Nota:
(Disponível na Netflix em 11/2022.)
Em 1917, um emissário do então primeiro-ministro britânico, Lloyd George, foi ao Palácio de Buckingham para entregar ao rei George V um pedido: que ele enviasse um navio para recolher Nikolay Romanov e sua família e levar todos eles para a Inglaterra, para escapar do novo regime implantado na Rússia. Nikolay era primo de George V. O primo, no entanto, não atendeu ao pedido – e, alguns meses depois, o czar derrubado pela revolução, toda a sua família e os criados mais próximos foram assassinados pelos bolcheviques.
Foram fuzilados, todos eles – mas não apenas fuzilados. Seus corpos depois foram socados, atingidos por golpes desferidos pelas extremidades das espingardas, jogados em vala comum e incendiados, antes de cobertos por terra.
O massacre da família imperial russa aconteceu em uma propriedade chamada Casa Ipatiev, em Yekaterinburg, cidade em 1924 renomeada como Sverdlovsk. Em 1977, como parte das festividades pelo 60º aniversário da Revolução Russa, a Casa Ipatiev foi demolida, por ordem do Politburo do Partido Comunista da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. O secretário-geral do Partido na região de Sverdlovsk chamava-se Bóris Yeltsin.
No começo da década de 1990, depois que não apenas a URSS mas todo o Império Soviético havia se desmanchado feito um castelo de cartas, Boris Yeltsin, então presidente da Rússia, visitou a Grã-Bretanha. Em um jantar no Palácio de Buckingham, declarou, brincalhão, que mesmo ao longo de todo o período comunista os russos sempre fizeram brindes aos tempos dos czares – e convidou a rainha Elizabeth II a visitar a Rússia. Em resposta a ele, a rainha, nada brincalhona, lembrou da demolição da Casa Ipatiev, do massacre do primo de seu avô e sua família, e pediu que o governo da Rússia providenciasse – tantas décadas depois – um enterro decente para aquelas pessoas.
Tudo isso – e muito, muito, muitíssimo mais – está em apenas um dos dez episódios da Quinta Temporada de The Crown. O episódio número seis, que tem o título exatamente de “Ipatiev House”.
Muitíssimo mais.
O episódio “Ipatiev House” mostra também que, naquele início dos anos 1990, às vésperas do 47º aniversário de seu casamento, Elizabeth e Philip estavam distantes um do outro. A rainha não havia percebido isso – até que Philip, ele mesmo descendente da família da czarina Alexandra, começou a achar que sua tia-avó havia sido vítima daquele fuzilamento porque o avô de Elizabeth havia se recusado a ajudar o primo Nikolay.
Philip conta então para a esposa que estava desfrutando da amizade de um grupo de pessoas – entre eles, em especial, uma mulher, Penny Romsey. A rainha sabe perfeitamente quem é – Penny é a esposa de um afilhado de Philip. Uma mulher bela, que tem a metade da idade dele!
Philip garante que não há nada além de pura amizade entre ele e a mulher de seu afilhado. E pede que a rainha fique próxima da moça, para matar no nascedouro qualquer eventual tentativa de tablóide sensacionalista de transformar a amizade dos dois em alguma coisa pecaminosa.
Tudo isso em um único episódio da Quinta Temporada de The Crown!
Tudo história real!
E ainda tem gente que prefere fugas da realidade tipo Game of Thrones ou O Senhor dos Anéis.
Oito minutos arrebatadores, aterradores
“Ipatiev House” tem uma abertura impressionante, majestosa. Bem, as aberturas de cada episódio de The Crown são todas impressionantes, majestosas, mas a deste aqui excede.
Um letreiro informa que estamos em Londres, 1917. Um funcionário sai da casa do número 10 de Downing Street, entra num carro estacionado à frente e dá a direção: Palácio de Buckingham. Em um dos sabe-se lá quantos salões do palácio, estão reunidos o rei George V, a rainha Mary e seu primogênito, Edward – que reinaria como Edward VIII em 1936 e abdicaria ao trono para se casar com a socialite americana Wallis Simpson.
O rei é interpretado por Richard Dillane; a rainha, por Candida Benson, e o jovem príncipe, por Adam Buchanan.
