Contos de Nova York / New York Stories

Nota: ★★★☆

Três absolutos craques, dos melhores não apenas do cinema americano como da História do cinema – Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Woody Allen. Três dos mais talentosos criadores surgidos a partir do final dos anos 60.

Para não deixar barato, para abusar do direito de reunir o crème de la crème, cada um levou para ser seu diretor de fotografia um grande mestre da arte, dos maiores do cinema europeu. Scorsese levou Néstor Almendros, o catalão que trabalhou em vários filmes de François Truffaut, 1 Oscar, mais 10 outros prêmios, outras 10 indicações. Coppola, sempre ligado à Itália de seus avós, escolheu Vittorio Storaro, 3 Oscars, mais outros 45 prêmios, fora 31 indicações. Woody Allen chamou o fotógrafo de seu ídolo maior, Ingmar Bergman – o sueco Sven Nykvist, 2 Oscars, outros 16 prêmios, fora outras 16 indicações.

Contos de Nova York/New York Stories, lançado em 1989, uma época em que todos os três grandes cineastas já tinham grande fama e imenso respeito da crítica, foi um absoluto fracasso nas bilheterias. A estimativa é de que a Touchstone Pictures tenha investido US$ 15 milhões na produção do filme. US$ 5 milhões para cada episódio dirigido por um gênio reconhecido – nada absurdo. A rigor, uma barganha.

Pois o filme rendeu no mercado americano não mais que R$ 10,7 milhões. Não conseguiu sequer pagar seus custos – e, para dar lucro, uma produção do cinema americano precisa render ao menos duas vezes o seu custo, por causa dos investimentos com marketing, publicidade.

Fracasso absoluto de público – e, pior ainda, fracasso até mesmo de crítica. Nem os críticos se encantaram com o filme de episódios dirigidos por Scorsese, Coppola e Allen! Algo mais ou menos como a crônica esportiva desdenhar uma seleção que reunisse neste 2017, digamos, Messi, Cristiano Ronaldo e Neymar.

Depois que revi o filme agora, para escrever sobre ele, fui ler o que disseram alguns críticos – e é absolutamente fantástico, porque não houve concordância alguma. Cada um gostou de um episódio e detestou os outros. O que não é nada absurdo, nada demais – é assim mesmo que tem que ser, cada cabeça, uma sentença, e toda unanimidade é burra, como alertava Nelson Rodrigues. Mas que é divertido ver como os críticos se dividiram, lá isso é.

Transcrevo o que disseram alguns deles mais adiante. Bem mais adiante. Antes, algumas lembranças sobre filmes de esquetes, e um pouco sobre cada um destes três contos de Nova York.

Filmes de esquetes são uma tradição dos cinemas francês e italiano

Filmes de esquetes, de episódios são uma tradição dos cinemas francês e italiano – mas não são comuns no cinema americano.

Nos anos 60, era moda filmes franceses (em co-produção com a Itália) e filmes italianos (em co-produção com a França) em esquetes, cada um feito por um realizador, com roteirista e diretor de fotografia de sua confiança, de sua turma.

Em geral, os esquetes tinham muito a ver entre si, como em Os Sete Pecados Capitais/Les Septs Péchés Capitaux (1962) – sete pecados, sete diretores, um para cada pecado. Jacques Demy, Jean-Luc Godard, Philipe De Broca, Claude Chabrol, Roger Vadim, Édouard Molinaro.

As Bruxas/Le Streghe (1967) – atrizes maravilhosas, diretores respeitadíssimos. Silvana Mangano em diversos segmentos, Annie Girardot, Laura Betti. Mauro Bolognini, Vittorio De Sica, Pier Paolo Pasolini, Franco Rossi, Luchino Visconti.

As Bonecas/Le Bambole (1965): três esplendorosas italianas, Monica Vitti, Virna Lisi, Gina Lollobrigida, uma alemã não menos esplendorosa, Elke Sommer. Dirigidas por Mauro Bolognini, Luigi Comencini, Dino Risi, Franco Rossi.

