A Família Addams / The Addams Family

Nota: ★★★☆

(Disponível na Netflix em novembro de 2021.)

As crianças adoram A Família Addams. Quando Raul Julia era visto por crianças, na rua, onde quer que fosse, elas o chamavam de Gomez Addams, o chefe da família – e consta que o grande ator adorava isso. Ele sempre dizia que um de seus prazeres era fazer crianças felizes.

Foi por causa de uma criança que A Família Addams (1991) foi feito. É o que conta o IMDb: o produtor Scott Rudin e um grupo de executivos da 20th Century Fox estavam em uma van, voltando da exibição de uma nova produção do estúdio, quando o filho de um deles – Tom Sherak, o chefe de marketing – começou a cantar “Addams Family Theme”, a canção composta por Vic Mizzy para o seriado de TV que teve 65 episódios entre 1964 e 1966, e volta e meia era reapresentado.

É uma daquelas musiquinhas tipo chiclete, que uma vez ouvidas grudam na cabeça da gente e não saem mais. Abre com o som de vários dedos estalando ritmadamente, e a letra começa assim “They’re creepy and they’re kooky, / Mysterious and spooky, / They’re all together ooky, / The Addams Family.” Eles são assustadores e excêntricos, / Misteriosos e apavorantes, / Eles são totalmente horripilantes, a Família Addams.

Taí: por que não fazer um filme com a Família Addams? – ocorreu àquele bando de executivos de Hollywood.

E então Scott Rudin botou mãos à obra.

Ele produziu o filme para a Orion Pictures, e teve a grande idéia de chamar Barry Sonnenfeld, até então um bem sucedido diretor de fotografia, para estrear na direção. Barry Sonnelfeld, talentoso, bom de serviço, faria um belo trabalho – tanto que repetiriam a dose dois anos depois com A Família Addams 2.

Figuras de fato macabros, horripilantes

Não me parece muito fácil de compreender esse estranho fenômeno de as crianças gostarem tanto desses personagens estranhos, “assustadores, excêntricos, misteriosos, apavorantes, totalmente horripilantes”.

Os Addams veneram tudo o que as pessoas normais odeiam e temem: a morte, a dor, a tristeza, o infortúnio. Vivem num imenso casarão que parece assombrado por mil fantasmas. Em vez de jardim, têm diante de casa um cemitério em que estão enterrados seus antepassados. O chefe da família, Gomez (o papel, como já foi dito, de Raul Julia), tem como passatempos favoritos explodir trens de brinquedo e lançar bolas de golfe para quebrar os vidros da casa mais próxima. Sua mulher, Mortícia (o papel perfeito para Anjelica Huston), tem uma expressão tão macabra quanto tudo da mansão em que vivem. As duas crianças, uma menina e um menino aí de uns 11, 13 anos, se divertem brincando de assassinato. Uma hora lá, a garota, Wednesday (o papel de Christina Ricci) passa pela mãe carregando uma pequena faca, correndo atrás do irmão Pugsley (Jimmy Workman). Mortícia rapidamente tira a faca da mão da filha – e entrega a ela um gigantesco facão de cortar carne!

Uma das diversões de Pugsley é arrancar das esquinas placas de “Pare” – e ficar ouvindo o barulho das batidas de carros que seguramente passarão a acontecer.

Há mais figuras estranhas na casa. A Vovó, a mãe de Gomez, cria poções mágicas em um caldeirão, exatamente como as bruxas das historinhas infantis. Ela é interpretada por Judith Malina, a atriz que criou com o marido Julian Beck o grupo Living Theater, de Nova York. Há a Mãozinha, The Thing, A Coisa, que é exatamente isso – uma mãozinha desprovida do resto do corpo. O mordomo Lurch (Carel Struycken) é uma criatura imensa, sem expressão alguma e quase sem palavras. O Primo Itt (John Franklin) tem tanto cabelo que não se vê nenhuma parte de seu corpo.

E temos também o Tio Fester (o papel de Christopher Lloyd, o Doc, o cientista maluco da série De Volta Para o Futuro), o irmão mais velho do Gomez que havia desaparecido fazia mais de 20 anos – e que reaparece de repente, na figura de um impostor que tem imensa semelhança física com o verdadeiro, levado pelo advogado desleal dos Addams, Tully Alford (Dan Hedaya). Mas, afinal, aquele sujeito é o Tio Fester mesmo, ou é um impostor? A história criada para o filme pela dupla Caroline Thompson & Larry Wilson gira, em boa parte, em torno dessa questão.

Na série de TV dos anos 60, a maioria desses personagens ganhou outros nomes no Brasil, nomes abrasileirados – diferentes dos usados em Portugal. Gomez e Mortícia foram mantidos, ainda bem: Mortícia é uma maravilhosa sacada, e faz mais sentido para nós, pela referência direta à morte, do que às audiências de língua inglesa. Mas o Tio Fester aqui virou Tio Chico (parece que em Portugal é Tio Funéreo).

