Memórias / Stardust Memories


Nota: ★★★½

Anotação em 2008: Este é o 8 ½ de Woody Allen. Woody Allen é assim: ele se inspira nas grandes obras que admira e cria seus filmes personalíssimos a partir delas.

Para lembrar:

Woody Allen fez seu Guerra e Paz, de Liev Tostói, em A Última Noite de Bóris Grushenko/Love and Death, de 1975;

Fez seu Amarcord, de Federico Fellini, em A Era do Rádio/Radio Days, de 1987;

Fez seu Crime e Castigo, de Fiodor Dostoiévski, em Crimes e Pecados/Crimes and Misdemeanours, de 1989;

Fez seu Morangos Silvestres/Smultronstället, de Ingmar Bergman, em Desconstruindo Harry/Desconstructing Harry, de 1997.

E aqui ele fez seu 8 ½. Mas, como ele é Woody Allen, botou também umas boas pitadas de Ingmar Bergman na sua homenagem a Federico Fellini.

Como o personagem Guido Anselmi do filme de Fellini interpretado por Marcello Mastroianni de 1963, aqui temos Sandy Bates (o papel do próprio Allen), um cineasta aclamado mas vivendo sérios conflitos pessoais, em crise artística tanto quanto em crise existencial, que está tendo problemas para fazer seu mais recente filme. Como Guido, Sandy a toda hora se vê diante de lembranças do passado, memórias que o perseguem como fantasmas, em especial memórias das belas mulheres que passaram por sua vida. Guido teve Claudia Cardinale, Anouk Aimée, Sandra Milo – duas italianas nascidas na Tunísia, uma francesa. Sandy, misturando passado e presente, teve Charlotte Rampling, Jessica Harper, Marie-Christine Barrault – uma inglesa, uma americana, uma francesa.

Os dois filmes são em preto-e-branco – e, credo, como é maravilhoso um filme em preto-e-branco! A narrativa dos dois filmes mistura sem parar, incessantemente, passado e presente, realidade e sonho, imaginação, memória.

Como seguramente em nenhum outro filme, neste aqui Woody Allen botou sua diretora de casting, de escolha de elenco, Juliet Taylor (que está presente em algo como 9 de cada 10 filmes do cineasta, se não em 10 de todos os 10), para procurar, encontrar e convocar dezenas e dezenas e dezenas de pessoas de rostos e corpos diferentes, insólitos, estranhos, esquisitos – uma especialidade dos diretores de casting de Fellini, tanto que felliniano virou um adjetivo bem comum para designarmos pessoas fora do padrão.

Memórias/Stardust Memories abre com uma seqüência que é, ao mesmo tempo, bergmaniana e felliniana: Woody Allen está dentro de um vagão de trem; olha em volta de si e vê seus companheiros de viagem – uma dezena ou mais de rostos estranhos, esquisitos, todos muito sérios, deprimidos, como se estivessem mergulhados numa imensa angústia.  É Bergman na estética, na fotografia, no enquadramento, na simbologia de uma viagem que não sabemos de onde para onde, talvez para a morte, o inferno. É Fellini nos rostos estranhos, únicos, feios.

Desalentado, sem compreender o que se passa, Woody Allen olha para fora do trem em que está. Lá fora há outro trem – só que lá todas as pessoas estão alegres, felizes, bem vestidas, como se estivessem se divertindo demais numa festa porreta. Uma mulher lindíssima olha para ele, manda um beijo para ele. Ele chama o condutor, mostra sua passagem, faz sinal de que quer trocar de trem. Não é atendido, o trem parte. O condutor continua impassível, cara seriíssima. Ele tenta sair do trem, tenta abrir as portas, tenta arrebentar a janela – em vão.

Nos créditos finais, no quadro de personagens, quem interpreta quem, lá no fim da imensa lista, veremos o seguinte: Bela mulher no trem – Sharon Stone. Sharon Stone! Eu não tinha reconhecido, Mary também não. Não é para menos – a cena da mulher mandando beijo dura poucos segundos.

