Toscana

Nota: ★★☆☆

(Disponível na Netflix em 7/2022.)

Toscana, produção dinamarquesa de 2022 exibida pela Netflix, me pareceu um filme estranho, esquisito. Me ocorreu a palavra esquizofrênico, mas, como não sei absolutamente nada de psiquiatria, tento procurar outros termos. Uma hidra de duas cabeças, talvez.

Tento me explicar: em termos assim artesanais, o filme é perfeito. Fotografia, direção de arte, decoração de interiores, figurinos, tudo é nordicamente impecável. E não são apenas esses aspectos artesanais. Os atores todos estão muito bem. Anders Matthesen (na foto abaixo), o ator que faz o protagonista da história, Theo, tem uma interpretação primorosa, excelente. Há uma sequência, quando o filme já passou bem da metade, em que Theo está bêbado, e faz um discurso na cerimônia do casamento da mulher por quem ele está apaixonado – e o noivo não é ele –, e a atuação do ator é daquelas de se aplaudir de pé.

Mas não é só ele: todo o elenco está bem – e, quando todo o elenco está bem, é forçoso admitir que há aí um toque do diretor. Que o realizador é um competente diretor de atores.

Chama-se Mehdi Avaz, e não há muita informação sobre ele nem no IMDb nem na Wikipedia. Basta dizer que a Wikipedia em dinamarquês (!) tinha, em julho de 2022, apenas a seguinte frase no verbete ainda em construção: “Mehdi Avaz (født 11. marts 1982) er en dansk filminstruktør, der debuterede med spillefilmen Mens vi lever i 2017”. Não é preciso sequer recorrer ao tradutor do Google para entender que o rapaz, um cineasta dinamarquês, nasceu em 1982 e seu filme de estréia foi Mens vi Lever, de 2017. Segundo se vê no IMDb, em 2019 ele fez um segundo filme, Kollision – como o primeiro, com roteiro original dele mesmo. Outra fonte informa que ele é de ascendência iraniana.

Este Toscana é o terceiro longa-metragem de Mehdi Avaz; o roteiro é dele, baseado em história criada por ele e Nikolaj Scherfig.

E aí é que está. A história que se conta em Toscana – filme muitíssimo bem realizado em todos os quesitos artesanais, e com competente elenco – é, na minha opinião, de uma bobagem, de uma pobreza, de uma pequenez atroz, impressionante.

Uma historinha boba, primária, juvenil

Não é que seja uma história com uma moral ruim, que defenda valores ruins, errados, contra a vida, contra a dignidade humana. Não, não, nada disso. Até ao contrário: defendem-se bons valores, valores corretos.

O problema é que é uma história boba, primária. Juvenil no pior sentido que o termo possa ter.

É tudo raso, simplório, bobinho.

Vejamos a sinopse do IMDb: “Quando um chef dinamarquês viaja para a Toscana para vender a loja de seu pai, ele conhece uma mulher local que o inspira a repensar sua abordagem da vida e do amor.”

Já dá uma idéia da coisa – embora haja ao menos duas palavras mal colocadas aí. Não é uma loja – é uma bela propriedade, um castelo, em que funciona um restaurante. E o protagonista, o chef Theo, na verdade já havia conhecido, quando criança, a mulher que reencontra agora ao viajar para a Toscana para vender a propriedade do pai.

Mas em suma é isto:

Theo, chef dinamarquês perfeccionista, um sujeito que exige muitíssimo de si mesmo e de tudo em sua volta, um homem amargurado, triste, infeliz, volta ao castelo da Toscana em que viveu na infância. Volta após a morte do pai, por quem tem profundo ódio por ele ter no passado distante abandonado a família.

Sua intenção é vender o mais rapidamente possível a propriedade que herdou do pai, até porque precisa muito de dinheiro para manter o restaurante que tem em Copenhagen.

Implica com tudo o que vê – acha tudo no restaurante que funciona na propriedade uma absoluta porcaria. Menos, é claro, a mulher que toca o lugar, Sophia (Cristiana Dell’Anna). Não se lembrava que era com ela que brincava, quando era garoto – e apaixona-se por ela.

Sophia, no entanto, está noiva de Pino (Andrea Bosca), exatamente o jovem advogado com quem seu pai deixou o testamento, e através de quem ele gostaria de vender a propriedade.

E aí acontece o óbvio: por Sophia, pela Toscana, o dinamarquês triste, duro, amargurado, solitário, infeliz, workaholic, descobre o que de fato vale na vida.

“Cenário italiano, depressão dinamarquesa”

Toscana não me pareceu um filme ruim porque tudo é óbvio, tudo é absolutamente previsível. Nem porque histórias assim já foram contadas mais ou menos um trilhão e meio de vezes. Claro, o fato de tudo ser óbvio, previsível e repetitivo conta – mas não é o principal.

O problema é que o filme se leva muito a sério. Conta essa historinha bobinha, vulgar, no sentido mais estrito da palavra, com a seriedade de quem tem está revelando a trama mais absolutamente sensacional de todos os tempos.

Conta essa composição juvenil como se fosse uma coisa saída da pena de um Gabriel García Márquez, um Marcel Proust, um Thomas Mann.

Claro: está é apenas minha opinião, e minha opinião vale exatamente a mesma coisa do que a opinião de qualquer outra pessoa. Não sou dono da verdade, ninguém é – e com toda certeza as pessoas de coração muito romântico que se encantarem por Toscana e por acaso vierem parar aqui vão me chamar de imbecil.

