Ninguém Deseja a Noite / Nadie Quiere la Noche

Nota: ★★★½

A vida no limite: a privação de todos os confortos, de todas as coisas básicas. Fome, fome durante dias, semanas, meses; frio muito pior que o frio mais insuportável. Um ambiente mais hostil do que poderia imaginar a mente mais imaginativamente perversa, num absoluto fim de mundo. E, como se ainda pudesse haver um quadro pior que este, a coroar todo o sofrimento físico, ainda tem a dor moral da consciência da traição.

É assim que vemos a protagonista da história, Josephine Peary – o papel de Juliette Binoche –, em Ninguém Deseja a Noite (2015), da realizadora catalã Isabel Coixet.

Como vários dos que Isabel Coixet já fez, este é um grande filme, feito com imenso talento e garra. Mas não é um filme fácil de se ver, de forma alguma. É muito sofrimento demais, e o talento e a garra com que Isabel e Juliette criaram a personagem central transmitem imenso sofrimento ao espectador. Eu, que sou um danado de covarde diante de qualquer desconforto físico – para não falar em dor -, me senti absolutamente angustiado ao longo de todo o filme.

E nem dá para sentir algum consolo com a frase atribuída a Oscar Wilde – “Ó Deus, livrai-me da dor física, que da moral eu me ocupo” –, porque, como já disse, sobre Josephine Peary pesam igualmente as dores físicas e morais.

É uma realizadora admirável essa moça Isabel Coixet, nascida em 1960 em Barcelona. Seus filmes são belos, marcantes – mas duros, densos, muitas vezes apavorantes, cruéis. Muita gente, talvez a maioria, prefere afastar os pensamentos sobre as coisas mais dolorosas da vida. Isabel Coixet, não – ela as enfrenta. O tema de seus filmes são sempre as coisas mais dolorosas da vida.

Um letreiro bem pouco usual: “Inspirado em personagens reais”

Ninguém Deseja a Noite abre com uma paisagem gelada, absolutamente gelada, de lugar próximo de Pólo, e ouvimos a voz de Juliette Binoche em off:

– “Foi há tanto tempo que quase não parece mais real. Estou de volta ao conforto agora. Com lustres e cristais lapidados, aquecimento, comida, casa. Ainda assim, em algumas manhãs acordo para sentir a noite polar perfurando meu corpo. E nada, nem mesmo o sol, pode me aquecer.”

Vemos então rapidíssimos créditos iniciais – apenas os nomes dos principais atores, do autor do roteiro original, de história criada diretamente para o filme, Miguel Barros, e da diretora. E uma legenda dá uma informação pouco usual, algo curioso, instigante: “Inspirado em personagens reais”.

“Baseado em história real” é algo óbvio. “Inspirado em história real” indica que houve muita liberdade no trato dos fatos reais – criaram-se fatos, situações, para contar de modo um tanto mais enfeitado, romanceado, uma história que aconteceu realmente. Já “Inspirado em personagens reais” é algo que abre imensamente as possibilidades. Não me lembro de ter visto essa expressão em outros filmes.

O tema “personagens reais” voltará a ser abordado mais tarde. Neste inicinho de filme, o que o espectador pode perceber, além de que há algo real na história que começa a ser contatada, é que a narradora agora está de volta ao conforto. Sobreviveu.

Essa informação voltará à cabeça do espectador quando o filme está lá pela metade – porque a sensação que se tem é de que não haverá saída possível para Josephine Peary. Me peguei comentando com Mary, enquanto sofria vendo o sofrimento cada vez maior da personagem: bem, mas ela sobrevive, ela disse isso no começo do filme!

A mulher civilizada que pariu mais ao Norte em toda a História do Mundo

Um letreiro informa, logo que terminam os rapidíssimos créditos iniciais: “Ellesmere Island, Canadá, 1908.”

O espectador não tem a obrigação de saber disso, é claro, mas a ilha Ellesmere é o ponto mais setentrional do Canadá. O ponto mais ao Norte das Américas, o ponto das Américas mais perto do Pólo Norte. Dentro do Círculo Polar, cercado pelo Oceano Ártico.

Josephine Peary chega até o único vilarejo de Ellesmere Island – e quer ir mais para o Norte, rumo ao Pólo.

Ela é a esposa do explorador Robert Edwin Peary, ousado, corajoso, famoso, respeitado – o homem que já havia feito ao menos duas expedições para o Norte, na tentativa de chegar ao local exato do Pólo.