O iMDB registra, na filmografia de La Stone: foi a primeira aparição dela no cinema. Pretty girl on train. Um ano depois, em 1981, ela apareceria, também numa ponta, em Retratos da Vida/Les Uns et Les Autres, de Lelouch. Levaria ainda 11 anos para, em 1992,  cruzar as pernas sem calcinha diante de um bando de policiais boquiabertos em Instinto Selvagem/Basic Instinct e virar estrela.

Bem, voltando a Memórias. Temos então que aquelas cenas que vimos na abertura do filme, bergmanianas, fellinianas, são as cenas com as quais o diretor Sandy Bates quer encerrar seu novo filme. Vemos isso numa seqüência que vem logo depois da do trem, em que diversas pessoas assistem exatamente às cenas do trem; é uma sala de projeção de um estúdio, uma empresa. As frases se sucedem: “Achei péssimo”. “Não me lembro de ter visto nada tão ruim.” “O cara é doente. O que é isso?” “Era para ser uma comédia.” “O cara perdeu a cabeça.” “Tem algo errado com ele.” “Está desequilibrado.” “Ele deixou de ser engraçado.” (Bem mais tarde, uma dessas pessoas dirá: “Realidade demais não é o que as pessoas querem”.)

Alguém tem uma sugestão: “Podemos tirar o filme dele. Podemos refilmar, reeditar. Talvez dê para salvar algo”.

Uma mulher, com o jargão dos críticos de cinema: “Ele é pretensioso. O estilo dele é afetado demais. Os insights dele são rasos, são mórbidos. Já vi isso antes. Eles tentam documentar o seu próprio sofrimento para vender como arte”.

O próprio Sandy Bates vai explicar em seguida, para seus colaboradores e para o espectador: cansou-se de fazer comédias, quer fazer filmes sérios. Com todos os problemas que existem no mundo, ele simplesmente não suportaria mais fazer comédias.

E aí Sandy embarca, com suas memórias, seus fantasmas, suas crises, para uma cidadezinha à beira-mar, onde, durante um fim de semana, vão exibir uma retrospectiva de seus filmes. O que se verá em seguida é uma maravilha de filme sobre cinema, arte, amor, lembranças, angústias – tudo com o humor corrosivo, inteligente, gostoso de Woody Allen.

Botando no lugar no tempo: Memórias é de 1980. Em 1979, ele havia feito Manhattan, que, junto com Annie Hall, de 1977, tinha sido seu filme mais brilhante, mais bem acabado. (Acho que Manhattan e Annie Hall continuam sendo até hoje dois de seus melhores filmes, dois dos melhores filmes americanos de todos os tempos.) Entre um e outro, em 1978, ele havia feito Interiores, seu primeiro filme sério, sem uma única piada.

Entre 1969 e 2008, período em que praticamente fez um filme por ano, Woody Allen fez apenas quatro filmes absolutamente sérios. Além de Interiores, houve Setembro, de 1987, A Outra, de 1988, e Match Point, de 2005. Até em Crimes e Pecados, sua versão pessoal do Crime e Castigo de Doistoéviski, havia momentos de humor.

Um parênteses: depois de ver Annie Hall, em 1977, o ano que precedeu Interiores, portanto, François Truffaut escreveu o seguinte, na revista Periscope: “Podemos supor que Woody Allen, antes de cinco anos, dirigirá um filme apenas dramático no qual eventualmente não representará”. Incrível! Truffaut profetizou que Woody Allen faria Interiores!

Bem. Manhattan havia sido o último filme dele com Diane Keaton. Coincidiu com o fim da união dos dois. (Ela voltaria em apenas uma única seqüência em A Era do Rádio/Radio Days, de 1987, numa das mais belas homenagens já prestadas por um artista a uma ex-amante.) O filme seguinte a este Memórias, Sonhos Eróticos de uma Noite de Verão/Midssumer Night’s Sex Comedy, de 1982, já teria Mia Farrow.

