A Batalha Esquecida / De Slag om de Schelde

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Nota: ★★★½

(Disponível na Netflix em 7/2022.)

Este é um belíssimo filme sobre fatos reais não muito conhecidos, não muito falados da Segunda Guerra Mundial – a batalha do Rio Schelde, ou Escalda, em português. O título original, em neerlandês, a língua dos Países Baixos, De Slag om de Schelde, é exatamente isso, “a batalha do Schelde”.

Um belíssimo filme. Há sequências que não ficam a dever às maravilhosas, extraordinárias, que Steven Spielberg encenou em seu O Resgate do Soldado Ryan (1998). Há sequências de soldados nas trincheiras que são tão virulentamente comprovações da insanidade das guerras quanto as de Glória Feita de Sangue (1957), o clássico de Stanley Kubrick.

A batalha do Rio Schelde aconteceu no final de 1944, e a vitória sobre as tropas nazistas foi o que permitiu aos aliados poder chegar até o importantíssimo porto de Antuérpia, um dos maiores do mundo, e daí rumo à Alemanha, no avanço que levaria à rendição final dos nazistas, em 7 de maio de 1945.

Muito provavelmente, ou creio que se pode usar o advérbio  seguramente, aquela batalha foi a manobra de guerra mais importante que ocorreu em solo dos Países Baixos. Parece portanto absolutamente natural que o cinema holandês tenha tratado essa batalha com uma produção tão rica, cuidadosa, caprichada.

Lançado em 2020, o filme – uma co-produção dos Países Baixos com a vizinha Bélgica – foi o segundo mais caro já realizado em toda a história do cinema holandês. Teve um orçamento de 14 milhões de euros, logo abaixo de A Espiã, de 2006, de Paul Verhoeven, que custou 16 milhões de euros.

O diretor Matthijs van Heijningen Jr. conseguiu fazer um filme que é ao mesmo tempo um amplo painel, um afresco sobre os eventos históricos, com sequências de multidões de figurantes, e também uma obra com toques intimistas, os retratos de três pessoas envolvidas no turbilhão da Grande Guerra.

Pôde fazer isso a partir de um roteiro inteligente, muitíssimo bem elaborado, que mistura os acontecimentos gerais, factuais – reais – com as trajetórias de três jovens fictícios, criados pelos autores para o filme. Os autores são um time de cinco profissionais; o roteiro é assinado por Paula van der Oest, que teve a colaboração de Pauline van Mantgem, Reinier Smit e Matthijs van Heijningen Jr. A história foi criada pela própria Paula van der Oest em parceria com Jesse Maiman.

Cinema é isso: trabalho de equipe.

Um colaboracionista, uma funcionária, um soldado inglês

São, a rigor, três histórias que vão correndo paralelamente, cada uma seguindo um dos três personagens centrais – três jovens de trajetórias diferentes, que não se conheciam, não tinham laço algum entre si, e tiveram suas vidas engolfadas pelo conflito.

Marinus van Staveren e Teuntje Visser são naturais ali dos Países Baixos. William Sinclair é inglês. Todos têm pouco mais de 20 anos de idade.

(Gijs Blom, na foto acima, que faz Marinus, estava com 23 em 2020, ano de lançamento do filme; Susan Radder, com 21. Os dois nasceram nos Países Baixos, como seus personagens. Jamie Flatters, o ator inglês que faz Will, na foto abaixo, estava com 20.)

Marinus é um colaboracionista assumido. Trabalha para os alemães, luta como soldado no exército nazista. Irá rever essa adesão aos invasores do seu país – mas só quando a narrativa já estiver bem depois da metade dos 124 minutos de duração do filme.

Teuntje Visser trabalha na prefeitura da sua cidade, Flessingue, na ilha de Walcheren. O prefeito da cidade (o papel de Hajo Bruins) aceitou colaborar com os invasores – era aceitar ou ser preso e deportado para um campo de concentração.