Wednesday era Wandinha, e Pugsley, Feioso. O mordomo Lurch aqui virou Tropeço, e o tal sujeito de quem só vemos os cabelos virou o Primo Coisa.

Excelentes atores, perfeitos para os papéis

Bem. Se para mim de fato é difícil compreender por que raios as crianças gostam tanto desses personagens macabros, esquisitos, que adoram tudo que tem a ver com a morte, há algo que, bem ao contrário, me parece bastante claro. A maior qualidade deste A Família Addams com que Barry Sonnenfeld estreou na direção é a escolha dos atores e sua caracterização.

Todos eles estão absolutamente magníficos. Mas, em especial, Raul Julia, Anjelica Huston e a então garotinha Christina Ricci.

Raul Julia nasceu para ser Gomez. Anjelica Huston nasceu para ser Mortícia. Christina Ricci nasceu para ser Wednesday.

Ahnn… Vai aí algum exagero, e peço perdão. São, esses três aí, bons atores. Raul Julia está excelente, só para dois exemplos, em O Beijo da Mulher Aranha (1985), de Hector Babenco, e Acima de Qualquer Suspeita (1990), de Alan J. Pakula. Anjelica tem o talento da linhagem do avô Walter e do pai John – seguramente o único diretor que dirigiu tanto o pai quanto a filha em atuações premiadas com o Oscar, o primeiro por O Tesouro de Sierra Madre (1948) e a segunda por A Honra do Poderoso Prizzi (1985).

E Christina Ricci, que neste A Família Addams aqui fazia seu segundo filme, depois de uma feliz estréia em Minha Mãe é uma Sereia (1990), viria a mostrar grande talento em dezenas de filmes bons, como Tempestade de Gelo (1997), Monster: Desejo Assassino (2003) e Entre o Céu e o Inferno (2006).

A afirmação de que nasceram para os papéis neste filme aqui é um exagero – mas é uma forma de expressar a admiração, o espanto, a delícia que é vê-los como Gomez, Mortícia e Wednesday Addams.

Mary e eu costumamos brincar, sempre que vemos Christina Ricci, que ela tem mesmo uma carinha de doida – e sabe se aproveitar disso na carreira de atriz. A menina tem um talento incrível. Só um exemplo: Anjelica Huston contou que foi de Christina, do alto de seus então 11 anos de idade (ela nasceu em Santa Monica, California, em 1980), a idéia de fazer com que Wednesday se deitasse para dormir com as mãos dobradas sobre o peito – como em geral as pessoas são colocadas no caixão.

 A família nasceu como tirinhas de quadrinhos

Essa informação acima é um dos quase 100 itens da página de Trivia do IMDb sobre o filme. Nada menos de 98 itens – o que confirma a minha teoria de que uma prova de que um filme virou cult, é adorado, é o grande número de itens nas páginas de Trivia do IMDb.

Quem quiser dar uma olhada nas curiosidades seguramente encontrará coisas deliciosas.

É obrigatório registrar que, originalmente, a Família Addams não se destinava, de forma alguma, ao público infantil ou infanto-juvenil. O cartunista Charles Addams (1912-1988) criou os personagens em tirinhas que, a partir de 1937 e até sua morte, foram publicadas na elegante, chique revista The New Yorker.

Conhecida, portanto, apenas pelo círculo de leitores da revista, a Família Addams passou a ser de fato popular com a série de TV lançada pela rede ABC em 1964. O criador da série foi David Levy; Gomez era interpretado por John Astin; Mortícia, por Carolyn Jones, aquela atriz de longos cabelos negros e olhos de um verde fulgurante de filmes como Balada Sangrenta (1958), Duelo de Titãs (1959), Os Viúvos Também Sonham (1959); e o Tio Fester era feito por Jackie Coogan, o ator que havia feito o papel título de O Garoto/The Kid, o clássico de Charles Chaplin de 1921.

A série, como já foi dito, teve 65 episódios, foi apresentada até 1966, e ao longo das décadas seguintes sempre voltou a ser exibida em emissoras de TV dos mais diversos países, Brasil inclusive, é claro. Foi para a série, como também já foi dito, que Vic Mizzy compôs o “Addams Family Theme”, a musiquinha chiclete que o filho do executivo Tom Sherak cantou numa van em que estavam várias figuras importantes de Hollywood.

As informações são de que a produção deste The Addams Family foi problemática. Pessoas importantes da produção tiveram que se afastar por alguns períodos devido a doenças. O roteiro foi reescrito constantemente. O tempo previsto para as filmagens estourou, assim como o orçamento, que originalmente era de US$ 25 milhões. A Orion teve que botar mais US$ 5 milhões para terminar a produção – e a empresa já estava envolvida com filmes que custaram mais que o previsto. Com dificuldades, a Orion acabou vendendo o filme para a Paramount, que cuidou da distribuição nos Estados Unidos – a distribuição no resto do mundo ficou com a Columbia.