Bem diferentemente de como sua neta, a rainha Elizabeth II, é mostrada ao longo de toda a série, o rei George V não é apresentado neste episódio como um monarca admirável. Bem ao contrário. Ele conversa com a mulher e o filho – sobre caça aos faisões, selos, com apenas uma leve referência à Guerra Mundial em que seu império está lutando naquele momento – com um papagaio em seu ombro. Literalmente um papagaio de pirata.
Vemos o carro que leva o funcionário com a carta do primeiro-ministro ao rei passar por ruas cheias de gente, vemos sua entrada no palácio. O secretário do rei recebe a carta, e vai entregá-la. Cumprimenta os três, com o respeito exigido, e explica: – “Carta do primeiro-ministro.”
O rei, como se estivesse tratando de assuntos mais importantes: – “Não pode esperar?”
– “É sobre suas Majestades Imperiais, o czar e a czarina da Rússia. O governo está disposto a enviar um navio para trazer os Romanov à segurança aqui na Inglaterra. O primeiro-ministro não quer fazer isso sem o seu apoio. Por causa da opinião pública e tudo o mais. A guerra.”
Relutantemente, o rei pega a carta. A câmara mostra em close o início do texto escrito em letra perfeita. A primeira frase é: “Majestade, o gabinete imperial de guerra decidiu que o czar deve deixar o Rússia o quanto antes.”
O secretário pergunta: – “Devo responder que sim?”
– “Ao resgate deles?” – pergunta o rei.
George V entrega a carta ao filho: – “Mostre para sua mãe. O julgamento dela é infalivelmente melhor que o meu.”
O rapaz passa a carta para a rainha Mary; close-up do rosto dela enquanto lê.
Corta, e um letreiro nos informa: “Casa Ipatiev, Yekaterinburg, Rússia”.
Aquela primeira sequência que tentei descrever dura menos de 3 minutos.
Nos 4 minutos seguintes, os realizadores de The Crown encenam os momentos finais do czar Nikolai II, de sua mulher Alexandra, de seus filhos e seus servos mais chegados. Eles são despertados na Casa Ipatiev por guardas bolcheviques e levados para um porão, onde ouvem de um comissário do novo regime o seguinte comunicado:
_- ”Considerando que seus parentes na Europa continuam atacando a Rússia Soviética, o Comitê Executivo dos Urais os condenou à morte.”
Alguns dos sujeitos armados dão gritos de “Isso é pelos trabalhadores! Viva a revolução!” E aqueles homens, mulheres e crianças, mais de uma dezena de pessoas, são executados.
Corta, e vemos o rei da Inglaterra caçando faisões.
Corta, e vemos nova tomada do porão da Casa Ipatiev, da execução da família do czar.
Corta de novo, e vemos a rainha Mary passeando com um cachorrinho num belo gramado inglês.
Corta de novo, e vemos mais tomadas do massacre da família do primo do rei George V,
Corta de novo, e vemos a alegria da caçada aos faisões.
Corta de novo, e vemos mais uma cena da matança de seres humanos, feitos à imagem e semelhança de Deus.
Corta de novo para a caçada real.
Corta de novo para o massacre real.
Corta de novo para a caçada. O rei George, que se negou a mandar navios para retirar da Rússia a família do primo, diz para o grupo de pessoas que participaram da caçada aos faisões: – “Parabéns, senhores. Ótimo dia”. Vemos faisões mortos sendo carregados.
Corta, e vemos os bolcheviques carregando os corpos da família imperial russa para o local onde serão queimados e enterrados.
Quando estamos com 8 minutos e tanto dos 58 que dura o episódio, e entram os créditos iniciais – caprichadíssimos, majestosos, perfeitos –, os realizadores de The Crown já massacraram – com crueldade – a decisão do rei George V de não socorrer os Romanov.
A virulência dessas cenas iniciais do episódio 6 só não poderia ser comparável, é claro, com o massacre de mais de uma dúzia de seres humanos. Não há nada que se compare a isso.
The Crown usa, com brilho, a montagem soviética
Há aí, nessa sequência que alterna tomadas do alegre frescor do campo inglês com a sanguinária matança de várias crianças e adolescentes num porão de uma grande propriedade do interior da Rússia, uma tremenda, gigantesca ironia. O que os realizadores de The Crown fizeram, nesses momentos impressionantes, inesquecíveis, foi utilizar a montagem inventada pelos cineastas soviéticos, a montagem ideológica de Serguei Mikhailovich Eisenstein e Vsevolod Illarionovich Pudovkin.