É apenas minha opinião – mas me senti confortável porque foi a mesma da Mary. E um pouco parecida com a de um leitor do IMDb que se assina korkmaz, e escreveu o seguinte lá no grande site enciclopédico, sob o título “Roteiro pobre, boas paisagens”:

“Poderia ser uma boa refilmagem de A Good Year se os autores tivessem preenchido os furos do roteiro. Onde está a Toscana? Você sabe onde Parmigiano Reggiano é produzido? Como pode um chefe famoso não saber o que acontece na Itália e a profundeza de sua gastronomia? Por que você precisa de uma história de amor de ritmo acelerado? Mais questões exageradas do pai do protagonista, etc?”

Outro leitor do IMDb, Chenanceou, deu um ótimo título ao seu comentário: “Cenário italiano, depressão dinamarquesa”. Diz ele: “Este filme é uma coisa estranha. As cores são italianas. O cenário é italiano. As sensações, definitivamente, não são italianas. De uma certa maneira, é como Theo… Desajeitadamente tentando processar e se integrar a um cenário e uma cultura que não são dele, e que ele luta para compreender. Sim, a mudança é muito apressada. O romance fica forçado. Mas este é um homem que perdeu o pai duas vezes. Talvez o seu tom estranho reflita um tumulto interno que Theo tem que enfrentar antes de encontrar seu centro.”

“O diretor parece ter usufruído o melhor de três mundos”

Não gosto de falar mal de filme sozinho. E, definitivamente, gosto de ver a opinião dos espectadores, gente que gosta de filmes e não é “crítico de cinema”.

Mas dá vontade também de ouvir a opinião de um crítico de cinema.

Francisco Carbone, no blog Cenas de Cinema, filosofa:

“Nem todas as pessoas são o que pintam, ou nem todas têm a imagem que fazemos delas, aos nossos olhos. Assim como os lugares, que podem ser vistos de uma forma negligente à primeira vista, mas talvez guardem um aroma especial se tratado com atenção. Toscana, estréia de hoje da Netflix, tem sentimentos simples e honestos sendo debatidos, e os realiza com essa mesma simplicidade e honestidade. Não há muita restrição ao que é feito aqui, assim como os níveis de novidade passam ao largo da produção. Mas o que importa, longe da superfície, é o cuidado com que cada elemento é colocado à mesa, como um belo prato preparado por um grande chef de cozinha.

“O diretor e roteirista Mehdi Avaz é iraniano, e rodou aqui um longa dinamarquês com fortes pinceladas italianas; parece ter usufruído do melhor de três mundos. A postura impávida da Dinamarca em sua certeza e precisão já seriam o suficiente para criar os tons contrastantes com a leveza e a delicadeza que só a mais profunda Itália podem representar, mas o diretor também carrega em si o toque do Irã no que de melhor pode nascer da fusão entre essas culturas. É como se, de nascimento, Avaz já compreendesse que o caminho das pedras é encontrar o equilíbrio entre essas características, e as imprimisse em sua produção, sem soar artificial ou gasto.”

E ele conclui:

“A despeito de ter apresentado suas armas de maneira promissora, Avaz erra nas bases de seu longa. Ao mesmo tempo, Toscana consegue sim ser um produto da Netflix que sabe suas limitações, e tem consciência de a que tipo de público atende. Matthesen e Dell’Anna conseguem acessar o espectador com muito mais eficiência que quem os comanda, criando uma contradição. Fiquemos no empate então.”

Vejo com surpresa, no site Rotten Tomatoes, o agregador de opiniões de crítica e de público, que o filme agradou mais à primeira que ao segundo. A média de seis críticas ao filme estava em 67%, enquanto a do público, mais de 50 leitores do site, era de 36% em julho de 2022, quando escrevo esta anotação.

Gostaria ainda de fazer dois registros. O primeiro é sobre essa moça Cristiana dell’Anna (na foto acima), de quem eu jamais ouvira falar. É napolitana, da classe de 1985, e fez carreira na TV. Tornou-se conhecida interpretando duas gêmeas, Micaela e Manuela, na novela Un Posto al Sole, que durou de 2012 a 2016, e fez um dos principais papéis na série Gomorra, entre 2016 e 2019. Aventurou-se também como cantora, e teve uma indicação ao importante prêmio David di Donatello, o maior do cinema italiano, na categoria melhor atriz coadjuvante no filme Qui Rido Io (2021).

O segundo registro não é uma informação – é uma dúvida. Ma che cazzo será aquela Merle (o papel da nordicamente bela Lærke Winther) na vida de Theo?

Eu fiquei convencido de que era a mulher dele – esposa, companheira. Mary acha que não, de jeito nenhum – deve ser a gerente do restaurante dele, a administradora, faz-tudo.

Mistério neste mundo de mistérios.

Anotação em julho de 2022

Toscana

De Mehdi Avaz, Dinamarca, 2022

Com Anders Matthesen (Theo),

Cristiana Dell’Anna (Sophia)

e Andrea Bosca (Pino), Lærke Winther (Merle), Sebastian Jessen (Zeuten), Ghita Nørby (Inge), Ari Alexander (Lai), Christopher (Svend), Christoffer Jindyl (Vincent), Karoline Brygmann (Melanie), Pino Ammendola (Luca)

Roteiro Mehdi Avaz

Argumento Mehdi Avaz & Nikolaj Scherfig

Fotografia Michael Sauer Christensen

Música Thomas Volmer Schulz        

Montagem Anders Hoffmann, Niels Ostenfeld

Casting Kimmie Nørby

Produção Mehdi Avaz, Puk Lodahl Eisenhardt, Rocket Road Pictures, SF Studios.

Cor, 90 min (1h30)

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