi-chuan.
E eles até teriam alguma razão, dentro do jeito deles de ver o mundo e os filmes.
Não é propriamente que não aconteça nada – acontecem coisas, sim. Acontecem as coisas do dia-a-dia de Maria Teresa Cornejo, “inspectora” do Colegio Nacional de Buenos Aires naquele ano de 1982, quando a sangrenta ditadura argentina empiezava a resquebrajarse: ela passa horas e horas no colégio, depois pega o metrô, e, a caminho de casa, tira da bolsa sua lixa de unhas e lixa as unhas, Em casa, não chega propriamente a conversar com as pessoas que moram com ela, a avó, Adela (Marta Lubos), e a mãe, Inês, creio (o papel de Ailín Salas).
Três mulheres, três gerações – e elas não propriamente conversam, trocam experiências, sensações. São três mulheres solitárias, cada uma trancada em seu próprio mundo.
E no dia seguinte Maria Teresa está de novo trabalhando – e ao fim do dia volta para casa, e no metrô passa a lixa nas unhas.
La Mirada Invisible não é um filme de muitos fatos, eventos, acontecimentos. É um drama psicológico, um estudo de personalidade – e, meu Deus, que personagem fascinante este criado pelo escritor Martín Kohan, adaptado para o cinema por Diego Lerman e María Meira e vivido por essa moça Julieta Zylberberg.
Há histórias com uma dezena de personagens, há histórias com três ou quatro personagens centrais e alguns secundários. La Mirada Invisible é daquele tipo de história centradas em uma única personagem, uma protagonista – todos os demais são secundários.
Tudo bem, o filme é pretencioso, pretende ser tudo aquilo lá de que falei no começo do texto, uma grande metáfora, e tal e coisa – mas é, basicamente, a história dessa Maria Teresa, essa pobre moça pobre, tão absolutamente solitária, tão pouco experiente, tão pouco preparada para a vida, tão ignorante de praticamente tudo, que, de repente, por acaso ou mero descaso, como dizia o jovem Chico Buarque, passa a ter o poder de dar ordens aos adolescentes uniformizados, bem tratados, de famílias muitíssimo mais endinheiradas que a dela.
Maria Teresa está em praticamente todas as sequências do filme.
Uns malucos às vezes cronometram o tempo em que um determinado personagem-ator aparece na tela, e publicam isso no IMDb, na página de Trivia, Curiosidades. A página de Trivia deste belo filme aqui no IMDb infelizmente não tem um único item – os filmes sérios, dramas pesados, estudos psicológicos não têm tantos itens nas páginas de Trivia quanto os Game of Thrones da vida. Pena. Gostaria de saber em quantos minutos dos 97 de duração deste La Mirada Invisible Maria Teresa-Julieta Zylberberg está na tela. Eu chutaria que a atriz está presente em uns 80 dos 97 minutos.
Uma interpretação primorosa de Julieta Zylberberg
Bem… Como o diretor Diego Lerman optou por mostrar, em longas tomadas, pedaços do prédio do colégio, muitas vezes sem qualquer alma viva, chuto então que a atriz que faz a protagonista da história aparece em uns 70 ou 75 dos 97 minutos do filme. No mínimo.
Sendo assim, fica muito claro que todo o filme depende da atriz que interpreta a protagonista e está presente na tela na imensa maior parte da narrativa.
Os realizadores tiveram uma imensa sorte por poder contar com essa moça Julieta Zylberberg para fazer Maria Teresa. Ela dá um show de interpretação. É uma coisa muito impressionante.
O espectador fica sabendo, através de um diálogo, quando o filme está ali por, sei lá, uns 25 minutos, que Maria Teresa tem 23 anos. Nesse momento, Mary e eu levamos um susto, e comentamos que ela parecia ter muito mais.
Sim. O rosto da atriz foi tão trabalhado – por ela mesma, pelo diretor Lerman, pelas equipes de maquilagem e cabelos – para que ela parecesse não bela, não charmosa, não atraente, que o espectador tem todo o direito de achar que aquela “inspectora” tem ali uns 35, talvez 40 anos.
E isso é perfeito. A construção da personagem foi belíssima. Porque Maria Teresa é uma jovem muito jovem que parece muito mais velha do que realmente é. Por uma soma de muitos fatores: por ser solitária demais, insegura demais, ignorante demais, e por ter que exibir sempre um jeito de tudo que ela não é – firme, segura, experiente, sabida.
Em muitos moimentos, o rosto de Maria Teresa não exibe emoção alguma, expressão alguma. Zero, branco, nada – como se a cabeça da moça fosse um imenso vazio.
É de fato uma interpretação extraordinária a dessa Julieta Zylberberg.
(Foram ouvidos, em um apartamento de Perdizes, enquanto passava o filme, alguns xingamentos de “filhos da puta” para los hermanos que conseguem ter atores/atrizes tão competentes, diretores tão competentes, filmes tão extraordinariamente bem realizados. A inveja é coisa danada.)