Nós, as Mulheres/Siamo Donne (1953), um dos pioneiros da moda – Ingrid Bergman, Anna Magnani, Alida Valli, Lea Miranda, dirigidas por Roberto Rossellini, Luchino Visconti, Luigi Zampa.

Os grandes diretores europeus fizeram esquetes

Boccaccio ’70 (1962), um dos de maior sucesso e importância, com episódios vagamente inspirados em histórias do escritor Giovanni Boccaccio (1212-1375). Segmentos dirigidos Vittorio De Sica, Federico Fellini, Luchino Visconti e Mario Monicelli, com, respectivamente, Sophia Loren, Anita Ekberg, Romy Schneider e Marisa Solinas. Na hora de lançar o filme nos cinemas, o segmento de Monicelli foi extirpado (mas ele pode ser visto no DVD lançado no Brasil pela Versátil).

Histórias Extraordinárias/Histoires Extraordinaires/Spirits of the Dead (1968) – três episódios baseados em histórias de Edgar Alan Poe, dirigidos por Federico Fellini, Louis Malle e Roger Vadim, com, respectivamente, Terence Stamp, Brigitte Bardot e Jane Fonda.

Houve filmes de vários episódios dirigidos pelo mesmo cineasta. Vittorio De Sica filmou três histórias diferentes com seus dois atores prediletos, Marcello Mastroianni e Sophia Loren em Ontem, Hoje e Amanhã/Ieri Oggi Domani (1963). Depois filmou sete esquetes com a mesma atriz – Shirley MacLaine, bela como poucas vezes se viu – em Sete Vezes Mulher/Sette Volte Donna (1967).

E Julien Duvivier dirigiu todos os dez episódios de O Diabo e os 10 Mandamentos/Le Diable et les 10 Commandments (1962).

Houve ainda filmes internacionais, reunindo cineastas de diferentes países. Um dos mais marcantes e famosos deles foi O Amor aos 20 Anos/L’Amour à Vingts Ans (1962), com episódios dirigidos por Shintarô Ishihara, Marcel Ophüls, Renzo Rossellini, Andrzej Wajda e François Truffaut. Para este filme, Truffaut trouxe de volta seu alter-ego, Antoine Doinel, que havia sido apresentado ao público em seu primeiro longa-metragem, Os Incompreendidos/Les Quatre-Cents Coups (1959).

E não dá para deixar de fora Longe do Vietnã/Loin du Vietnam (1967), com episódios de Joris Ivens, William Klein, Claude Lelouch, Jean-Luc Godard e Alain Resnais.

Apesar de ter sido tão criticado, o filme tem muita coisa fascinante

Esse esquema de reunir cineastas de diversas nacionalidades para fazer um episódio voltou a aparecer bem mais recentemente nos filmes declaração de amor a cidades – já houve Paris, Te Amo (2006), Nova York, Eu Te Amo (2009), Rio, Eu Te Amo (2014).

Tradição na França e na Itália, e de volta ultimamente em produções internacionais, o filme em episódios no entanto nunca foi algo comum no cinema americano. Só consigo me lembrar de dois, além de Contos de Nova York. Um é obra do francês Jean Duvivier, em seu período de exílio nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial, Mistérios da Vida/Flesh and Fantasy (1943).

O outro é Páginas da Vida/O’Henry’s Full House (1952), cinco episódios baseados em contos do escritor O’Henry (1862-1910), cada um dirigido por um realizador, todos bons realizadores – Henry Hathaway, Howard Hawks, Henry King, Henry Koster e Jean Negulesco. Páginas da Vida é hoje pouquíssimo conhecido. Quem se lembra dele provavelmente é por causa de Marilyn Monroe, que, em início de carreira, tem um pequeno papel em dos episódios.