Eisenstein usou magnificamente a nova montagem em seu O Encouraçado Potemkin, ao justapor os oficiais em seus uniformes impecáveis com close-ups das carnes cheias de vermes que seriam servidas aos marujos. Ao justapor o rosto de pessoas do povo com as armas e as botas do exército do czar que avançava contra aquele povo.
É impossível deixar de falar – ainda que seja um pouco – das formas alternativas de montagem criadas pelo então jovem cinema soviético. O eventual leitor que achar chata (ou conhecida demais) essa coisa da gramática da linguagem cinematográfica poderia perfeitamente pular para o próximo intertítulo.
Os criadores do cinema soviético chamavam a montagem tradicional, pejorativamente, de hollywoodiana.
Pudovkin dizia que “a montagem é a fundação da arte do cinema”.
Em 1929, Eisenstein escreveu um artigo, “Métodos de montagem” (incluído em seu livro Da Revolução à Arte, da Arte à Revolução), em que discorria sobre cinco tipos diferentes de montagem – a métrica, a rítmica, a tonal, a harmônica e a intelectual.
A montagem, no inglês edit, editing, é a arte de unir tomadas ou planos para formar uma seqüência, e depois a de unir uma seqüência à seguinte, e assim sucessivamente.
Um conceito antigo tenta fazer uma comparação entre os filmes e os textos: “A tomada ou plano é a palavra. A cena ou seqüência é a frase, a sentença, a oração. A disposição das tomadas em sua ordem correta – a montagem – é a gramática e a sintaxe.”
A montagem tradicional, usual, “hollywoodiana”, “acadêmica” é feita de modo a que o espectador sequer perceba que houve uma montagem, uma colagem de dois planos diferentes. De forma a que ele veja a sequência – a série de planos que mostram o mesmo evento – como uma coisa só. Como uma frase, uma sentença.
Tipo assim: uma tomada mostra o personagem bater a campainha de uma porta. Nova tomada mostra outro personagem do lado de dentro abrindo a porta. Uma terceira tomada mostra os dois se cumprimentando e o visitante entrando. Houve aí a montagem de três tomadas – e, se ela for feita de forma suave, tradicional, usual, o espectador sequer precisa perceber que houve três diferentes tomadas que foram “montadas”, ou “edited”, como se diria em inglês.
A montagem dos criadores soviéticos, a montagem de Eisenstein e Pudovkin, pretendia (e conseguia) usar a justaposição das diferentes tomadas para realçar significados. Para mostrar diferenças. E muitas vezes para chocar.
É exatamente isso o que os realizadores de The Crown fizeram à exaustão nos minutos que antecedem os créditos iniciais no episódio 6.
Cacete: é absolutamente irônico lembrar que os britânicos que realizaram The Crown estão se valendo da invenção soviética!
É absolutamente incrível – e chocante – pensar que Eisenstein usou esse tipo de montagem em 1925, apenas sete anos depois que dedicados soviéticos como ele mesmo massacraram a família Romanov.
Credo em cruz. A humanidade é um troço doido demais.
A mais perfeita mistura das vidas pública e privada
A maior parte da Quinta Temporada de The Crown, desde seu início, se passa nos anos em que John Major era o primeiro-ministro britânico – de 1990 a 1997. Major substituiu Margaret Thatcher, que havia governado de 1979 a 1990 – a queda dela é mostrada no episódio 10 da Quarta Temporada.
John Major, interpretado por Jonny Lee Miller, é mostrado pela série como um bom político, um homem íntegro, correto, bem intencionado. Depois dos créditos iniciais que se seguem aos 8 extraordinários, sensacionais primeiros minutos do episódio 6, vemos a rainha Elizabeth II-Imelda Staunton recebendo John Major-Jonny Lee Miller em uma das tradicionais audiências semanais ao primeiro-ministro de plantão.
