O Encouraçado Potemkin / Bronenosets Potyomkin

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(Disponível no Cine Antiqua do YouTube em 3/2022.)

No elenco de O Encouraçado Potemkin (1925) estão, como dizem os créditos, “marinheiros da frota do Mar Negro da Marinha Vermelha, cidadãos de Odessa, membros da Associação de Pescadores de Sebastopol”. Gente do povo. O povo.

Em boa parte das tomadas do filme – tomadas de magnífica, espetacular, majestosa beleza plástica –, vemos um grande número de pessoas. Primeiro no imponente navio, depois também na cidade de Odessa, ao largo da qual o encouraçado lança âncoras após os marujos vencerem o motim a bordo e tomarem para si próprios o controle da nave.

Tomadas gerais de grande número de pessoas. Multidões. O povo.

A História não é feita por reis, príncipes, czares, presidentes, mas pelo povo. É o que mostra Sergei Mikhailovich Eisenstein em O Encouraçado Potemkin – exatamente como seu compatriota Liev Nikolayevich Tolstói havia mostrado em Guerra e Paz, e como seu companheiro de ideais Bertold Brecht iria mostrar no poema “Perguntas de um Trabalhador que Lê”.

Fiquei pensando nisso nos dias que se passaram entre eu rever o filme, mais de 40 anos depois da primeira vez, e o momento em que finalmente tomei coragem para começar a escrever este texto.

Sim, têm em comum esse mesmo princípio o livro de Tolstói e o filme de Eisenstein. Defendem exatamente a mesma tese. Um dos maiores romances jamais escritos. Um dos maiores filmes jamais feitos.

O princípio, a tese que o poeta alemão conseguiria sintetizar com brilhantismo no seu poema definitivo. Quem construiu a Tebas das sete portas, a muralha da China, os arcos do triunfo de Roma, quem faz as revoluções não são reis, príncipes, czares, presidentes – mas o povo.

Fatos e opiniões que expressam a grandeza do filme

Este texto muito certamente ficará longo, e por isso eu gostaria muito de conseguir apresentar já, imediatamente – antes de me estender e de transcrever textos de bons autores –, um resumo de fatos e opiniões que expressem a grandeza deste filme que foi feito sob encomenda do governo da União Soviética para comemorar o vigésimo aniversário da revolta popular de 1905 – um dos antecedentes da Revolução Russa de 1917.

Uma obra encomendada, comissionada pelo governo, uma obra de propaganda – que o gênio de Eisenstein transformou em um dos filmes mais influentes, mais homenageados e mais copiados da História.

* Entre os muitos filmes que renderam homenagem a O Encouraçado Potemkin estão, para citar só alguns (volto ao tema mais adiante): Correspondente Estrangeiro (1940), de Alfred Hitchcock,

Os Intocáveis (1987), de Brian de Palma,

Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Gláuber Rocha,

Star Wars, Episódio III: A Vingança dos Sith (2005), de George Lucas,

O Pagador de Promessas (1962), de Anselmo Duarte,

Bastardos Inglórios (2009), de Quentin Tarantino,

A Última Noite de Bóris Grushenko (1975, de Woody Allen,

A Fortaleza Escondida (1958), de Akira Kurosawa,

Brazil (1985), de Terry Gilliam.

* As cenas nas escadarias de Odessa se tornaram “a sequência mais famosa da História do cinema”, conforme resumiu o CineBooks’ Motion Picture Guide.

* Charles Chaplin disse que era seu filme favorito. Billy Wilder também.

* Na Feira Mundial de Bruxelas de 1958, foi eleito o melhor filme de todos os tempos.

* Em outubro de 1998, a revista americana Premiere o colocou na sua lista de “100 Filmes Que Chocaram o Mundo”.

* Numa votação de críticos organizada pela BBC de Londres em 2018, ficou em 24º lugar entre os filmes de países de língua não inglesa.

* Na lista dos melhores filmes de todos os tempos organizada pela revista inglesa Sight & Sound em 2012, ficou em 11º lugar.