Acho que esses dois fatos – o de ter sido criticado por ter feito um filme “sério”, e o de estar no hiato entre Diane Keaton e Mia Farrow na sua vida pessoal – explicam muito, e bem, a existência de Memórias.

Boa parte de Dorrie, a personagem de Charlotte Rampling, o amor importante do passado, deve seguramente ser Diane Keaton.

E, aliás, como está bela Charlotte Rampling. Quando a gente vê sempre filmes de um ator ou atriz, vai acompanhando o envelhecimento dele, se acostumando com o rosto como está agora – como acontece com as pessoas que a gente conhece mesmo, a mulher da gente, a filha, os amigos. Charlotte Rampling é uma bela mulher hoje, sem dúvida alguma; é das que sabem envelhecer com classe, dignidade, muito mais classe e dignidade que bisturi. Mas rever agora o rosto dela quando estava com apenas 34 anos é um choque maravilhoso.

Muito bem. Lá no começo desta anotação, eu disse que Woody Allen se inspira nas grandes obras que admira e cria seus filmes personalíssimos a partir delas. Lá pelas tantas, neste filme aqui, uma pessoa da platéia pergunta se tal e tal cena de um filme de Sandy Bates foi uma homenagem a um determinado filme de horror com Vincent Price. A resposta:

“Homenagem? Não exatamente. Nós apenas roubamos a idéia e pronto.”

Para encerrar, gostaria de anotar sobre a coisa da sorte. Quando eu vi Celebridades/Celebrity, em 2000, fiquei absolutamente encantado com uma frase brilhante que Woody Allen diz na boca da personagem de Judy Davis: “Os livros de auto-ajuda e os analistas que me desculpem, mas para achar o amor é preciso de sorte”.

Neste Memórias, ele já falava sobre essa coisa da sorte, através de Sandy Bates, ou seja, ele mesmo. Ao responder a uma pergunta de um espectador, num debate após a apresentação de um filme seu, sobre se um sério relacionamento afetivo se baseia em concessões mútuas, perfeição ou maturidade, Sandy Bates/Woody Allen responde que não é nada disso:

“Na verdade, se baseia na sorte. É, essa é a chave de tudo. As pessoas não gostam de admitir isso, porque significa perda do controle, mas a verdade é que você precisa de sorte.”

Grande, maravilhoso Woody Allen.

Memórias/Stardust Memories

De Woody Allen, EUA, 1980

Com Woody Allen, Charlotte Rampling, Jessica Harper, Marie-Christine Barrault, Tony Roberts e, numa rapidíssima ponta, Sharon Stone

Argumento e roteiro Woody Allen

Produção United Artists.

P&B, 91 min

***1/2

8 Comentários para “Memórias / Stardust Memories”

  1. Vim parar nesse texto por causa da Charlotte Rampling, que participou da última temporada de Dexter (que terminou domingo passado, de forma decadente, diga-se de passagem). Apesar de não gostar da personagem dela, fui atrás da ficha para ver quais filmes ela tinha feito e acabei vendo umas fotos de quando ela era jovem (juventude conturbada, cheia de fatos surpreendentes). Que bonita ela era! (e pobres daqueles que não cultivam algo além da beleza, do físico, da matéria).
    Então vim procurar no site pra saber se eu já tinha visto algum filme com ela dos citados aqui. Mas decidi comentar nesse texto de um que não vi, porque enquanto acompanhava a série notei que ela fez poucas e discretas intervenções plásticas, pois aparenta a idade que tem, com todas as rugas trazidas pelo passar dos anos. E isso já me fez admirá-la. E você coincidentemente fala brilhantemente sobre esse tema num parágrafo, do qual destaco essa parte:

    “Charlotte Rampling é uma bela mulher hoje, sem dúvida alguma; é das que sabem envelhecer com classe, dignidade, muito mais classe e dignidade que bisturi.”
    Dignidade essa que faz falta a muitas atrizes hoje, mulheres que com 30 ou 40 anos já estão com o rosto cheio de botox e repuxamentos.

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