Major havia visitado Moscou, a convite do então presidente Boris Yeltsin (interpretado por Anatoliy Kotenyov, à esquerda da rainha na foto acima). Eram os primeiros tempos da Rússia pós dissolução da União Soviética; Yeltsin havia conseguido afastar a tentativa de golpe de estado por ex-comunistas, e parecia ansioso para liderar a Rússia na transição para uma democracia. A rainha se demonstra curiosa para saber o que Major havia achado da viagem, da Rússia, de Yeltsin. Major comenta que acha que não viu Yeltsin sóbrio uma única vez – e, em tom mais oficial, relata que o presidente russo gostaria muito de visitar a Grã-Bretanha e receber de volta a visita de Sua Majestade.
A sequência da visita de Yeltsin a Londres é extraordinária. O russo é mostrado como tudo indica que ele de fato era – um bêbado fanfarrão. Elizabeth diz que aceita visitar Moscou – desde que a Rússia agora livre do comunismo identifique os restos mortais de seus parentes, os Romanov, e dê a eles um enterro digno.
Acontece então de usarem exame de DNA do príncipe Philip (agora interpretado pelo grande Jonathan Pryce) para comparar com os ossos encontrados perto da Casa Ipatiev – isso porque, como já foi dito, Philip era sobrinho-neto da czarina Alexandra.
A partir daí, Philip mergulha em estudos sobre DNA, compatibilidades, a história de seus antepassados e dos antepassados da rainha Elizabeth.
Aqui, creio, os realizadores desta série extraordinária, das melhores que já houve ou haverá, conseguem momentos absolutamente gloriosos.
Uma das muitas grandes maravilhas de The Crown é exatamente fazer uma perfeita mistura do que é a Grande História com a vida privada daqueles pessoas.
Poucas vezes o cinema conseguiu fazer com tamanha perfeição essa mistura quanto em The Crown – e aqui, neste episódio específico da Quinta Temporada, a coisa excede o que já é excessivo demais.
Elizabeth, mostra o episódio, fica feliz com o fato de o marido se interessar tanto pelo tema identificação dos restos para checar se de fato são os Romanov. Ela acha que, com seu interesse pelo assunto, por seu apoio à viagem do casal à Rússia, Philip está se reaproximando dela, felizmente, depois de um bom tempo em que tinham estado um tanto distantes um do outro, ela absorta com seus deveres de rainha, ele com os dele de príncipe consorte.
Haverá um choque grande quando Philip diz para ela que não, de forma alguma, não está se sentindo perto dela. Ao contrário: está achando (como já foi dito bem acima) que foi por descaso do avô dela que a tia-avó dele e toda sua família foram massacradas pelos comunistas.
A rainha com ciúme da jovem e bela amiga do marido
Que talento absurdo têm esse senhor Peter Morgan e sua equipe de roteiristas!
Nos primeiros episódios da Quinta Temporada, já haviam aparecido os Romsey – o marido, Norton (Elliot Cowan), era afilhado de Philip. Norton e a mulher, Penny (o papel da sempre impressionante Natascha McElhone, na foto acima), enfrentaram a dureza de ver a única filhinha, de 5 anos, tomada pelo câncer. A garotinha morre. Philip faz um grande esforço para ajudar o afilhado e sua mulher a superarem a dor infindável e insuperável.
Acaba, com isso, criando uma grande amizade com Penny.
Chegará à inimaginável situação de pedir à esposa, a Rainha da Grã-Bretanha, que apareça em público com Penny, para evitar que a imprensa marrom comece a fofocar sobre ele e a mulher de seu afilhado.
Elizabeth sente duramente o golpe de saber que o marido anda mais próximo de uma mulher jovem e bela do que dela mesma. Mesmo que não houvesse sexo na relação. A rainha fica, evidentemente, triste, magoada, enciumada.
E, lá pelas tantas, junta-se o ciúme que sente da moça com a forma antípoda com que enxergam a decisão do rei George V e da rainha Mary de não ajudar os Romanov.
Em uma sequência incrível, fantástica, impressionante, Elizabeth e Penny falam sobre os acontecimentos de 1917, 1918.
Penny vai visitar a rainha no Palácio de Windsor. As duas caminham por um daqueles jardins ingleses deslumbrantes que cercam o palácio.
A rainha: – “O duque de Edinburgh (ela se refere assim ao marido, quando fala com pessoas que não são próximas dela) disse que você tem uma teoria sobre quem tem a culpa pelo assassinato da família imperial russa.”