* Está, naturalmente, na lista dos “Great Movies” do crítico Roger Ebert e no livro 1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer, editado por Steven Jay Schneider.

* Recebeu, é claro, a cotação máxima nos guias de Leonard Maltin e de Jean Tulard, assim como no CineBooks’ Motion Picture Guide.

* No site Rotten Tomatoes, tem 100% de aprovação entre todos os 49 críticos consultados.

* Foi considerado tão perigoso – por conclamar os cidadãos à revolta e exaltar, enfim, o comunismo – que foi proibido em duas das maiores democracias do mundo, a França e o Reino Unido. Na França, sua exibição só foi liberada em 1953, após a morte de Josef Stálin. No Reino Unido, a proibição só foi retirada em 1954. Nenhum outro filme foi proibido no Reino Unido por tanto tempo.

* Foram criadas pelo menos sete diferentes trilhas sonoras para acompanhar o filme – que, produzido em 1925, é portanto mudo. Uma delas, talvez a mais conhecida, é do compositor erudito russo Dmitri Shostakovich. Em 2004, o duo pop inglês Pet Shop Boys foi contratado para criar uma nova trilha sonora. A versão com a música do grupo teve uma première na Trafalgar Square, no centrinho de Londres, em setembro daquele ano.

O roteiro de centenas de páginas foi abandonado

Lênin, o líder da Revolução Russa de 1917, fundador e primeiro chefe de Estado da União Soviética, considerava a revolta popular de 1905 contra o regime do czar Nicolau II como um ensaio geral da que viria 12 anos depois. Morto em 1924, não pôde ver as comemorações doa 20 anos da revolta de 1905; Eisenstein fez questão de abrir seu filme com uma frase do líder então recém desaparecido sobre a revolta do início do século: “”Revolução é guerra. De todas as guerras conhecidas na História, é a única guerra legal, legítima, justa e verdadeiramente grande… Na Rússia, essa guerra foi declarada e iniciada.”

Eisenstein estava com apenas 27 anos, e acabava de concluir seu primeiro longa-metragem, A Greve, quando foi escolhido pelas autoridades soviéticas, em março de 1925, para fazer um filme celebrando o vigésimo aniversário da revolta de 1905. Juntamente com Nina Agadzhanova-Shutko, uma bolchevique de primeira hora, escreveu um roteiro de centenas de páginas, que pretendia cobrir todos os eventos mais importantes da revolta. As filmagens começaram em São Petersburgo, à época já com o nome de Leningrado – mas foram interrompidas por causa das péssimas condições meteorológicas. Depois de filmar algumas poucas cenas em Baku, Eisenstein e sua equipe se instalaram em Odessa, no Sul, à beira do Mar Negro. Lá, muito provavelmente pressionado pelo pouco tempo disponível – o filme teria que estrear ainda naquele mesmo ano –,  ele decidiu fazer todo o filme focalizando apenas os eventos ocorridos naquela região, usando o motim dos marinheiros do navio de guerra Potemkin como o microcosmo que espelhava toda a revolta de 1905. A parte pelo todo.

Nominalmente, o roteiro permaneceu como sendo de Nina Agadzhanova-Shutko. É o nome que está nos créditos. Mas, na realidade, ele foi praticamente abandonado.

Para se ter idéia, a sequência das escadarias de Odessa, que em boa parte seria a responsável pela fama do filme, não existia no roteiro. Foi bolada pelo realizador durante as filmagens.

“Massas de homens se movimentam em uníssono”

Eisenstein dividiu seu filme em cinco partes, que têm os seguintes títulos:

1 – Os homens e as larvas.

2 – Drama no porto.

3 – Um morto demanda justiça.

4 – As escadarias de Odessa.

5 – O encontro com a esquadra.