O pai da garota, o doutor Visser (Jan Bijvoet), é o médico mais experiente da pequena cidade. Cuida dos doentes indistintamente, sejam seus conterrâneos, sejam soldados invasores. Tem o respeito dos oficiais nazistas que estão na região.

Dirk Visser (Ronald Kalter) é o filho do bom médico, um ano ou dois mais jovem do que a irmã Teuntje. É um fotógrafo que registra tudo que está à sua frente. Depois de algum tempo de filme, o espectador percebe que o jovem Dirk tem ligações com a resistência holandesa aos invasores nazistas.

O jovem inglês Will é filho de um político importante, e é um excelente piloto. Irá participar de um grande grupo de militares que usarão planadores da RAF, a força aérea real britânica, para pousar perto de Antuérpia, junto do Rio Schelde, para se unir a um grande destacamento de soldados canadenses que se prepara para enfrentar as forças nazistas estacionadas perto da ilha de Walcheren, também junto do Rio Schelde, mas mais a Oeste, mais perto de sua foz no Mar do Norte/Oceano Atlântico.

Um intróito que precisava mesmo ser didático

É uma tradição de muitas décadas que os filmes que relatam histórias reais, fatos reais, comecem com uma apresentação – ainda que rápida – da situação, do contexto que cerca a narrativa que será mostrada na tela. Às vezes essas informações básicas, essa contextualização vem na voz de um narrador, às vezes em letreiros.

A situação toda em que se deu a batalha do Rio Schelde é complexa. Não é algo tão absolutamente simples como apresentar, por exemplo, a invasão da Normandia pelas tropas aliadas – o tema do citado O Resgate do Soldado Ryan. Primeiro porque a invasão da Normandia, um dos episódios mais conhecidos, relatados, encenados em diversos filmes, é algo de que boa parte dos espectadores de cinema já ouviu falar, algo já conhecido. E segundo porque toda a geografia daquele local dos Países Baixos é bem mais complicada do que uma praia aberta diante da qual uma grande quantidade de navios despeja soldados.

Assim, o diretor Matthijs van Heijningen Jr. abriu seu filme com uma exposição um pouco mais detalhada e bem mais didática do que o usual. E montou uma espécie de animação, em que vemos um mapa da região da Bélgica e dos Países Baixos, em movimento, para facilitar o entendimento do espectador, enquanto vão rolando letreiros que dizem o seguinte:

“6 de junho de 1944. A invasão da Normandia. Depois de dois meses de batalha, os alemães recuaram em pânico. Os aliados precisavam urgentemente de um porto para manter as tropas.”

(Vamos vendo pelas cores no mapa o avanço das tropas aliadas da França para a Bélgica, enquanto as forças nazistas para recuando para o Leste.)

“Antuérpia é libertada, e o porto está intacto. Mas, enquanto os alemães tiverem o controle do Rio de Schelde (Escalda), os navios aliados não podem alcançar Antuérpia. Parte do Exército alemão se retira do Rio Schelde (rumo à ilha de Walcheren, através da cidade de Flessingue).

Nos Países Baixos, acredita-se que a libertação virá a qualquer momento.”

Desaparece o mapa, e vemos, numa tomada geral aérea gigantesca, impressionante, diversos navios atravessando a foz do rio em direção à ilha de Walcheren. O letreiro informa o onde e o quando: “Flessingue, Aelândia. 5 de setembro de 1944”.

Uma batalha decisiva, mas pouco conhecida

O espectador, em especial o espectador que não é natural dos Países Baixos, não tem nenhuma obrigação de saber, mas aquele dia 5 de setembro de 1944 passou para a história como “Dolle Dinsdag”, ou Terça Louca. Toda a sequência inicial do filme se passa nessa Terça Louca, e é esplendorosa, com centenas, milhares de extras, gente caminhando um tanto como barata tonta pelas ruas. Um item da página de Trivia do IMDb sobre o filme nos ajuda a entender os fatos históricos que inspiraram os roteiristas, e que os letreiros iniciais resumem para o espectador. O site conta que as forças aliadas haviam avançado através da Bélgica em tempo recorde. A cidade de Antuérpia havia sido libertada dos invasores nazistas um dia antes, e os boatos que se espalharam rapidamente era de que os aliados iriam logo em seguida libertar a Zelândia – aquela província dos Países Baixos em que se localiza ilha de Walcheren. Com isso, os soldados alemães começaram a recuar, rumando para o Norte da ilha. Só que os aliados não chegaram naquele dia, nem nos vários dias que se seguiram – e parte das tropas nazistas retornaria para a cidade que haviam acabado de abandonar.

