Nota:
Anotação em 2011: O único defeito de A Era do Rádio é que seus 85 minutos passam depressa demais.
Para, antes de mais nada, situar o filme em sua época: Radio Days é de 1987, bem na metade da fase Mia Farrow dos filmes de Woody Allen, que havia se iniciado em 1982 com Sonhos Eróticos numa Noite de Verão. Veio depois de Zelig (1983), Broadway Danny Rose (1984), A Rosa Púrpura do Cairo (1985) e Hannah e Suas Irmãs (1986).
Depois de A Era do Rádio, e à medida em que o casamento – o pessoal e o artístico – com Mia Farrow ia se esgarçando, viriam filmes duros, pesados: Setembro (1987), A Outra (1988), Crimes e Pecados (1989), Maridos e Esposas (1992), Neblina e Sombras (1992).
Ele só voltaria à comédia aberta, escrachada, despreocupada, feliz da vida, em 1993, com Misterioso Assassinato em Manhattan, depois que se livrou de Mia Farrow, suas loucuras, suas neuroses, sua doentia insistência em tratar a filha de criação dela e de seu ex-marido Andre Previn como se fosse filha de sangue do marido seguinte.
Em 1987, parecia estar muito bem com a vida. A Era do Rádio é uma comédia escrachada, alegre, impagável. É difícil falar em superlativos sobre Woody Allen, porque ele tem filmes demais, e filmes superlativos demais, mas eu ousaria dizer que A Era do Rádio é, no mínimo, uma de suas comédias mais abertamente engraçadas. O filme é hilariante, quase insuportavelmente hilariante: é uma boa piada atrás da outra, sem parar, a uma velocidade absurda.
Um camaleão que toma muitas formas mas se mantém sempre fiel a si mesmo
Já escrevi diversas vezes, falando sobre outros filmes de Woody Allen, que A Era do Rádio é uma espécie assim de versão pessoal do cineasta para Amarcord de Fellini, uma de suas grandes influências. Me permito lembrar:
Em Zelig, de 1983, Woody Allen criou um camaleão, um sujeito que muda a toda hora, toma a forma dos mais diversos tipos de pessoa. Em muitos de seus filmes, o cineasta é assim uma espécie de Zelig – demonstra sua admiração por determinada obra, e faz a sua própria versão daquela obra. É um estranho camaleão que muda mas ao mesmo tempo permanece sempre sendo profundamente ele próprio, Allen Stewart Konigsberg.,
Revendo: ele fez seu Guerra e Paz, de Liev Tostói, em A Última Noite de Bóris Grushenko/Love and Death, de 1975. Seu Crime e Castigo, de Fiodor Dostoiévski, em Crimes e Pecados, de 1989. Seu Morangos Silvestres, de Ingmar Bergman, em Desconstruindo Harry, de 1997. Seu Oito e Meio, de Fellini, em Memórias/Stardust Memories, de 1980. Em Annie Hall, seu tributo personalíssimo a uma mulher, Diane Keaton, prestou homenagem, mais uma vez, a seu maior ídolo, Ingmar Bergman – com umas pitadas de Fellini, e uma de Victor Sjöström, o que é uma maneira de voltar a Bergman.
Uma família imensa, cheia de tipos engraçados
A Era do Rádio é assim uma espécie de o Amarcord de Woody Allen.
Não tanto na forma, no estilo, mas na coisa em si: as lembranças da infância. Amarcord – eu me recordo. Woody Allen se recorda de coisas da sua infância, a época de ouro do rádio, finalzinho dos anos 1930, até a chegada de 1944. Ele nasceu em 1935, no Brooklyn; o alter ego que criou em A Era do Rádio, o pequeno Joe (interpretado magnificamente por um garoto chamado Seth Green) nasceu em Rockaway, e estava com uns sete anos quando a narrativa começa, por volta de 1939. São portanto bem contemporâneos, Woody Allen e seu alter ego aqui.
Por algum motivo que desconheço, no entanto, ele não situou a ação no seu Brooklyn natal, e sim numa cidadezinha fictícia chamada Rockaway, que, no entanto, se parece bastante com o Brooklyn: fica perto do rio/mar, e não muito longe do coração de Nova York, Manhattan. (Existe uma Rockaway, mas fica no interior de New Jersey.)