Poucos acontecimentos. Mas, no fim, uma bomba atômica
Os “inspectores” do colégio (vi que no romance usa-se o termo “preceptor”) são como em Português do Brasil chamamos de bedéis. Só que, aqui, pelo que eu saiba, bedel é uma pessoa que não tem absolutamente nada a ver com o ensino, que está no colégio apenas para fazer cumprir a disciplina.
No Colegio Nacional mostrado no filme, os “inspectores”, além de cuidar da disciplina, ainda auxiliam os professores em algumas tarefas, como fazer a chamada, por exemplo. E há todo um grande número de “inspectores”. Eles possuem uma ampla sala reservada a eles, que não tem nada a ver com a sala dos professores. E há um chefe dos “inspectores” – o tal homem grande, volumoso, que aparece nos primeiros minutos do filme, falando algo ao ouvido de Maria Teresa. Chama-se Biasutto, Carlos Biasutto (o papel de Osmar Núñez), e é o segundo personagem mais importante da história.
Biasutto vai demonstrar uma curiosidade, um interesse em saber um pouco sobre aquela moça sempre tão séria, tão aplicada ao trabalho. Vai convidá-la para ir a um bar.
O terceiro personagem mais importante na trama é o garoto por quem Maria Teresa vai desenvolver, mais do que uma atração, uma fixação, uma obsessão. Chama-se Marini (Diego Vegezzi). Para vê-lo, para acompanhar seus movimentos, Maria Teresa vai cometer a ousadia de, primeiro, ficar sondando a porta do banheiro masculino – e, depois, de entrar lá, e se ocultar em uma das casinhas, para ouvir as conversas dos adolescentes.
Muitas, muitas sequências de La Mirada Invisible se passam no banheiro masculino.
O roteiro escrito por Diego Lerman e María Meira surpreende – e muito – o espectador nos últimos minutos da narrativa. É muito chocante, porque todo o filme vai indo, como já foi dito, com poucos eventos, acontecimentos. Aí, no final, há uma bomba atômica.
O filme foi rodado no prédio do Colegio Nacional
O romance em que o filme se baseia se chama Ciencias Morales, e foi, segundo consta, a obra que tornou Martín Kohan conhecido e respeitado na Argentina. Nascido na capital, em 1967, Kohan é doutor em Letras pela Facultad de Filosofía y Letras da Universidad de Buenos Aires, e dá aulas de Teoria Literária nas universidades de Buenos Aires e da Patagônia. Publica livros desde 1993 – de ensaios, contos e romances. Sucesso de público e crítica, Ciencias Morales ganhou o Prêmio Herralde, da Espanha, dedicado à literatura em língua espanhola.
“Ciencias Morales” foi um dos nomes que teve, no passado, a instituição de ensino que hoje é o Colegio Nacional de Buenos Aires – onde se passa a maior parte da ação, e onde foi rodado o filme. Essa informação aparece bem na abertura do romance.
Aparentemente, Ciencias Morales não teve edição no Brasil. Vejo que o livro está disponível em e-book no site da Livraria Cultura, por exemplo, no original e também na tradução para o inglês, como School for Patriots – mas não em português.
Em uma sapeadinha rápida pela internet, dei com a abertura, o iniciozinho do livro – e, diabo, dá para perceber que o cara escreve muitíssimo bem. Não resisto à tentação de transcrever este trechinho inicial:
“Alguna vez este colegio, el Colegio Nacional, fue solamente de varones. En esos tiempos ya distantes, los tiempos del Colegio de Ciencias Morales, por no decir los más remotos del Real Colegio de San Carlos, las cosas debieron ser, por necesidad, más claras y más ordenadas. Es simple: faltaba ni más ní menos que la mitad de este mundo que ahora lo integra. Esa mitad hecha de jumpers, de vinchas, esa mitad hecha de cintas y de hebillas, esa mitad que requirió la instalación de baños aparte en el colegio y vestuarios aparte en el campo de deportes, antes, mucho antes, en los tiempos de Miguel Cané, en los tiempos del profesor Amadeo Jacques, sencillamente no existía. El colegio era todo una misma cosa, era todo de varones. Entonces con toda seguridad las actividades transcurrían de manera más sosegada, o por lo menos eso presume ahora, en el estado de distracción que la gana hacia el final del segundo recreo de la tarde, la preceptora de tercero décima, a quien todos conocen por María Teresa sin sospechar que en su casa, a la noche, le dicen Marita. Eso piensa, abstraída, aunque vigilante en la apariencia, María Teresa, la preceptora de tercero décima, cuando de los diez minutos que corresponden a este segundo recreo de la tarde ya van pasando más de ocho. Y lo piensa sin distinguir que, de regir todavía las normas de aquellas épocas de esplendor, ella misma no podría ocupar ahora el puesto que ocupa en el colegio, porque del mismo modo y por las mismas razones por las que no había alumnas en el establecimiento, ni había profesoras, tampoco había preceptoras.”
Que maravilha!