Os aliados só conseguiriam chegar a Flessingue e ao resto da província da Zelândia vários dias depois – depois de vencer o que passou opara a História com o nome de Batalha do Rio Scheld, parte da qual o filme reconstitui quase em seu final.

Certamente foi porque a batalha do Rio Schelde, tão importante na História dos Países Baixos, é bem pouco conhecida fora dali, que os exibidores escolheram o título The Forgotten Battle para os países de língua inglesa – título que foi seguido em vários outros países, inclusive o Brasil, onde a Netflix o exibe como A Batalha Esquecida.

Esta anotação ficou chata. Mas o filme é uma beleza

Esta anotação acabou ficando danada de confusa – e chata. Tentei relatar os fatos históricos que o filme apresenta e acabei falando pouco do filme em si. Paciência.

É, repito, um belíssimo filme, feito com talento, garra e, creio, imenso amor pela pátria dos realizadores.

Ao final dos 124 minutos em que vemos parte da vida desses três jovens, Marinus, Teuntje e William, novos letreiros informam que, na batalha do Rio Schelde, morreram 3.231 soldados aliados, 4.250 alemães e 2.283 civis.

Um último letreiro lembra que os Países Baixos foram libertados no dia 5 de maio de 1945.

Não é feita a ligação com o dia 7 de maio de 1945, o dia da rendição final da Alemanha nazista.

A libertação dos holandeses aconteceu apenas dois dias antes da rendição nazista! Os Países Baixos haviam sido invadidos em maio de 1940, depois da Polônia (atacada em setembro de 1939), da Dinamarca (abril de 1940), da Noruega (abril de 1940) e da Bélgica (maio de 1940).

Cinco anos inteiros sob o domínio nazista. Dá para imaginar a importância que aquele povo dá à batalha que acelerou sua libertação.

Anotação em julho de 2022

A Batalha Esquecida/De Slag om de Schelde

De Matthijs van Heijningen Jr., Países Baixos-Bélgica, 2020

Com Gijs Blom (Marinus van Staveren, o jovem colaboracionista),

Jamie Flatters (William Sinclair, o jovem aviador inglês),

Susan Radder (Teuntje Visser, a jovem funcionária da prefeitura)

e Jan Bijvoet (doutor Visser, o pai de Teuntje e de Dirk), Tom Felton (Tony Turner, o oficial da RAF), Coen Bril (Henk Schneijder, soldado inglês), Theo Barklem-Biggs (John), Scott Reid (Nigel), Marthe Schneider (Janna, a amiga de Dirk), Ronald Kalter (Dirk Visser, o irmão de Teuntje), Hajo Bruins (o prefeito Oostveen), Justus von Dohnányi (o coronel alemão Berghof), Joep Paddenburg (Lucas), Mark van Eeuwen (Pim den Oever|), Robert Naylor (Bill), Gordon Morris (sargento Mackay)

Roteiro Paula van der Oest, com a colaboração de Pauline van Mantgem, Reinier Smit e Matthijs van Heijningen Jr.     

Baseado em história de Paula van der Oest e Jesse Maiman     

Fotografia Lennert Hillege

Música Emilie Levienaise-Farrouch

Montagem Marc Bechtold

Casting Rebecca Farhall, Gail Stevens, Rebecca van Unen      

Desenho de produção Hubert Pouille

Produção Alain De Levita, Levitate Film, Caviar Films,

Evangelische Omroep (EO).

Cor, 124 min (2h04)

***1/2

 

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