Roger Ebert fez uma boa sinopse da trama em seu livro A Magia do Cinema, em que examina detalhadamente os 100 filmes que considera dos melhores de todos os tempos. Não há como não aproveitar o texto dele, que aqui vai na tradução de Miguel Cohn para a edição brasileira do livro pela Ediouro:

“Como esboçado no filme de Eisenstein, a tripulação do encouraçado, cruzando pelo Mar Negro de volta da guerra contra o Japão, se amotinou em razão das suas miseráveis rações. Há aquele famoso close-up do café da manhã, cheio de larvas rastejantes. Assim que os oficiais cobriram com um encerado um grupo de revoltosos e ordenaram que fossem executados a tiros, um marinheiro ativista de nome Vakulinchuk gritou: “Irmãos! Contra quem vão atirar?”. O pelotão de fuzilamento abaixou suas armas, e quando um oficial tentou, imprudentemente, reforçar a sua ordem, o motim se espalhou pelo navio. No continente, notícias a respeito da revolta se espalharam entre a população que por tanto tempo sofrera com a opressão do regime czarista. Ela providenciou o envio de comida e água para o encouraçado por intermédio de uma flotilha de pequenos barcos. Em seguida, numa das seqüências mais famosas jamais apresentadas num filme, aparecem as tropas descendo numa implacável formação czarista um interminável lance de escadas, atirando nos cidadãos que tentavam fugir, num fluxo aterrorizante. Inúmeros inocentes são executados, e o massacre é simbolizado na imagem de uma mulher executada que trata de proteger seu filho num carrinho de bebê – que então, fora de controle, desce quicando as escadas.

“O fato de que na verdade não houve o massacre das escadarias de Odessa não apagou a dramaticidade da cena. Mas as tropas do czar atiraram de verdade em inocentes civis em algum lugar de Odessa, e Eisenstein faria o seu trabalho como diretor ao concentrar estas matanças e encontrar a perfeita sintonia cinematográfica para elas. É uma ironia que ele a tenha representado tão bem a ponto de a matança das escadarias de Odessa ser sempre citada, como se tivesse realmente acontecido.

“As novidades chegam até a frota russa que está se dirigindo a todo vapor a Odessa para afundar o navio. O Potemkin, acompanhado por um destróier que também se junta ao movimento revolucionário, zarpa para encontrar a frota. Eisenstein cria a tensão por meio de cortes entre a frota que se aproxima, o bravo Potemkin e detalhes dos preparativos a bordo. No último momento, os homens do Potemkin sinalizam para os seus camaradas da frota incitando-os para que os acompanhassem – e o barco rompe entre os navios da frota sem sequer levar um tiro.”

Depois dessa sinopse, Roger Ebert faz as seguintes considerações:

Encouraçado Potemkin foi concebido como propaganda para a conscientização revolucionária da classe, e Sergei Eisenstein deliberadamente evita a criação de qualquer personalidade em três dimensões (até Vakulinchuk é mais exaltado como um símbolo). Ao invés disso, massas de homens se movimentam em uníssono, como nas inúmeras tomadas do alto, sobre a proa do Potemkin. O povo de Odessa também é filmado como uma massa vista de relance, mas com rostos expressivos. O diálogo (em cartazes de legendas) se limita na maior parte das vezes ao insulto e à exortação. Não há qualquer enredo pessoal para contrabalançar o importante drama político.”

Em seguida, Ebert passa a falar daquele que é o ponto chave de O Encouraçado Potemkin, o elemento que o distingue de tudo o que o cinema havia feito até então: o estilo da montagem.

A montagem que realça significados, que choca

Foi o então jovem cinema soviético – basicamente as obras de Eisenstein e de seu contemporâneo Vsevolod Illarionovich Pudovkin – que inventou e cultivou formas alternativas de montagem, diferentes da montagem tradicional, que eles, os soviéticos, chamavam, pejorativamente, de hollywoodiana.

(Anotei as datas para realçar como os dois cineastas foram de fato contemporâneos. Eisenstein, 1898-1948, primeiro filme em 1923. Pudovkin, 1893-1953, primeiro filme em 1921.)

Pudovkin dizia que “a montagem é a fundação da arte do cinema”.