Mas a geografia que se dane. O fato é que, em seu filme de recordações da infância, ele descreve momentos da vida de uma família imensa, cheia de tipos engraçados, que se reunia em torno do rádio, e alterna esses momentos com histórias do mundo do rádio, dos artistas do rádio.
São dois universos completamente diferentes, próximos na geografia mas a anos-luz de distância um do outro – a família classe média média, sem passar por graves privações materiais mas também sem dinheiro sobrando para qualquer pequeno luxo, umas dez pessoas dividindo a mesma casa, e, do outro lado do rio, em Manhattan, os artistas do rádio, frequentando belos clubes noturnos, belos restaurantes, em trajes elegantes, muito black-tie, muito vestido de noite.
Em parte, é uma repetição dos dois mundos absolutamente distantes um do outro que Allen havia mostrado em A Rosa Púrpura do Cairo, com a diferença de que, neste último, a distância era ainda maior: de um lado, a Cecilia muito pobre, numa Nova Jersey assolada pela Grande Depressão, e, de outro, o universo irreal, fantasioso, dos filmes sobre os milionários sempre em férias, em ambientes festivos, chiques, dos filmes em que Cecilia (assim como milhões de americanos na vida real) tentava escapar da sua dura realidade.
Não é propriamente uma história – é um ajuntamento de episódios
Mais talvez do que qualquer outro filme de Woody Allen, este aqui, em vez de contar propriamente uma história, uma trama, é um ajuntamento de episódios. São bem costurados, muito bem costurados – e, afinal, todos giram em torno daquela família alegremente disfuncional e de sua diversão favorita e quase única, os programas de rádio.
Os diversos tipos da família são todos bem construídos – o pai que sonha em ser um empreendedor mas sempre fracassa, a mãe que gostaria de ter se casado com um milionário, a tia casada com um tipo divertidíssimo, a tia solteira sempre à procura do Homem Certo, a prima que se diverte ouvindo as conversas telefônicas dos vizinhos e imita Carmen Miranda. Mas, mais do que propriamente uma história, uma trama, trata-se de episódios, quase esquetes – hilariantes, todos, brilhantes, rápidos, certeiros, fulminantes, a começar pelo da abertura.
A abertura: a voz em off de Woody Allen conta o episódio da casa dos vizinhos assaltada. Era uma noite em que os Needleman haviam saído para ir ao cinema. Dois ladrões invadiram a casa. Na tela quase toda negra, o espectador só vê a pequena luz das lanternas dos ladrões. Toca o telefone, os ladrões – desastrados, chaplinianos, allenianos, como todos os ladrões dos filmes do cineasta – não sabem o que fazer, acabam atendendo. Do outro lado da linha, um locutor de programa de rádio ao vivo diz ao sr. Needleman que ele foi escolhido ao acaso para participar. Deverá dizer qual é a música que será apresentada pela orquestra – e agora o espectador vê o auditório da rádio, que transmite o programa ao vivo. A orquestra começa a tocar. O ladrão que está ao telefone pede para o outro achar um rádio, ligar o rádio. O locutor pergunta qual é o nome da música, o ladrão – o falso sr. Needleman – acerta. Mais uma, e novo acerto. Uma terceira música – e os ladrões acertam de novo.
Corta, e a voz em off de Woody Allen diz que, quando os Needleman voltaram para casa, deram pela falta de uns poucos dólares e um ou outro pertence, mas no dia seguinte chegou à casa deles um caminhão cheio de prêmios, presente dos patrocinadores do programa de rádio.
Brilho, brilho puro.
Um filme com atores pouco conhecidos e sem um ou dois protagonistas principais
Duas das características fascinantes do filme são o número mínimo de grandes astros no elenco – e também a ausência de protagonistas na história. São umas dez pessoas na família do pequeno Joe, mais uma meia dúzia ou pouco mais de personagens do mundo do rádio, e todos têm mais ou menos a mesma importância na história. A trama não se centra em um ou outro. Claro, há o pequeno Joe e a família – mas a família é imensa, e então não há uma preponderância de um ou dois ou três personagens, todos aparecem juntos, todos têm a mesma importância.