Uau. Acabei fazendo um grande texto sobre os filmes em episódios. Não era bem essa a intenção.

O fato é que essa não é a dos americanos. O cinema americano iria se especializar em algo que até tem algumas semelhanças com os filmes em episódios: os filmes que contam várias histórias ao mesmo tempo, histórias paralelas, de diferentes grupos de pessoas, que se cruzam em algum momento, ou não. São os mosaicos, à la Short Cuts – ou, na linguagem dos críticos de cinema, as narrativas com estrutura multiplot. Múltiplas tramas.

Depois da obra-prima de Robert Altman de 1993, vieram diversos filmes mosaicos, vários deles muito, muito bons. Inclusive, claro, alguns feitos por autores de outros países, que se integraram ao cinema feito nos Estados Unidos. Para citar só alguns, Por Conta do Destino (2005), Questão de Vida (2005), Babel (2006), Vidas Que Se Cruzam (2008), Destinos Ligados (2009), 360 (2011), Homens, Mulheres e Filhos (2014), O Maior Amor do Mundo (2016),

Contos de Nova York, então, por tudo o que foi dito acima, é uma exceção dentro do cinema americano. Não deu certo na bilheteria nem na opinião dos críticos na época.

No entanto, vale a pena ver – ou rever. Tem muita coisa fascinante.

É angustiante ver aquele homem grandão se humilhar diante da jovenzinha

Começa com o episódio de Scorsese, o mais comprido deles, de 45 minutos – Life Lessons, lições da vida. Depois vem o de Coppola, de 33 minutos. Life Without Zoe, a vida sem Zoe. O de Woody Allen, de 40 minutos, fecha: chama-se Oedipus Wrecks, Édipo Arrasado, título adotado no belo livro Conversas com Woody Allen, de Eric Lax, editado aqui pela CosacNaif, que os deuses a tenham.

Life Lessons é a história (escrita e roteirizada por Richard Price, de A Cor do Dinheiro, 1986) de um amor louco de um pintor de imensa fama e sua jovem secretária e também aspirante a pintora. Ele, Lionel Dobie (o papel de Nick Nolte), é um sujeito fisicamente grande como sua fama. Tudo em Lionel Dobie é grande: os cabelos, a barba, os ombros, a altura, o loft em que vive e trabalha – e o ego, a certeza de que é um artista importante, um gigante, um leão. Ela, Paulette, “apenas Paulette” (o papel de Rosanna Arquette), é uma garota pequena. Em tudo: o corpo é mignonzinho; belo, todo roliço, redondinho, mas mignonzinho – e a diferença de estatura, quando os dois estão de pé, no gigantesco loft, fica descomunal. É pequenina também em vivência, tem meros 22 aninhos. Em segurança, auto-confiança – e também, ao que tudo indica, em talento.

Lionel a ama desesperadamente, precisa dela para viver – conforme diz e repete e repete de novo ao longo de todo o curta-metragem de Martin Scorsese. Talvez, ou muito provavelmente, precise de uma mulher presente na sua vida, mais do que aquela Paulette específica, mas o fato é que diz o tempo todo que a ama desesperadamente e precisa dela para viver.

Ela, pequenininha diante do gigante, do leão, se sente amassada, espremida, sufocada. Não o ama, não quer saber de ele chegar perto dela para sexo, nem sequer para beijar o pé dela, que é o que ele pede, pateticamente, ridiculamente, depois de ter prometido que não tentaria mais fazer sexo com ela.

Ele olha para o pezinho dela, e pede para beijá-lo. É patético, é ridículo: para pintar, Lionel ouve rock’n’roll e pop em volume altíssimo (“Like a rolling stone”, numa gravação ao vivo com The Band, “A Whiter Pale of Shade”, na gravação original com Procol Harum), mas aquela figura imensa mendigando para dar um beijo no pé da garotinha que diz que não o ama ficaria melhor ao som de “Ne me quitte pas” de Jacques Brel – não vou mais chorar, não vou mais falar, vou me esconder pra ficar vendo você dançar e sorrir e a escutar cantar e depois rir; me deixe virar a sombra do seu ombro, a sombra da sua mão, a sombra de teu cão.