Eisenstein, assim como Pudovkin, escreveu textos e textos sobre a montagem. Faziam a coisa na prática, mas adoravam teorizar. Em 1929, Eisenstein escreveu um artigo, “Métodos de montagem” (incluído em seu livro Da Revolução à Arte, da Arte à Revolução), em que discorria sobre cinco tipos diferentes de montagem – a métrica, a rítmica, a tonal, a harmônica e a intelectual.

Não é o caso de tentar sintetizar aqui o que ele diz sobre cada um desses tipos de montagem, mas creio que seria necessário falar um pouco que seja sobre o tema – embora isso seja talvez óbvio demais, beabá puro para alguns, e, ao contrário, muito técnico e complexo para outros.

Com um pedido de perdão para os dois lados, lá vão alguns conceitos básicos (que estão na página Glossário deste site):

Plano ou tomada, no inglês take, é o registro ininterrupto de um trecho de filme; pode ser curtíssimo ou extremamente longo – mas é sempre ininterrupta, sem corte.

A montagem, no inglês edit, editing, é a arte de unir tomadas ou planos para formar uma seqüência, e depois a de unir uma seqüência do filme à seguinte e assim sucessivamente.

Um conceito antigo tenta fazer uma comparação entre os filmes e os textos: “A tomada ou plano é a palavra. A cena ou seqüência é a frase, a sentença, a oração. A disposição das tomadas em sua ordem correta – a montagem – é a gramática e a sintaxe.”

A montagem tradicional, usual, “hollywoodiana”, “acadêmica” é feita de modo a que o espectador sequer perceba que houve uma montagem, uma colagem de dois planos ou tomadas. De forma a que ele veja a sequência – a série de planos que mostram o mesmo evento – como uma coisa só. Como uma frase, uma sentença.

Tipo assim: uma tomada mostra o personagem bater a campainha de uma porta. Nova tomada mostra outro personagem do lado de dentro abrindo a porta. Uma terceira tomada mostra os dois se cumprimentando e o visitante entrando. Houve aí a montagem de três tomadas – e, se ela for feita de forma suave, tradicional, usual, o espectador sequer precisa perceber que houve ali três diferentes tomadas que foram “montadas”, ou “edited”, como se diria em inglês.

A montagem dos criadores soviéticos, a montagem de Eisenstein e Pudovkin, pretendia (e conseguia) usar a justaposição das diferentes tomadas para realçar significados. Para mostrar diferenças. Às vezes para chocar.

Tipo assim: tomada do rosto impassível de um oficial do navio de guerra. Corta, e vemos a tomada de marujos junto de pedaços de carne pendurados em ganchos. Corta, e vemos um close-up da carne, em que estão se retorcendo centenas de larvas.

Roger Ebert diz, na continuação daquele texto dele, que Eisenstein foi um dos criadores da teoria soviética da montagem de filmes, “que defendia que o grande impacto dos filmes não se devia ao suave desenrolar das imagens, mas à sua justaposição”:

“Por diversas vezes os cortes são dialéticos: ponto, contraponto, fusão. Cortando entre as angustiadas expressões do povo desarmado e as anônimas tropas uniformizadas, ele deu um motivo para que o povo enfrentasse a tropa czarista. Muitos outros cartes são tão abruptos: após a decisão do capitão do Potemkin de enforcar alguns amotinados, podemos enxergar algumas figuras fantasmas balançando pelos mastros. Assim que o povo começa a gritar, “Abaixo os carrascos”, vemos mãos se apertando firmemente. Para enfatizar que as vítimas de fuzilamento não tinham forças para fugir, ele mostra um cidadão revolucionário sem pernas na sua tentativa de escapar. Enquanto as tropas seguem em frente, vemos uma bota militar esmagando a mão de uma criança. Numa famosa série de sequéncias, nos é mostrado um cidadão de óculos; e quando a cena é cortada, uma das lentes fora destruída por um tiro.”

Os mais diferentes filmes já citaram a sequência

Ao longo dos curtíssimos 65 minutos do Encouraçado Eisenstein põe em prática o uso da montagem “dialética” – mas talvez seja na sequência da escadaria que ela fique ainda mais clara, visível, e forte, poderosa.