A história da instituição de ensino que hoje é o Colegio Nacional de Buenos Aires um tanto se confunde com a própria história da cidade e do país, pelo que se pode ver na internet – e também pelo que é falado no próprio filme. Não existe nada parecido no Brasil. As origens da instituição remontam a 1661. Durante sua presidência, entre 1862 e 1868, Bartolomeo Mitre reformulou a instituição antiga e deu a ela o nome que vem até hoje, Colegio Nacional. Em 1911 ele foi incorporado à Universidad de Buenos Aires e, a partir de 1955, com a universidade tornada autônoma, passou a admitir mulheres, como se fala na abertura do romance.
Pelo Colegio Nacional passaram políticos, inclusive futuros presidentes da República, artistas e cientistas, inclusive dois laureados com o Nobel. É muito impressionante: na lista dos que estudaram lá estão várias das figuras que deram nome a ruas de Buenos Aires. O prédio ocupa uma quadra inteira, a duas quadras da Plaza de Mayo. A proximidade da praça é citada no filme, quando começam a aumentar os protestos contra a ditadura.
Com 15 anos de carreira, prêmio como melhor atriz nova
La Mirada Invisible recebeu 5 prêmios e 17 indicações; foi exibido em uma das mostras paralelas do Festival de Cannes e teve sete indicações ao prêmio da Academia Argentina, nas categorias melhor atriz estreante e melhor atriz para Julieta Zylberberg, melhor ator para Osmar Núñez, melhor roteiro adaptado para Diego Lerman e María Meira, melhor direção de arte para Yamila Fontan, melhor música para José Villalobos e melhor som para Leandro de Loredo. Sete indicações – mas não aos dois prêmios principais, de melhor filme e melhor diretor. E levou apenas o prêmio de “mejor nueva atriz” para Julieta Zylberberg.
O que é um tanto estranho, já que Julieta, nascida em 1983, em Buenos Aires, iniciou a carreira de atriz em 1995, portanto 15 anos antes do lançamento do filme, e tinha já, em 2010, 19 títulos na filmografia. Tá, a Academia pode ter considerado que ela era uma nova atriz de cinema, já que vários desses 19 títulos eram de obras para a televisão. Mas é esquisito considerá-la uma nova atriz após 15 anos de carreira e diversos filmes, como La Niña Santa (2004), Géminis (2005), Cara de queso —mi primer ghetto (2006), Tres minutos (2007). Uma de Dos (2008)…
Julieta Zylberberg esteve também no excelente Relatos Selvagens (2014). No episódio “Las Ratas”, ela interpreta uma cozinheira do restaurante em que se passa a ação. Até 2022, sua filmografia reunia 66 títulos.
O diretor e roteirista Diego Lerman é jovem – nasceu em Buenos Aires em 1976 –, mas já tem história. Dirigiu 11 títulos, entre eles dois curtas e uma série para a TV. Seus filmes já receberam um total de 31 prêmios. Embora eu admire muito o cinema argentino e procure ver seus filmes, não vi nenhum dos outros feitos por Lerman. É filme demais pra gente ver…
Para encerrar, dois detalhinhos.
Martin Kohan, o autor do romance, faz pequena uma participação especial como o funcionário da loja de discos em que Maria Teresa vai comprar um disco – um LP – de um conjunto cujo nome ela havia visto numa fita cassete na mochila do garoto que a fascina.
Outro detalhinho, ainda sobre música. Os realizadores cometeram um errinho bobo, que demonstra falta de atenção, de cuidado. Na festa dada por um colega de Maria Teresa toca a música “Lunes por la madrugada”, com a banda Los Abuelos de la Nada. A música foi lançada em 1984, e o filme, como já foi dito, se passa em 1982. (Não, é claro que não fui eu que reparei nesse detalhe. Vi isso no IMDb.)
É um belo filme, repito. Duro, pesado, inquietante, aterrador – belo cinema.
Anotação em fevereiro de 2023
Olhar Invisível/La Mirada Invisible
De Diego Lerman, Argentina-França-Espanha, 2010
Com Julieta Zylberberg (María Teresa Cornejo, Marita)
e Osmar Núñez (Señor Biasutto, Carlos Biasutto),
Marta Lubos (Adela, a avó de Maria Teresa), Ailín Salas (Inès), Diego Vegezzi (Marini, o garoto que encanta Maria Teresa), Pablo Sigal (Esteban), Magdalena Capobianco (Romero). Martín Kohan (o funcionário da loja de discos), Jorge García Marino (o diretor, “el prefecto”). Tomás Pernich (inspetor), Beatriz Gelman (bibliotecária), Vanina Montes (Vera), Martina Delgado (Solange Estebez), Norma Espina (Susana), Leandro Rivas (inspetor)
Roteiro Diego Lerman, María Meira
Baseado no romance “Ciencias Morales”, de Martín Kohan
Fotografia Álvaro Gutiérrez
Música José Villalobos
Montagem Alberto Ponce
Desenho de produção Yamila Fontan
Figurinos Sandra Fink
Produção Nicolás Avruj, Diego Lerman, El Campo Cine, MMM Film Zimmermann & Co., Agat Films & Cie, Factor RH Producciones, Imval Madrid S.L
Cor, 97 min (1h37)
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