Meu Deus do céu e também da terra, que profundamente patético é esse Lionel, o leão, o gigante.

Confesso que fiquei profundamente incomodado ao ver como aquele homenzarrão se humilhava tanto diante da garotinha. É angustiante.

A atuação de Nick Nolte é um brilho – e ajuda o fato de que o papel parece ter sido escrito para ele. Scorsese seguramente gostou de trabalhar com ele: dois anos depois, em 1991, o ator faria o papel do advogado Sam Bowden, em Cabo do Medo/Cape Fear, que havia sido de Gregory Peck na versão original de 1962.

Rosanna Arquette já havia trabalhado com o diretor em Depois de Horas/After Hours, de 1985. Ela também está muito bem.

E Life Lessons é Martin Scorsese puro: muita pirotecnia visual, uma câmara que não fica parada um instante sequer, muito close-up, muita câmara no alto, em grandes plongées. A sensação que se tem é de Scorsese, um apaixonado pelo cinema, profundo conhecedor da História da arte, quer se utilizar de todos, absolutamente todos os recursos existentes, todas as figuras de linguagem permitidas pela gramática do cinema.

Quatro gerações de Coppola brincando de fazer um conto de fadas

Life Without Zoe foi escrito a quatro mãos por Francis Ford Coppola e sua filha Sofia, que estava , em 1989, com 18 aninhos (ela é de 1971, um ano antes do lançamento de The Godfather). A protagonista se chama Zoe – referência direta ao nome da companhia produtora de Coppola, a American Zoetrope, que foi à falência quando ele gastou rios de dinheiro fazendo O Fundo do Coração/One From the Heart (1981).

Zoe (interpretada por Heather McComb, uma absoluta gracinha) é uma garota de 12 anos, filha de um famosíssimo flautista de música erudita, Claudio (Giancarlo Giannini) e uma mulher do mundo da moda, Charlotte (Talia Shire, a irmã de Francis). Como pai e mãe estão sempre viajando mundo afora, Zoe – inteligente, espertíssima, safa, precoce – vive num hotel elegantíssimo, e quem cuida dela é Hector, o mordomo (uma atuação deliciosa de Don Novello).

Na escola que frequenta, só de ricos muito ricos, Zoe vai conhecer um novo aluno, Abu (Selim Tlili), filho de um xeque árabe, um dos homens mais ricos do mundo. Abu dará uma festa de arromba, onde os meninos da escola irão todos fantasiados.

Pai e filha Coppola criaram na trama uma história envolvendo uma linda princesa árabe e uma jóia valiosíssima – a princesa, que aparece numa única sequência, é interpretada, em participação especial, por Carole Bouquet, a atriz francesa de beleza incrível.

É assim uma espécie de conto de fadas moderno, feérico, colorido, todo bonitinho.

A principal característica de Life Without Zoe, na minha opinião, é o fato de que é um curta-metragem absolutamente família. É como se o grande Coppola tivesse reunido membros da família para fazer uma  brincadeira. Ele e a filha Sofia escreveram, a irmã faz a mãe da protagonista. O pai, Carmine Coppola, compôs a trilha sonora – e aparece rapidamente numa sequência como um músico de rua. E a netinha Gia aparece também rapidamente como Zoe bebê. Quatro gerações de Coppola brincando de fazer um conto de fadas cujo título fala da vida sem a American Zoetrope.

Adrien Brody – que em 2002 ganharia o Oscar por O Pianista, de Roman Polanski – faz uma pontinha no filme. Foi sua estréia no cinema.