Há aí nessa última frase de Roger Ebert que citei um erro, muito provavelmente do tradutor para a edição brasileira de A Magia do Cinema – é uma mulher, uma cidadã, e não um homem, que leva um tiro no rosto e tem a lente de seus óculos estilhaçada. É uma das muitas tomadas absolutamente impressionantes que formam a sequência do massacre do povo pelas tropas do czar na escadaria de Odessa – aquela que foi bem definida pelo Cinebooks’ Motion Picture Guide como a mais famosa da História do cinema.

Especificamente as tomadas dessa mulher de óculos foram copiadas diversas vezes. Um soldado tem a lente de seus óculos despedaçada em A Última Noite de Bóris Grushenko. Há tomadas de lentes de óculos despedaçadas também em Correspondente Estrangeiro, Bastardos Inglórios, O Poderoso Chefão.

Há cópias das tomadas do carrinho de bebê caindo escadaria abaixo na sequência mais climática de Os Intocáveis. E também em O Orgulho da Nação (2009), Ergo Proxy (2006), Guarda-Costas e Assassinos (2009), O Insulto Final (1994), Corra que a Polícia Vem Aí (1988).

Há sequências importantes passadas em escadarias – obviamente inspiradas nas do Encouraçado – em A Fortaleza Escondida, Star Wars Episódio 3. E em dois filmes brasileiros importantíssimos, fundamentais, O Pagador de Promessas e Deus e o Diabo na Terra do Sol, os dois do início dos anos 1960. Quase toda a ação de O Pagador de Promessas se passa nas escadarias diante da Igreja de Santa Bárbara, no Centro histórico de Salvador, perto do Pelourinho. Já era assim, é claro, na peça de Dias Gomes, pois toda a questão da trama envolve a entrada do protagonista na Igreja de Santa Bárbara – mas a existência da escadaria obviamente aproxima os dois filmes.

Em Deus e o Diabo, uma longa escadaria que conduz ao alto do Monte Santo tem importância fundamental na trama; é por ela que sobe a multidão de seguidores do Beato Salvador, é por ela que o protagonista, o vaqueiro Manuel, sobe carregando uma enorme pedra, para pagar seus pecados – e é nela que surge Antônio das Mortes, iniciando, ele sozinho com sua espingarda, um massacre horrendo.

Glauber Rocha deve muito ao Encouraçado

As proximidades entre Deus e o Diabo e este Encouraçado na verdade são muitas. Não é à toa que o verbete sobre o filme de Glauber Rocha no livro 1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer comece assim: “Ao assistir a uma das primeiras exibições de Deus e O Diabo na Terra de Sol, um crítico brasileiro teria exclamado: ‘Meu Deus, Eisenstein renasceu,,, e é brasileiro!’

Quando, há poucos meses, revi Deus e o Diabo para ter um texto sobre ele aqui, pois não tem sentido um site sobre filmes que não fale dele, anotei o seguinte:

“Há diversas, diversas sequências de imensa beleza plástica em Deus e o Diabo. É impressionante. Aos ridículos 24 anos de idade, em seu segundo longa-metragem, Glauber demonstrava um absoluto domínio de algo que pode até parecer simples, mas é um complexo artesanato: a escolha do tipo de plano para cada momento da narrativa. Grandioso, amplo, painel, afresco, Deus e o Diabo é cheio de planos gerais – os planos das vastas paisagens, das vastas multidões. A paisagem seca, dura do sertão está presente sempre. As tomadas da multidão que acompanha o beato Salvador, em especial na longa escadaria do Monte Santo, são extraordinárias. Mas ele alterna essas tomadas amplas com muitos close-ups dos rostos de gente do povo – rostos muitas vezes feios, marcados pelas agruras da vida, pela pobreza. O trabalho da câmara de Glauber e de seu diretor de fotografia, Waldemar Lima, nesses momentos em que ele mostra a cara do povo, é uma das coisas mais impactantes do filme. E é impossível não perceber como aquelas tomadas se parecem com as usadas pelos grandes mestres, como o russo Serguei Mikhailovich Eisenstein.“

Diacho: fazia 44 anos que eu tinha visto pela última vez O Encouraçado Potemkin, mas, ao escrever esse trecho aí acima, demonstrei que lembrava bastante bem dele.