A moça com quem o marido da rainha está muito próximo: – “Ah… A teoria não é minha. Sou apenas uma estudante curiosa.” E depois: “Alguns historiadores sugerem que seus avós, o rei George V e a rainha Mary, tiveram uma chance de salvar os Romanov, mas preferiram não fazê-lo.”
A rainha: – “Não consigo imaginar algo assim. O rei George e o czar eram primos em primeiro grau. Eram até parecidos. Não, meu avô não faria nada para prejudicar seu amado Nicky.”
Penny (bem cuidadosa): – “É possível que a motivação tenha sido externa, como sugerem um ou dois relatos que li.”
A rainha pergunta quantos relatos ela leu, e Penny responde que uma dúzia – do lado inglês. “E mais alguns do lado russo.” Ao que a rainha responde: – “Ah! Isso deve ter impressionado a ele.” Ele, naturalmente, era seu marido.
O que estava em jogo era a monarquia, diz a rainha
Penny continua, sempre muito cuidadosa com a forma de falar: – “E eu fui alertada sobre uma fonte. Aqui, nos arquivos de Windsor.”
E as duas vão até a grande biblioteca do palácio. Lá Penny mostra para a rainha um dos diários do tio dela, o então jovem Edward, em que ele descreve o dia em que um enviado do primeiro-ministro Lloyd George levou a seu pai a carta pedindo autorização para mandar um navio para resgatar os Romanov.
Aqui, vemos novamente tomadas daquela sequência do início do episódio, o secretário apresentando a carta do primeiro-ministro ao rei, e rei entregando a carta a Edward, com o pedido de mostrá-la à mãe – “O julgamento dela é infalivelmente melhor que o meu”.
E Penny Romsey apresenta a teoria na qual acredita: a rainha Mary aconselhou o marido a não mandar um navio para resgatar os Romanov por ciúme da czarina Alexandra.
“Sabe”, diz ela, “havia uma rivalidade entre as duas mulheres que remontava à épocas em que as duas eram jovens princesas alemãs, antes de se casarem.” Havia recolhido alguns livros com fotos das duas jovens, e as mostra para a rainha. “Alexandra era mais bonita e de família mais grandiosa.”
– “Mas foi Mary, minha avó inteligente, que a rainha Victoria quis para o filho mais velho de Edward VII.”
Penny, sempre com muito cuidado: – “Sim, mas isso só depois que Alexandra o rejeitou, e se casou com Nikolay Romanov. Daí a rivalidade. Mary não queria que Alexandra, mais bela e nobre, a ofuscasse.”
– “É uma boa teoria”, responde a rainha Elizabeth II, com a voz calma, mas vigorosa. “Mas, além do fato de a minha avó ter sido devotadamente casada com o rei George, me admira que nenhum dos 13 ou mais livros que você leu, em todas as línguas, tenha abordado o verdadeiro motivo para a rainha Mary não querer ter Alexandra na Inglaterra. E não tinha nada a ver com a rivalidade entre elas. Minha avó estava muito ocupada protegendo a monarquia contra uma revolta popular para se preocupar em ser ofuscada por Alexandra. Dar asilo aos Romanov era uma ameaça muito maior. Havia uma oposição generalizada à czarina na Inglaterra, já que ela era vista como pró-Alemanha, enquanto estávamos em guerra contra eles.”
Ufa…
Me alonguei bastante no tema, transcrevi talvez muito mais do que seria o normal, mas é que esse tema me tocou muito. Eu de fato nunca soube que chegou a haver uma possibilidade de a Inglaterra ter salvado a vida de Nikolay Romanov e toda a sua família.
A rainha não conseguia admitir o fim de um casamento
A vida privada de grandes personalidades da história. Esse tema é absolutamente fascinante.
Ao final dessa conversa entre a rainha e a grande amiga do marido dela, Penny comenta que ela e seu marido têm estado cada vez mais afastados: – “Nossos interesses, nossas vidas parecem se distanciar cada vez mais.” E, depois de uma rápida pausa, como se percebesse que a rainha poderia imaginar alguma coisa a partir daquela confissão: – “Eu nunca poderia deixá-lo. Nem Broadlands (a propriedade em que o casal vive, e que num passado distante havia sido brevemente ocupada por Elizabeth e Philip). O túmulo de Leonora está lá, e preciso vê-lo todos os dias. E a casa precisa que eu me concentre nela. Ele também precisa de mim.”