Foi também a estréia de Kirsten Dunst: ela faz uma das filhas de Lisa, a personagem de Mia Farrow no episódio de Woody Allen. Kirsten Dunst trabalharia sob a direção de Sofia Coppola em As Virgens Suicidas (1999), Maria Antonieta (2006), Bling Ring: A Gangue de Hollywood (2013) e O Estranho Que Nós Amamos (2017).

E há um detalhinho curioso, gostoso. Na história, Claudio, o pai de Zoe, o flautista interpretado por Giancarlo Giannini, é o solista de um concerto realizado junto do Parthenon, em Atenas. Nos créditos finais, na parte referente a este segmento do filme, há um agradecimento à então ministra da Cultura da Grécia – a maravilhosa Melina Mercouri (1920-1994), de Stella (1955), Nunca aos Domingos (1960), Phaedra (1962), Topkapi (1964) e tantos outros filmes importantes. Melina abandonou o cinema em 1981; depois do final da ditadura dos coronéis em seu país natal, foi eleita para o Parlamento grego pelo Partido Socialista, em 1977, e foi ministra da Cultura entre 1981 e 1990.

Allen vinha de dois dramas, e fez uma comédia arrasadoramente engraçada

Depois do conto de amor louco e do conto de fadas, é a vez de Woody Allen.

Woody Allen vinha de dois dramas seguidos, Setembro (1987) e A Outra (1988). Para participar do projeto de filme de episódios sobre Nova York, bolou uma história engraçadíssima, hilariante – uma comédia absolutamente escancarada. Ele mesmo interpreta o personagem central, Sheldon Mills, sócio menos importante de um grande escritório de  advocacia. O fato de Sheldon ser um advogado é a única coisa que difere o personagem de todos os outros que Allen criou para ele mesmo interpretar – o artista-intelectual judeu nova-iorquino neurótico, inseguro, cheio de dúvidas, hipocondríaco, que faz análise há anos.

Além de ter todas essas características típicas da persona criada por Allen em seus filmes, Sheldon Mills tem ainda uma outra: é profundamente incomodado com a mãe. Apesar de estar aí com 50 anos de idade, fica embaraçadíssimo com as constantes críticas da mãe, possessiva, autoritária, mandona.

A atriz que faz a mãe, Mae Questel, é uma maravilha – é a típica, perfeita mãe judia. (Que, na verdade, tem muito a ver com a mãe mineira – e de mãe mineira eu entendo bem.)

A mãe está sempre pronta a abrir a carteira e mostrar para o primeiro estranho que aparecer as fotos do filho quando bebê, quando criancinha. Faz todos os elogios possíveis ao filho bebê e criancinha – e implica com absolutamente tudo o que o filho faz hoje em dia, já passando da meia idade, entrando na velhice.

E, claro, conta para todo mundo que o nome dele na verdade é Millstein, que ele mudou para Mills – disfarçando um pouco o evidente traço judeu. (Woody Allen, é bom lembrar, se chama Allan Stewart Konigsberg.)

Para seu analista (interpretado, com brilho, por Marvin Chatinover), ele conta como a mãe inferniza sua vida. Como morre de medo do que acontecerá no fim de semana, quando ele levará a namorada, Lisa (Mia Farrow, claro), para a mãe conhecer.

Para Lisa, a mãe mostra as fotos de Sheldon garoto. Mas, assim que ela se ausenta rapidamente para ir ao banheiro ou coisa parecida, começa a fazer objeções ao casamento. Para que ter pressa de se casar?, pergunta. (Afinal, ele tem só 50 anos…)

E por que se casar com uma mulher divorciada que já tem três filhos?

A pergunta óbvia – por que se casar com uma mulher que não é judia? – ela não faz, mas é claro que fica no ar, o tempo todo.

Lá pelas tantas, de repente, a mãe some. Desaparece. Como muito bem diz Roger Ebert, não é o caso de relatar como ela desaparece – seria spoiler, perderia a graça para quen ainda não viu o filme. E o desaparecimento é engraçadíssimo, deliciosamente hilariante.