Porque essas duas qualidades aí que impressionam em Deus e o Diabo estão presentes clarissimamente no Encouraçado: o absoluto domínio da escolha do tipo de plano para cada momento da narrativa, e o extraordinário talento no uso de close-ups de rostos de gente do povo.

Se fosse possível resumir, sintetizar a grandiosidade do Encouraçado Potemkin, definir em apenas uns poucos quesitos os motivos pelos quais ele permanece como um dos melhores, mais importantes e mais influentes filmes de toda a História, eu citaria esses três aí. A montagem, é claro. O domínio na escolha do tipo de plano para cada momento, ou seja, a sabedoria para dosar os planos gerais com os close-ups. E o talento no uso de close-ups das pessoas do povo.

Essa coisa de close-ups de pessoas do povo, gente muitas vezes pobre, maltratada pela vida, feia, é algo que guardo na cabeça desde a adolescência, desde que ali aos 13, 14 anos, comecei a ver filmes dos grandes mestres.

Quando revi Deus e o Diabo, meses atrás, lembrei de Eisenstein – e também do dinamarquês Carl Theodor Dreyer, e de Pier Paolo Pasolini, especialmente em seu O Evangelho Segundo São Mateus, de 1964, o mesmo ano do filme de Glauber Rocha.

Poderia lembrar de outros exemplos. Luchino Visconti com certeza usou muitos close-ups de rostos de gente do povo em seu La Terra Trema (1948). Akira Kurosawa fez o mesmo em muitos de seus filmes. O indiano Satyajit Ray idem.

Todos esses grandes mestres repetiram o que Sergei Mikhailovich Eisenstein criou em O Encouraçado Potemkin.

“O que existe no filme são pessoas reais”

O povo é que construiu a Tebas das sete portas, a muralha da China, os arcos do triunfo de Roma. O povo é que é o agente da História, o que faz a História – e, nas telas, o que vemos não são atores, mas gente do povo.

Esse uso de gente do povo, de atores não profissionais, que Eisenstein fez em sua obra que viraria História seria uma das características do neo-realismo italiano do pós-guerra, o mais influente de todos os movimentos do cinema. É muito interessante lembrar disso – e foi por isso que me fascinou este trecho de um depoimento de Eisenstein a um jornal de Berlim em 1926, um ano após o lançamento do filme. O depoimento é o primeiro dos textos reunidos no livro já citado aqui, Da Revolução à Arte, da Arte à Revolução, uma velha edição portuguesa da Editorial Presença que comprei nos anos 1970 e fantasticamente não tem o ano de lançamento:

“Não existem actores no Couraçado Potemkine, o que existe neste filme são apenas pessoas reais, e a tarefa do realizador consiste em encontrar as que convêm; em vez de procurar revelar talentos, procurei encontrar aspectos físicos adequados. Tal método cinematográfico é possível na Rússia, onde qualquer problema pode ser solucionado pelo governo. O slogan ‘Todos por um e um por todos’ é mais que uma legenda na tela. Se rodamos um filme naval, toda a frota está à nossa disposição; se for um filme de guerra, temos todo o Exército Vermelho; quando tratamos um assunto agrícola, vários ministérios nos dão assistência. O que acontece é que não fazemos um filme para nosso próprio proveito, nem para o vosso, nem para o de esta ou aquela pessoa, mas para o proveito de todos.”

Ai, ai… Aqui a gente dá um suspiro profundo… Como deve ter sido maravilhoso acreditar nesse sonho maluco de que, no novo regime que chegava, todos os problemas do mundo seriam resolvidos pelo governo magnânime, todo-poderoso. Naqueles anos iniciais da União Soviética, artistas e intelectuais como Eisenstein devem de fato ter acreditado que a Revolução era o Deus Todo-Poderoso bom, piedoso, capaz de fazer todo mundo ser feliz.