Separação, divórcio – a rainha não admite que essas coisas possam existir, embora existam tantos na sua própria família. Como chefe da Igreja Anglicana, ela não pode admitir essas coisas – são noções que contrariam o que diz a Igreja. Esse tema – a oposição da rainha à idéia do divórcio – está presente ao longo de toda esta série gloriosa.
Ela responde a Penny: – “Fico feliz em saber de seu senso de dever. E de seu compromisso com o casamento. E com uma casa que foi tão importante para mim. Philip e eu passamos nossa lua de mel em Broadlands, como você sabe.”
E em seguida a rainha da Inglaterra, a monarca adorada, reverenciada por meio mundo, atende ao pedido que seu marido havia feito:
_- “É importante que entendam quão próximos são os laços entre nossas famílias. Se vissem o duque de Edinburgh com uma bela e jovem companhia, seria irritante se se sentissem à vontade para tirar conclusões erradas. Por que você não vem no carro comigo, no Natal, em Sandringham? Para cortar tudo isso pela raiz?”
A chave para um casamento feliz
Estamos, neste momento, com 48 minutos dos 58 de duração deste esplendoroso episódio. Mas os casamentos em que os cônjuges estão muito distantes, e também a Rússia, ainda voltam a aparecer, pouco antes do final. E num momento em que não seria de se esperar: em uma nova audiência da rainha ao primeiro-ministro John Major (na foto acima, o ator que o interpreta, Jonny Lee Miller.)
Major conta para ela que havia recebido um telefonema de Bóris Yeltsin, dizendo que os preparativos para os funerais dos restos mortais do czar Nikolay e sua família já estavam sendo arranjados. E em seguida felicita a rainha pelo aniversário do casamento dela, que aconteceria daí a uns poucos dias. Ela agradece: – “Quarenta e sete anos. E contando… E você e a sra. Major?” Vinte e quatro anos, ele informa.
A rainha dá um sorriso que é mais do que formal: – “Nós devemos estar fazendo alguma coisa certa. O que acha que pode ser?”
John Major pensa por um minuto, e dá uma resposta fascinante: – “Um dos relatos mais memoráveis sobre um casamento longo e bem sucedido vem da esposa de Dostoiévski, Anna. Ela e Fiódor tinham, ela disse, personalidades diferentes. Temperamentos diferentes. Visões totalmente opostas – mas nunca tentaram mudar um ao outro. Nem interferir na alma do outro. Isso, ela acreditava, permitia que ela e o marido vivessem em harmonia.”
– “Não terem nada em comum?”, pergunta a mulher cujo marido estava naquele momento muito distante dela.
Depois de um breve silêncio, o primeiro-ministro diz: – “A chave para um casamento feliz, ao que parece…”
Ah, que maravilha ver um roteiro tão absolutamente bem estruturado, tão perfeitamente coeso…
The Crown é a mais absoluta maravilha que pode haver. E neste episódio, meu Deus, eles excederam!
Anotação em 11/2022
The Crown – O episódio 6 da Quinta Temporada
De Peter Morgan, criador, roteirista, Reino Unido-EUA, 2022
Direção Christian Schwochow
Com Imelda Staunton (rainha Elizabeth II),
Jonathan Pryce (Philip, duque de Edinburgh),
e Natascha McElhone (Penny Romsey), Elliot Cowan (Norton Romsey), Jonny Lee Miller (John Major), Anatoliy Kotenyov (Boris Yeltsin), Marina Shimanskaya (Naina Yeltsin), Richard Dillane (rei George V), Candida Benson (rainha Mary), Adam Buchanan (o jovem príncipe de Gales, futuro rei Edward VIII), Roteiro Peter Morgan, Jonathan Wilson, Meriel Baistow-Clare, Daniel Marc Janes
Fotografia Frank Lamm
Música Martin Phipps
Montagem Simon Brasse
Casting Robert Sterne
Desenho de produção Masrtin Childs
Direção de arte Clara Gomez del Moral
Figurinos Amy Roberts
Produção Peter Morgan, Left Bank Pictures, Sony Pictures Television Production UK, Sony Pictures Television
Cor, 58 min
****
Muito bom! Gostei particularmente do trecho que explica os diferentes tipos de montagem e como a série, ironicamente, utilizou a montagem russa.