Sendo um filme de Woody Allen, todo o elenco está, claro, perfeito, brilhante. A mãe é interpretada por Julie Kavner; o pai, por Michael Tucker; a tia Ceil, por Renee Lippin; o tio Abe, por Josh Mostel; a prima Ruthie, por Joy Newman; do lado dos artistas de rádio, há Irene (Julie Kurnitz), Roger (David Warrilow), o Vingador Mascarado (Wallace Shawn), o mestre de cerimônias de “Silver Dollar” (Tony Roberts). Diversos desses atores trabalharam em outros filmes de Allen, mas nenhum é propriamente um astro.
Jeff Daniels, que havia sido o protagonista masculino de A Rosa Púrpura do Cairo, faz uma pontinha como um dos sujeitos que saem com a tia Bea. Danny Aiello, que em A Rosa Púrpura havia sido o marido de Cecília/Mia Farrow, faz também um papel bem pequeno como Rocco, o bandido armado.
Os nomes mais conhecidos do elenco são a sempre ótima Dianne Wiest, como a tia Bea, e Mia Farrow, como Sally White.
O cineasta escracha demais o personagem que criou para sua mulher
O papel que Allen criou para ser interpretado por sua mulher é delicioso, maravilhoso – mas, olha, era preciso que Mia Farrow tivesse muita coragem, porque é um personagem que beira o ridículo. O autor escracha, mas escracha muito o personagem que fez para sua esposa.
Sally White trabalhava numa das grandes casas noturnas de Manhattan dos anos 1940, do tipo Marocco ou Copacabana, frequentada por artistas de cinema e de rádio, escritores famosos, milionários anônimos. Era vendedora de cigarros – aquelas que usavam saias curtas e carregavam à sua frente um grande tabuleiro com cigarros e charutos. Sonhava em ser estrela. O astro do rádio Roger, do programa Café da Manhã com Roger e Irene, um senhor já de alguma idade, comia Sally mediante a promessa de apresentá-la a gente importante, produtores. A seqüência em que os dois sobem para o terraço do prédio do restaurante-boate para dar uma rapidinha é hilariante – o velho fauno tentando pegar na bunda de Sally, mas tendo entre ele e o corpo do moçoila aquele trombolho do tabuleiro de cigarros.
Mia Farrow, é preciso reconhecer, é uma senhora atriz, seja na comédia, seja no drama. Mas, além de senhora atriz, é uma atriz de coragem para se sujeitar a fazer esse tipo grotesco, tadinha da Sally White – que, além de tudo, tem uma voz horrorosa de taquara rachada, com a qual pretende trabalhar no rádio.
Uma das muitas demonstrações do talento de Mia Farrow é a forma como ela trata sua voz, da taquara mais rachada possível e imaginável até a voz educada, empolada, que adquire após intensos exercícios de dicção.
Vozes empostadas, empoladas – e músicas belíssimas
Os sons de A Era do Rádio são outra característica maravilhosa desta obra-prima. Locutores, rádio-atores, todas as pessoas que falavam diante dos microfones das emissoras de rádio tinham aquelas vozes empoladas, cheias, absolutamente típicas. Quem tem mais de 50 anos seguramente ouviu muito vozes como essas no rádio, e também no início da TV – vozes empoladas de locutores de rádio, como os da Eldorado de São Paulo até ali pelos anos 80.
(Era hilariante, quase tanto quanto as piadas de A Era do Rádio, ouvir os locutores da Eldorado, com aquelas vozes empostadas dos anos 40, mas falando já no início dos 80, anunciando, com toda a cerimônia do mundo: “Ouvimos ‘Besta é Tu’, com os Novos Baianos”.)
Se as vozes são maravilhosas de se ouvir, não menos maravilhoso é ouvir as músicas daquela época. Woody Allen sempre soube escolher muitíssimo bem as músicas incidentais de seus filmes, mas em A Era do Rádio, especialmente, é uma pérola da Grande Música Americana atrás da outra, sem parar. “Begin the Beguine”, “All or Nothing at All”, “That Old Feeling”, “I’m Gettin’ Sentimental Over You”, “Lullaby of Broadway”, “Take the ‘A’ Train”, “You’ll Never Know”, “Just One of Those Things”, “Night and Day”…
Tommy Dorsey, Glenn Miller, Benny Goodman, Duke Ellington Bing Crosby… O crème de la crème.