E então, em 1908, sem que o marido soubesse, Josephine desembarcou em Ellesmere Island, dizendo ao pessoal de retaguarda da expedição de seu marido que queria ir para o Norte, para fazer uma surpresa para Robert, para estar à espera dele na mais afastada das estações construídas pelo homem até então – para recepcioná-lo quando ele retornasse.

Todos tentam dissuadi-la, convencê-la de que é arrematada loucura, de que é perigosíssimo para os homens mais acostumados a enfrentar os rigores da região, que dirá para uma mulher.

Josephine, no entanto, é firme e teimosa como um bode, como um burro de carga quando empaca. Usa em sua defesa o fato de que havia dado à luz seu filho ali mesmo, em Ellesmere Island, mais de dez antes – a mulher civilizada que pariu mais ao Norte em toda a História do Mundo.

Uma mulher corajosa, destemida, forte – mas, ao mesmo tempo, dondoca

Não tenho idéia de quanto o autor e roteirista Miguel Barros se inspirou na Josephine Peary da vida real para construir sua Josephine Perry fictícia, mas a mulher a que Juliette Binoche dá vida, com aquele seu imenso talento, é um ser absolutamente impressionante.

Tem vontades férreas, luta por elas com uma força extraordinária, poucas vezes vista. É, como já foi dito, firme e teimosa – é a teimosia em pessoa, a teimosia concentrada e engarrafada.

É corajosa, destemida, valente, briosa. Numa situação de perigo de escala 1 a 1000, em que eu já estaria desistindo lá pelo 10, ela chega ao número máximo de 1000 e vai adiante.

Férrea como uma Mulher Maravilha, corajosa para enfrentar os rigores polares, é no entanto, ao mesmo tempo, concomitantemente, a maior das dondocas. No pequeno vilarejo de Ellesmere Island, em que se reúne com diversos exploradores, vários deles ligados à expedição em curso do seu marido, veste-se como se estivesse numa festa no apartamento mais elegante entre todos os elegantes da Park Avenue.

(Espalhadas em frases que Josephine pronuncia ao longo do filme, há as informações de que ela mora em Washington, mas frequenta as mais finas boutiques e festas da altíssima sociedade de Nova York; há pelo menos duas menções específicas à Park Avenue.)

Carrega para aquele – literalmente – fim de mundo, com especial cuidado, pratos e talheres dos mais finórios que havia em seu tempo. Garrafas de vinho. E, como é rica, fina e chique, mas também culta, amante das artes, leva um fonógrafo – ou seja qual for o nome que tinha, em 1908, um daqueles lindérrimos aparelhos de som que tocavam os 78 rpm com uma fidelidade igual a se o ouvinte estivesse no Scalla de Milão.

É uma personagem fascinante. Estranhíssima, louca, incompreensível – mas, pelo amor de Deus, fascinante. O que é aquilo? Uma mulher que é ao mesmo tempo capaz de ser dondoca e destemida, guerreira, pronta para enfrentar algo que nenhuma outra mulher havia enfrentado.

Ahnnn… Bem… Não é exatamente assim. Mulheres esquimós já haviam enfrentado aquilo tudo. Mulheres esquimós já haviam parido ali ou até mais perto do Pólo.

Mas esquimós, a rigor, não contam, não é mesmo? – essa era a forma com que Josephine Peary raciocinava.

Para Josephine – como para tanta gente, em 1908, para tanta gente até mesmo hoje, até mesmo dentro da Casa Branca no Ano do Senhor de 2017 –, o que conta são os brancos, os civilizados, os Wasps, White, Anglo-Saxon and Protestant.

O resto não existe. O resto é algo próximo do reino animal.

O racismo, o surpremacismo, o etnocentrismo – temas importantes no filme

Não trouxe para cá a questão do racismo por mero acaso. O tema está muito presente no filme. A rigor, a rigor, acho mais apropriado o termo supremacismo, porque é disso que se trata. Josephine tem a mais absoluta certeza de que ela é uma representante do que é supremo – o resto é inferior.

Talvez mais adequado ainda fosse dizer que a questão colocada ali é de etnocentrismo – a forma elegante usada pelos antropólogos e semelhantes para definir o egocentrismo de uma classe social ou etnia.

A Josephine Peary que a francesa Juliette Binoche incorporou é o etnocentismo em estado puro. Ela tem a absoluta certeza de que o mundo dela – o mundo das senhoras ricas de Nova York e de Washington – é o centro do universo. O resto são planetas inferiores que circundam, de longe, o centro do universo que são ela e suas amigas, seus pares.