(Vixe! De repente me lembrei da frase de Grushenka, a prostituta, em Os Irmãos Karamázovi, de Fiodor Dostoiévski: “Se eu fosse Deus, perdoava todo mundo.” Eu sempre imaginei que em vez disso Grushenka poderia ter dito: “Se eu fosse Deus, fazia todo mundo feliz!”)

Suspiro profundo.

Na verdade, que sorte teve a Revolução Comunista Russa por contar com o talento de artistas como Eisenstein, Pudovkin, Maiakóvski, que acreditaram nela e fizeram tanta gente acreditar também – antes que a promessa da Terra do Leite e Mel se transformasse na existência dos Gulags, das centenas de milhares de prisões e assassinatos, da Grande Fome dos anos 30…

Mas aí acho que tergiversei um pouquinho.

O filme “tem o poder de arrebatar qualquer platéia”

Haveria montanhas de outras opiniões de escritores e críticos, mas creio que vou me limitar a duas – à de Leonard Maltin, o autor dos guias de filmes mais vendidos do mundo quando havia no mundo guias de filmes que eram vendidos, e à do Guide do mestre Jean Tulard, uma referência básica, sempre.

Maltin faz uma avaliação curtíssima, simplíssima, direta e reta sobre o filme para o qual dá a maior cotação possível, 4 estrelas:

“Um marco do cinema sobre a Revolução de 1905 vai além do status de mero clássico: ao contrário de muitos itens básicos das aulas de história do cinema, este aqui tem o poder de arrebatar qualquer platéia. A sequência na escadaria de Odessa é possivelmente a mais famosa de todos os tempos.”

Perfeito! Perfeito!

Os possuidores de narizinho arrebitado que dizem só gostar de “cinema de arte” e que torcem o narizinho arrebitado para os “filmes americanos” seguramente têm profundo desprezo por Leonard Maltin, exatamente porque ele vendeu muitos livros. Muitas vezes acho que Maltin dá umas pisadinhas no tomate, mas em geral ele é muito bom – e aqui foi perfeito. Resumiu em cinco linhas o que é fundamental saber sobre The Battleship Potemkin.

A ver o que diz de Le Cuirassé Potemkine o Guide des Films de Jean Tulard, ao qual deu a cotação máxima de 4 estrelas. O texto é assinado pelo próprio J.T.:

“Há muito considerado como o melhor filme do mundo e proibido por diversas censuras, ele chocava por seu formalismo exacerbado (a montagem-atração, o lado teatral e estilizado do fuzilamento nas grandes escadarias) e por seu sopro revolucionário (a multidão é a verdadeira vedete do filme) mais do que por seu apego à verdade histórica. Ele sofre hoje, menos talvez que de uma falta de afeto pela revolução russa, que por suas pesquisas estéticas muito sérias que dão a impressão de maneirismos. A genialidade de Eisenstein não é menos indiscutível.”

Eisenstein pintou à mão a bandeira vermelha

Gostaria de encerrar com duas ou três observações, dois ou três registros bem pessoais – mas que talvez tenham muita utilidade para o eventual leitor que tiver chegado até aqui neste texto.

Comecei a ver o filme no DVD que havia comprado anos atrás, quando saiu, e sequer tinha aberto, tirado aquela capinha plástica. A qualidade de imagem estava um horror – é de uma daquelas empresas pequenas, vagabundas, que reproduziam cópias porcarias sem pagar qualquer tipo de direito autoral.

E então fui ao Cine Antiqua do YouTube, e lá há uma versão restaurada pela Fundação Cultural Federal da Alemanha. A qualidade de imagem é ótima, assim como a do som – com uma das muitas trilhas sonoras compostas posteriormente ao lançamento do filme em 1925.