A princípio, Sheldon se preocupa. Até contrata um detetive particular para tentar descobrir o que aconteceu com a mãe. Mas, depois de algum tempo, começa a se sentir mais leve, mais feliz. O sexo com Lisa melhora demais – ela diz que nunca o sentiu tão solto, tão relaxado.

Quando Sheldon está feliz da vida, nas nuvens, por não ter mais o peso da mãe nas costas, ela reaparece. E reaparece de maneira ainda mais fantasticamente engraçada do que havia desaparecido – e, de novo, não teria sentido relatar o jeito, a forma com que ela reaparece, embora (ou exatamente porque) essa seja a chave da história.

O filme de Woody Allen vai fundo na coisa da mágica e do ocultismo

Édipo Arrasado é engraçadíssimo, arrasadoramente engraçado. Fazia muito tempo que tinha visto Contos de Nova York, não me lembrava direito das histórias, e morri de rir ao rever agora o episódio de Woody Allen.

Foi o 18ª filme dirigido pelo cineasta. (O IMDb diz 19º, por levar em conta O Que Há, Tigresa?/What’s Up, Tiger Lily?, de 1966, que é de fato um filme do japonês Senkichi Taniguchi para o qual Woody Allen criou os diálogos em inglês, mudando completamente a trama original.)

E foi o nono dos 13 filmes da Era Mia Farrow, que vai de 1982 (Sonhos Eróticos de uma Noite de Verão) até 1992 (Maridos e Esposas).

Além de ter o judeu nova-iorquino neurótico – a persona criada por ele, seu Carlitos –, Édipo Arrasado tem dois dos elementos básicos da obra dele, presentes em vários de seus filmes: a mágica e as referências ao ocultismo.

Allen começou a vida artística fazendo uns truques de mágica. Os mágicos e a magia estão em diversos de seus filmes, como Neblina e Sombras/Shadows and Fog (1991), O Escorpião de Jade/The Curse of the Jade Scorpion (2001), Scoop – O Grande Furo/Scoop (2006), Magia ao Luar/Magic in the Moonlight (2014).

Neste Édipo Arrasado, há um seqüência longa, importantíssima, passada num teatro em que se apresenta um mágico, Shandu, o Grande.

O papel do mágico foi escrito, segundo o IMDB, para Wallace Shawn, que trabalhou em outros filmes de Allen, como A Era do Rádio (1987), no papel do ator que fazia a voz do Vingador Mascarado. No entanto, o papel acabou indo para um mágico na vida real, George Schindler.

O ocultismo – o apelo ao sobrenatural – surge na história de onde menos seria de se esperar: o psiquiatra de Sheldon é quem, numa sequência deliciosa, sugere que o problema enfrentado por seu paciente naquele momento só poderia mesmo ser resolvido por uma médium, uma mulher com poderes de se comunicar com as forças sobrenaturais.

Só mesmo em um filme de Woody Allen: o paciente diz que não acredita em nada disso, que só acredita no que diz a Ciência – e o psiquiatra insiste que só o oculto pode dar um jeito naquilo.

A médium que o psiquiatra recomenda é uma mulher muitíssimo doidona, chamada Treva. Ela faz uns trabalhos que misturam diversos tipos de bruxarias com cânticos e danças malucas. Treva é interpretada pela ótima e sempre engraçada Julie Kavner, que trabalhou com Woody Allen em vários filmes – Hannah e Suas Irmãs (1986), A Era do Rádio (1987), Simplesmente Alice (1990), Neblina e Sombras (1991).

Maltin só gostou do episódio de Allen; já Ebert detestou

Leonard Maltin, o autor dos guias de filmes mais vendidos do mundo, deu apenas 2.5 estrelas em 4 para este “anthology film” de três partes. (É interessante isso de em inglês chamarem de anthology films os filmes em esquetes, em episódios.)