No jantar em que ela recebe os mais respeitáveis senhores brancos que estavam naquele momento em Ellesmere Island, com a pompa e circunstância que uma lady inglesa receberia convidados em seu castelo em Yorkshire, há um diálogo especialmente forte. Alguém faz um brinde ao marido dela, o explorador Robert Edwin Peary, cuja mais recente expedição não havia tido sequer uma perda de vida humana. Ao que um outro convidado, Bram Trevor, um excelente explorador, magnífico marinheiro, amigo de Peary, intervém, lembrando que dois esquimós haviam morrido.

O filme de Isabel Coixet não chegou ainda a 15 minutos, e o espectador já percebeu que, para todas aquelas pessoas, com a exceção do capitão Bram Trevor,  esquimó não é ser humano.

Bram Trevor tem uma barba gigantesca – de tal maneira que nem Mary nem eu reconhecemos Gabriel Byrne, esse ator tão conhecido nosso e de todos.

No inverno, praticamente na há sol. E o inverno dura 6 meses

Como comprovou-se impossível fazer a senhora Peary mudar de idéia, cair em si, compreender que o que pretendia era loucura absoluta, Bram Trevor chefia um expedição para levar a doida varrida até a estação mais avançada, fora de Ellesmere Island, já passado o Oceano Ártico, onde ela dizia que esperaria o marido voltar da expedição ao local exato do Pólo Norte.

Junto da estação mais avançada jamais construída pelo homem dentro do Círculo Polar Ártico, onde Josephine vai parar – uma pequena, rústica casa de madeira, com cama, fogão, lareira –, vive um pequeno grupo de esquimós. No meio deles há uma jovem mulher, Allaka (o papel da atriz japonesa Rinko Kikuchi).

Josephine havia iniciado sua viagem para o Norte de Ellsemere Island no final de julho, verão no Hemisfério Norte. A questão é que, dentro do Círculo Polar, no verão as noites são bem curtas; no inverno, ao contrário, praticamente não há sol algum – e o inverno dura 6 meses.

Nadie Quiere la Noche é o título em espanhol desta co-produção Espanha-França-Bulgária. Ninguém Quer a Noite, em Portugal.

Há frases que expressam verdades universais. Truísmos. Gonzaguinha juntou um monte de truísmos em um belo samba: “Ninguém quer a morte, só saúde e sorte”. Isabel Coixet, que faz filmes sobre as maiores durezas que pode haver na vida, diz no título de seu filme a frase que poderia estar no samba de Gonzaguinha. Nadie Quiere la Noche.

Aqui vem um spoiler: quem não viu o filme deveria pular para o próximo intertítulo

Quando o filme está com 45 minutos dos seus 104, há uma revelação que, a rigor, a rigor, é spoiler. O eventual leitor que tiver chegado até aqui e não tiver ainda visto o filme deveria parar de ler, ou então pular os parágrafos abaixo, até o próximo intertítulo.

Aos 45 minutos deste filme de 104, revela-se para o espectador – mas sobretudo para Josephine – que o grande explorador Robert Edwin Peary vem tendo como amante, há muitos verões e invernos árticos, a esquimó Allaka.

Pior ainda, se é que pode haver algo pior do que você estar morrendo de fome e frio e sem perspectiva alguma de ser salva, e acabar de ficar sabendo que seu cônjuge está traindo você faz tempo, e com um ser que você considera inferior: aquele ser inferior está grávida de um filho do seu marido!

Pode haver algo pior?

Pode. A vida de Josephine Peary ainda vai piorar muito, ao longo do resto do filme.

Josephine Peary viveu até os 92 anos de idade – morreu em 1955

Vou agora atrás de informações sobre a Josephine Peary da vida real.

Josephine Cecilia Diebitsch nasceu em 1863, em Maryland, filha de um casal de imigrantes alemães – o pai, Hermann Henry Diebitsch, havia sido oficial do Exército da Prússia; em Washington, trabalhou no prestigioso Smithsonian Institution. À frente de seu tempo, a jovem Josephine cursou o Spencerian Business College, habilitando-se a trabalhar como escriturária em qualquer instituição do governo.

Casou-se com o explorador Robert Edwin Peary em 1885, e acompanhou o marido em várias de suas expedições no Círculo Polar Ártico. Ao contrário do que acontece no filme, no entanto, ela não participou da expedição em que Robert conseguiu finalmente se tornar o primeiro homem a chegar ao Pólo Norte: naquela vez, ficou na casa que a família havia comprado no Maine.