Mas foi um sucesso; The Addams Family acabou se pagando várias vezes e portanto dando um belo lucro. A renda chegou a UIS$ 191 milhões – o que garantiu que houvesse a continuação, A Família Addams 2/Addams Family Values, de 1993, também dirigido por Barry Sonnenfeld e com Anjelica Huston, Raul Julia, Christina Ricci e Christopher Lloyd.

Barry Sonnenfeld depois faria os três deliciosos MIB: Homens de Preto, em 1997, 2002 e 2012, e mais As Loucas Aventuras de James West (1999) e Um Grande Problema (2002), entre outros.

Viriam também filmes de animação com a Família Addams. No Brasil, o musical A Família Addams foi um gigantesco sucesso no Teatro Abril de São Paulo em 2012 e depois no Vivo Rio do Rio de Janeiro, com Marisa Orth como Martícia e Daniel Boaventura como Gomez. E em novembro de 2021, quando vimos o filme, já se anunciava uma nova temporada para 2022 no Teatro Renault em São Paulo, com a sempre ótima Marisa Orth confirmada para reviver Morticia.

Maltin gostou muito; Ebert, não

Leonard Maltin deu 3.0 estrelas em 4: “Comédia picante baseada na família macabra criada nos cartoons por Charles Addams (mais tarde popularizados pela série de TV de mesmo nome), cujo ganancioso advogado tenta pilhar a fortuna plantando ali um impostor que diz ser o Tio Fester, desaparecido fazia tempos. Huston e Julia estão absolutamente perfeitos como Morticia e Gomez, e conseguem manter um toque leve enquanto apresentam seu humor negro alegre e macabro. Impressionante estréia na direção do talentoso diretor de fotografia Sonnenfeld.”

Já o grande Roger Ebert não gostou do filme, ao qual deu apenas 2 estrelas em 4. Segundo ele, há motivos para sorrisos, ao longo do filme, mas não para boas risadas. Há boas idéias – e ele cita a fase da Mãozinha trabalhando como entregar da Federal Express como uma delas –, mas elas não são desenvolvidas em situações de fato engenhosas e engraçadas.

“A mãe, chamada Morticia, é interpretada por Anjelica Huston, que está uma sósia perfeita do original. Seu marido, Gomez, é interpretado por Raul Julia, e, apesar da esquisitice de seus personagens, eu senti que de alguma maneira havia química entre eles. Eles estavam se divertindo. Muitos dos melhores momentos envolvem os dois filhos dos Addams, Wednesday (Christina Ricci) e Pugsley (Jimmy Workman), que, antes de sair para a escola, recebem sanduíches com alguma coisa viva lá dentro. Wednesday e Pugsley são responsáveis pelo único momento realmente impagável do filme, numa apresentação no teatro da escola que termina com metade da audiência encharcada de sangue falso. Pelo menos espero que tenha sido falso.”

Parece que o grande Roger Ebert, assim como eu, tem problemas com a coisa do humor negro…

Diz o Guide des Films de Jean Tulard sobre La Famille Addams: “Simpática homenagem aos desenhos do maravilhoso Chas Addams que haviam também inspirado uma série de televisão. Diante do sucesso, uma sequência foi rodada em 1993, Les Valeurs de la Famille Addams.”

Anotação em novembro de 2021

A Família Addams/The Addams Family

De Barry Sonnenfeld, EUA, 1991

Com Anjelica Huston (Morticia Addams),

Raul Julia (Gomez Addams),

Christopher Lloyd (tio Fester Addams),

Christina Ricci (Wednesday Addams),

Jimmy Workman (Pugsley Addams)

e Dan Hedaya (Tully Alford), Elizabeth Wilson (Abigail Craven), Judith Malina (a Vovó Addams), Carel Struycken (Lurch, o mordomo), Dana Ivey (Margaret Alford), Paul Benedict (juiz Womack, o vizinho), Christopher Hart (Thing, A Coisa, a mãozinha), John Franklin (primo It), Tony Azito (Digit Addams), Douglas Brian Martin (Dexter Addams), Steven M. Martin (Donald Addams), Allegra Kent (prima Ophelia Addams), Richard Korthaze (Slosh Addams), Ryan Holihan (Lumpy Addams), Maureen Sue Levin (Flora Amor), Darlene Levin (Fauna Amor), Kate McGregor-Stewart (agente de emprego), Lela Ivey (Susan Firkins), Whit Hertford (Little Tully), Patty Maloney (Lois Addams), Victoria Hall (a loura sueca)

Roteiro Caroline Thompson & Larry Wilson

Baseado nos personagens criados por Charles Addams

Fotografia Owen Roizman

Música Marc Shaiman

Montagem Dede Allen, Jim Miller

Casting David Rubin

Direção de arte Richard Macdonald

Produção Scott Rudin, Orion Pictures, Paramount Pictures.

Cor, 99 min (1h39)

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