Ele descreve o episódio de Scorsese como óbvio e feito com mão pesada; o de Coppola como uma variação bonitinha mas sem sentido da história infantil da personagem Eloise, que vive em um hotel de Nova York. “Finalmente, chegamos ao bom material com a comédia que é o segmento de Allen, em que um homem é literalmente assombrado por sua mãe insistente; Woody está em grande forma diante da câmara como a desafortunada vítima, e Questel é um brilho como a mãe.”

E conclui: “Levando em conta tudo, uma perda de tempo até a segmento final”.

Cada cabeça, uma sentença. Roger Ebert caiu de amores pelo episódio de Martin Scorsese, e não gostou nada dos de Coppola e Allen:

Oedipus Wrecks, de Woody Allen, é sua primeira pura comédia desde Broadway Danny Rose (1984), o que agradará aqueles que não gostam de seus filmes sérios, mas é também o mais fraco de todos os seus filmes, de qualquer tipo.”

Uau! Segundo o grande, respeitabilíssimo Roger Ebert, Édipo Arrasado é o filme mais fraco de Woody Allen até então!

É a opinião dele, e é preciso respeitá-la. Mas talvez Ebert não tenha prestado muita atenção ao episódio de Allen, depois de ter se entusiasmado demais pelo de Scorsese. Pode ser. Ao relatar a história, ele se refere várias vezes ao personagem de Allen – um advogado – como sendo um banqueiro.

Já que estou comentando o que disseram os críticos, registro que concordo plenamente com Leonard Maltin: a atuação de Woody Allen é extraordinária. Ele estava inspiradíssimo como ator. Mostra com o corpo o peso da mãe sobre os ombros do pobre personagem; depois demonstra com os movimentos do corpo a leveza que é ter ficado livre da mãe. As caras que ele faz durante a sequência no teatro em que o mágico se apresenta são absolutamente antológicas.

Escreve Dona Kael, na tradução de Sérgio Augusto para a edição brasileira de 1001 Noites no Cinema: “O intensamente gostoso Lições de Vida de Scorsese traz uma atuação magistral de Nick Nolte, como um pintor que precisa de agitação na sua vida. A Vida Sem Zoe, de Coppola, é uma tentativa descartável de usar Nova York como uma cidade saída das Mil e Uma Noites. Naufrágio de Édipo, de Woody Allen, é uma peça de variedades freudiana sobre um advogado judeu (feito por ele) que acha que, casando com uma não-judia (Mia Farrow), escapará de sua mãe (Mae Questel). (Não tem a menor chance.) Esta comédia-conto é um pouco longa e esquemática demais, mas tem algumas boas risadas, e uma adorável atuação de Julie Kavner como uma desamparada cômica involuntária.”

“Longa”? O episódio, como já foi dito, tem 40 minutos, apenas! E não sei de onde Dame Kael tirou isso de que o personagem de Woody Allen achava que escaparia da mãe por se casar com uma não-judia. Quer dizer: na verdade eu sei de onde ela tirou isso, mas é feio falar palavrão.

“Um dos trabalhos mais abertamente engraçados do realizador em anos”

“Talvez o maior defeito desta em geral agradável tentativa de reviver o filme ônibus, que foi uma das marcas da Nova Onda francesa, seja o fato de que pouca coisa unifica seus três segmentos a não ser o local das filmagens”, diz a crítica do excelente site AllMovie, assinada por Keith Phipps. (Ele usa as expressões “omnibus film” e French New Wave, em vez do original nouvelle vague.)