Já o fato de ela ter sido a mulher branca a dar à luz no lugar mais setentrional do mundo, mencionado no filme, isso é verdadeiro. Ela e Robert tiveram dois filhos, uma menina e um menino. Marie Ahnighito Peary nasceu a menos de 13 graus do Pólo Norte, em 1893, e por isso ganhou o apelido de Snow Baby; ela mesma, Josephine, era conhecida como A Primeira Dama do Ártico.

Por suas expedições ao Círculo Polar, Josephine ganhou a maior condecoração da National Geographic Society.

Escreveu três obras sobre suas viagens ao extremo Norte: My Arctic Journal (1893), The Snow Baby (1901) e Children of the North (1903). Morreu em 1955, aos 92 anos de idade.

Quem gosta de ver filmes só para se divertir deveria evitar Isabel Coixet

Ninguém Deseja a Noite foi escolhido para abrir o 65º Festival de Berlim, em fevereiro de 2015. (Na foto, a realizadora catalã e a atriz francesa na Berlinale.) Participou de vários festivais; ganhou 6 prêmios, fora outras 13 indicações. Para o Goya, o principal prêmio do cinema espanhol, teve indicações nas categorias de filme, diretor, atriz para Juliette Binoche e fotografia. Mas só levou os de música original, figurinos, direção de produção e maquiagem.

Isabel Coixet está entre os principais realizadores em atuação nas últimas décadas, na minha opinião. E, como foi dito na abertura deste texto, ela não foge dos temas pesados, duros. Muito ao contrário: vai atrás deles.

Em Minha Vida Sem Mim/My Life Without Me, de 2003, a jovem  protagonista da história, interpretada pela maravilhosa atriz canadense Sarah Polley, se descobre com uma doença terminal.

A Vida Secreta das Palavras, de 2005, mostra o encontro de duas pessoas profundamente tristes, infelizes, cheios de marcas e ferimentos feios, profundos – físicos e psicológicos. Hanna (de novo Sarah Polley) é uma deficiente auditiva, sobrevivente da guerra dos Bálcãs, que vai trabalhar como enfermeira numa plataforma de petróleo onde tinha havido um incêndio; sua tarefa será cuidar de um dos trabalhadores, Josef (o papel de Tim Robbins), com graves queimaduras, cego temporariamente, que ainda não tem condições sequer de ser transportado de helicóptero para um hospital em terra.

No filme de diversos diretores Paris, Te Amo, de 2006, o melhor episódio, na minha opinião, é o de Isabel Coixet, sobre um casal de meia idade que se separa pouco antes de se descobrir que a mulher está com câncer.

Fatal/Elegy, de 2008, é a adaptação para o cinema do livro O Animal Agonizante, do escritor Philip Roth. O personagem central, que narra a história, é um professor e crítico cultural inglês, David Kepesh (Ben Kingsley), um hedonista que se mudou para os Estados Unidos para aproveitar a farra da libertação sexual dos anos 60; já velho, com a consciência de que a morte se aproxima, apaixona-se perdida, loucamente por uma aluna, uma jovem de beleza esplendorosa (Penélope Cruz). Com medo do que na sua cabeça é o sempre iminente fim da história de amor, David vai deixando a sorte grande com que os deuses o presentearam escapar entre seus dedos. Anotei na época que o filme, belíssimo, é de “uma tristeza forte, quase sufocante”.

Quem gosta apenas de divertissements não deve ver filmes de Isabel Coixet. Só que perde muita beleza.

Anotação em setembro de 2017

Ninguém Deseja a Noite / Nadie Quiere la Noche

De Isabel Coixet, Espanha-França-Bulgária, 2015.

Com Juliette Binoche (Josephine Peary),

e Rinko Kikuchi (Allaka), Gabriel Byrne (Bram Trevor), Orto Ignatiussen (Ninq), Matt Salinger (capitão Spalding), Ben Temple (Frand), Reed Brody (Lucius), Alberto Jo Lee (Odaq), Clarence Smith (Henson), Velizar Binev (Fyodor), Ciro Miró (Njal)

Argumento e roteiro Miguel Barros

Fotografia Jean-Claude Larrieu

Música Lucas Vidal

Montagem Elena Ruiz

Casting Monika Mikkelsen

Produção Ariane & Garoé, Audiovisual Aval SGR,

Canarias Cultura en Red, Eurimages, Generalitat de Catalunya, Institut del Cinema Català (ICC), Instituto de la Cinematografía y de las Artes Audiovisuales (ICAA).

Cor, 104 min (1h44)

***1/2

Título nos EUA: Nobody Wants the Night ou Endless Night. Na França: Personne n’attend la nuit.

Disponível no Now.

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