Pois bem: assim que o filme terminou, entrou no YouTube um troço com o título “A cena chocante que mudou o cinema”. Um vídeo de 15 minutos, em que uma voz obviamente de garotão, rapagão aí de não mais de 30 anos, fala sobre o filme e tudo o que ele influenciou no cinema.

Não consegui me conter, e fiz de bate-pronto um texto que publiquei imediatamente no + de 50 Anos de Filmes sobre o trabalho do rapaz: “Ele resume, numa narrativa de 15 minutos, tudo o que eu aprendi sobre a obra do Eisenstein ao longo da vida inteira, desde os cursos sobre história do cinema dados por bons críticos em Belzonte até os livros todos que li (e, diacho, não foram poucos). Ele fala em linguagem de gente, não em linguagem empolada de crítico de cinema chato. E mostra os exemplos todos do que está dizendo. Mostrou, além dos exemplos super conhecidos – como Os Intocáveis de Brian De Palma –, diversos outros de que eu não tinha ouvido falar.”

O rapaz se chama Max Valarezo, e tem um canal no YouTube, EntrePlanos. Vale demais a pena conhecer o canal dele – e o vídeo sobre O Encouraçado é trocentas vezes mais informativo e melhor do que este texto aqui.

Agora, um último registro.

Não me lembrava da bandeira vermelha que o encouraçado ostenta nas sequências finais.

Vermelhona, no filme evidentemente preto-e-branco, de 1925.

Eu tinha visto o filme – em salas de cinema, é claro – em 1973 e em 1978. Mas, ao revê-lo agora, em março de 2022, de fato não me lembrava da bandeira vermelha tremulando no encouraçado nas sequências finais.

Achei que poderia ter sido uma invenção do povo da Fundação Cultural Federal da Alemanha, que restaurou o filme, na cópia hoje disponível para todos no YouTube.

Não, não, nada disso. A bandeira vermelha é coisa de Eisenstein. Está lá no IMDb:

“Como este é um filme em preto-e-branco, se a bandeira tivesse sido pintada de vermelho, apareceria preta no filme. A bandeira foi pintada a mão de vermelho em 108 quadros pelo diretor Sergei Eisenstein para a primeira apresentação do filme.”

É. O cara não era fácil, não.

Anotação em março de 2022

O Encouraçado Potemkin/Bronenosets Potyomkin

De Sergei M. Eisensetein, URSS, 1925

Com marinheiros da frota do Mar Negro da Marinha Vermelha,

Cidadãos de Odessa,

Membros da Associação de Pescadores de Sebastopol

Atores do Teatro Proletkult.  

Alexander Antonov (Vakulinchuk, o marujo que inicia a revolta), Vladimir Barsky (comandante Golikov), Grigori Alexandrov (oficial Gilyarovsky), Mikhail Goronorov (marinheiro Matyushenko), Levchenko (contramestre), Repnikova (mulher na escadaria), Prokhorenko (mãe que carrega o filho ferido), Nina Poltavtseva (mulher de óculos que leva tiro), Marusov (oficial), I. Bobrov (recruta), A. Fait (recruta), Alexander Lyovshin (suboficial), Beatrice Vitoldi (mãe com o carrinho de bebê), Konstantin Feldman (estudante), Protopopov (velho), Korobei (veterano sem as pernas), Yulia Eisenstein (senhora trazendo comida), N. Poltautseva (professor), Brodsky (intelectual), Zerenin (estudante)

Roteiro Nina Agadzhanova, revisto por Sergei Eisenstein e Grigoriy Aleksandrov (não creditados)

Interítulos/legendas Nikolay Aseev e Sergey Tretyakov (não creditados)

Fotoghrafia Eduard Tisse

Montagem Grigoriy Aleksandrov e Sergei Eisenstein (não creditados)

Direção de arte Vasiliy Rakhals

Música composta posteriormente Dmitri Shostakovich

Produção Yakov Bliokh.

P&B, 65 min (1h05)

R, ****

4 Comentários para “O Encouraçado Potemkin / Bronenosets Potyomkin”

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