Com a vantagem de estar fazendo sua avaliação muito tempo após o lançamento do filme, já com a perspectiva histórica, ao contrário dos três citados acima, o crítico do All Movie prossegue:

“Tivessem Martin Scorsese, Woody Allen e Francis Ford Coppola se reunido para um trabalho conjunto em, digamos, 1974, é possível que tivessem colocado em foco a nova geração de realizadores americanos que surgiam naquela época, apesar de seus diferentes estilos. Mas em 1989 as pessoas já estavam bem familiarizadas com cada diretor; consequentemente, New York Stories parece mais uma desculpa para explorar o formato curta-metragem do que qualquer tipo de afirmação.”

Não que haja nada errado nisso, diz o crítico. “Life Lessons de Scorsese permite que ele explore uma história claustrofóbica e de foco bem fechado que não garantiria um tratamento como longa-metragem, mas que é um retrato assombroso de uma relação fadada a acabar, tendo como pano de fundo o mundo da arte de Nova York nos anos 80. Pedaço mais fraco do filme, ensanduichado no meio, o episódio de Coppola, uma inconsequente visão de Nova York pelos olhos de uma criança, tem como aspecto mais esperto o jogo de palavras do título, Life Without Zoe. (A lendária e falida empresa produtora de Coppola tinha o nome de American Zoetrope.) O filme de Allen, Oedipus Wrecks, não apenas tem um melhor jogo de palavras como se revela um dos trabalhos mais abertamente engraçados do realizador em anos, parecendo uma década de piadas sobre mães reprimida que é solta de uma única vez, e permitindo que o filme válido, se não impressionante, termine com uma explosão.”

Certíssimo, acho eu. Desta vez, concordo com Leonard Maltin (e com o crítico do AllMovie), e discordo do grande Roger Ebert. Para mim, dos três curta-metragens reunidos ali, o de Woody Allen é disparado o melhor.

É um filme que vale a pena ver e rever.

Anotação em agosto de 2017

Contos de Nova York/New York Stories

De Martin Scorsese, Francis Ford Coppola e Woody Allen, EUA, 1989

Episódio Life Lessons

De Martin Scorsese

Com Nick Nolte (Lionel Dobie), Rosanna Arquette (Paulette)

e Patrick O’Neal (Phillip Fowler), Jesse Borrego (Reuben Toro), Steve Buscemi (Gregory Stark), Peter Gabriel (ele mesmo), Debbie Harry (mulher no espetáculo cômico), Illeana Douglas (amiga de Paulette em restaurante)

Argumento e roteiro Richard Price

Fotografia Néstor Almendros

Cor, 45 min

Episódio Life Without Zoe

De Francis Ford Coppola

Com Heather McComb (Zoe), Talia Shire (Charlotte, a mãe), Giancarlo Giannini (Claudio, o pai), Paul Herman (Clifford, o porteiro), James Keane (Jimmy), Don Novello (Hector, o mordomo), Selim Tlili (Abu), Carmine Coppola (músico de rua), Carole Bouquet (Princesa Soroya), Adrien Brody (Mel)

Argumento e roteiro Francis Ford Coppola e Sofia Coppola

Fotografia Vittorio Storaro

Cor, 33 min

Episódio Oedipus Wrecks

De Woody Allen

Com Woody Allen (Sheldon Mills), Mia Farrow (Lisa), Julie Kavner (Treva), Mae Questel (a mãe), Marvin Chatinover (o psiquiatra), Jessie Keosian (tia Ceil), George Schindler (Shandu, o mágico), Bridgit Ryan (Rita), Prefeito Edward I. Koch (ele próprio), Kirsten Dunst (a filha de Lisa)

Argumento e roteiro Woody Allen

Fotografia Sven Nykvist

Cor, 40 min

Produção Touchstone Pictures. DVD

Cor, 123 min

***

8 Comentários para “Contos de Nova York / New York Stories”

  1. A mãe judia é a melhor coisa desse filme.

    PS: Eu sempre lembro de “Páginas da Vida” por causa de “O presente dos magos”, um dos melhores contos que já li, virou até corrente de Whatsapp (sem os devidos créditos, hehehe).

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