E mais as “latinas”, que nos anos 40 faziam tremendo sucesso nos Estados Unidos, ou, no mínimo, em Nova York: “Babalu”, “Frenesi”, “Tico Tico no Fubá”, “South American Way”…
O Brasil está muito presente em A Era do Rádio
Acho que o Brasil nunca esteve tão presente num filme de Woody Allen quanto em A Era do Rádio.
A priminha do menino Joe dança ao som de “South American Way”, na voz marcante de Carmen Miranda. Apresenta-se a música inteira – e o pai e o tio de Joe entram no quarto para observar a garota dançando e fazem o coro quando o coro que acompanhava Carmen Miranda entra no estribilho. É uma total delícia.
Para cantar “Tico-Tico no Fubá”, Woody Allen, ou sua eterna diretora de elenco Julie Taylor, escolheu Denise Dumont. Denise Dumont é uma artista e pessoa fascinante; bem recentemente, lançou um livro e um filme (O Homem que Engarrafava Nuvens) sobre o pai, o grande letrista Humberto Teixeira. Não sei o que ela achou da experiência, mas, para qualquer atriz, trabalhar num filme de Woody Allen é uma glória absoluta. Está linda, e ótima, Denise Dumont.
Mas, de tudo que este filme espetacular tem, o melhor de tudo, na minha opinião, é a homenagem que Woody Allen presta – bem no meio de sua fase Mia Farrow – à sua mulher e musa anterior.
Diane Keaton canta na noite de ano novo de 1943 para 1944.
A beleza de Diane Keaton, seu talento, sua presença, sua pessoa soltam faíscas na tela.
Nelson Motta escreveu que dor de amor quando não passa é porque o amor valeu. Eu diria que quando não passam nunca a admiração, o respeito pelo amor que passou, é porque a vida valeu.
Ver Diane Keaton cantar em A Era do Rádio é belíssimo. É emocionante. É de chorar de alegria. É dessas coisas que fazem a vida valer a pena.
A Era do Rádio/Radio Days
De Woody Allen, EUA, 1987
Com Seth Green (Little Joe), Julie Kavner (a mãe), Michael Tucker (o pai), Dianne Wiest (tia Bea), Josh Mostel (tio Abe), Renee Lippin (tia Ceil), William Magerman (o avô), Leah Carrey (a avó), Joy Newman (Ruthie),
E, no mundo do rádio, Mia Farrow (Sally White), Julie Kurnitz (Irene), David Warrilow (Roger), Wallace Shawn (Vingador Mascarado), Jeff Daniels (Biff Baxter), Danny Aiello (Rocco), Tony Roberts (mestre de cerimônias do programa “Silver Dollar”), Diane Keaton (cantora), Denise Dummont (cantor sul-americana). E a voz de Woody Allen (narrador)
Argumento e roteiro Woody Allen
Fotografia Carlo Di Palma
Direção musical Dick Hyman
Montagem Susan E. Morse
Produção Robert Greenhut, Orion Pictures
Cor, 85 min
R, ****
“O único defeito de A Era do Rádio é que seus 85 minutos passam depressa demais”…eu nem precisava ler o resto do post, já assinava só pela frase introdutória com a qual concordo de fio a pavio. Mas li. Li tudo. E gostei. Um daqueles posts pra ficar na Barra de Favoritos.
adoro esse filme e principalmente as músicas, mas estou procurando o nome da música que toca quando os meninos vão para a praia
Sérgio, dos muitos que tenho lido, este é sem dúvida um dos seus melhores textos. Adorei sua análise sobre a obra do Woody Allen comparando com filmes de outros diretores. Não sabia sobre o que vc comentou em relação a Mia Farrow, suas neuroses e a questão com a filha de criação (de uma outra relação anterior).
Fiquei morrendo de vontade de assitir o filme novamente!
Abç