Nota:
Anotação em 2010: Short Cuts é um grande filme. Isso posto, é preciso dizer que a) é também um dos filmes que consegue reunir a maior quantidade de personagens chatos, desagradáveis, repulsivos; e b) é longo demais.
A idéia básica, a trama, a forma como Robert Altman, um dos maiores cineastas de todos os tempos, e o co-roteirista Frank Barhydt construíram a história, a partir de contos de Raymond Carver, tudo é brilhante. É muito provavelmente o melhor exemplo da estrutura de mosaico, ou multiplot, que existe – são mais de uma dúzia de personagens, cujas vidas se entrelaçam aqui e ali. A partir de Short Cuts, vieram diversos filmes usando essa estrutura, esse tipo de narrativa.
Sem fazer pesquisa, só de cabeça, já daria para lembrar diversos exemplos: Território Restrito/Crossing Over, de 2009; Anjo de Vidro/Noel, de 2004; Banquete de Amor/Feast of Love, de 2007; Coisas Que Você Pode Dizer Só de Olhar Para Ela/Things You Can Tell Just by Looking at Her, de 2000; Questão de Vida/Nine Lives, de 2005; o brasileiro O Signo da Cidade, de 2007, Crash, de 2004.
Não que Altman tenha inventado essa estrutura de mosaico. Mestre Alain Resnais sempre gostou dela – A Vida é um Romance/La Vie est un Roman, de 1983, já era assim, e ele voltaria a usá-la em On Connait la Chanson, de 1997, e Medos Privados em Lugares Públicos/Coeurs, de 2006. Retratos da Vida/Les Uns et les Autres, o belíssimo filme de Lelouch de 1981, junta mosaicos ao longo de quase um século.
Mas Altman é um especialista em mosaicos, como já demonstrava em Nashville, de 1975 – e de alguma maneira também em Cerimônia de Casamento/A Wedding, de 1978, O Jogador/The Player, de 1992, Kansas City, de 1995, A Fortuna de Cookie/Cookie’s Fortune, de 1999, e Dr. T e as Mulheres/Dr. T and the Women, de 2000. Mesmo quando os diversos personagens se conectam com um principal, ele sempre usou um grande número de figuras em seus filmes. Diversos outros filmes seus são assim, como alguns dos últimos que fez, como Assassinato em Gosford Park, de 2001, e A Última Noite/A Prairie Home Companion, de 2006.
Claro, ele não inventou esse tipo de estrutura narrativa, a tal da estrutura multiplot, mas é um mestre nela, é o grande mestre. E a verdade é que Short Cuts foi um filme marcante, que seguramente foi o responsável pela enxurrada de outros assim que vieram depois dele, vários feitos pelo cinema independente americano.
E, para interpretar aqueles personagens todos que vivem em Los Angeles e acabam se cruzando uns com os outros por algum motivo, ele juntou um elenco admirável, fascinante: Andie MacDowell, Jack Lemmon, Julianne Moore, Matthew Modine, Anne Archer, Fred Ward, Jennifer Jason Leigh, Chris Penn, Lili Taylor, Robert Downey Jr., Madeleine Stowe, Tim Robbins, Lily Tomlin, Tom Waits, Frances McDormand. Peter Gallagher, Lyle Lovett, Buck Henry, Huey Lewis… Cacilda, é gente demais, gente boa demais, das mais diferentes faixas etárias, e todo mundo trabalhando estupendamente bem – Altman é um genial diretor de atores. Altman é genial. (E vejo que há poucos filmes dele sobre os quais já escrevi. Preciso rever mais filmes de Altman pra botar aqui.)
Uma disputa para ver quem consegue errar mais na vida
Agora, os personagens…
Meu Deus do céu e também da terra, que bando de gente chata, desagradável, insuportável, doente, triste, todos disputando para ver quem fez mais bem feita a opção preferencial pela vida de merda. Credo em cruz. Com dez minutos de filme, pensei seriamente em desistir de rever o resto – mas fui em frente, é claro, porque, se os personagens são chatos, o filme é uma maravilha. A forma com que Altman vai cruzando os destinos daquelas pobres pessoas é brilho puro.
Só tinha visto o filme uma vez, quando ele foi lançado – e, quando comentei com Mary que tinha revisto, ela se lembrou que saímos do cinema, na época, falando as duas certezas que o filme deixa, duas coisas adversativas: beleza de filme, mas que personagens insuportáveis. Personagens insuportáveis, mas porém todavia contudo que beleza de filme.
Na revisão, me pegou muito o tamanho: 187 minutos. Mais de três horas. Tá certo que é uma beleza de filme – mas três horas vendo personagens insuportáveis…
Cacilda, tem muita gente insuportável no mundo – mas o mundo não é composto apenas, tão somente de gente insuportável.
Conjunto de atores levou dois grandes prêmios
Vou atrás de fatos e de outras opiniões.
O filme teve 13 prêmios e quatro indicações, uma delas ao Oscar de melhor direção. Levou – merecidissimamente, acho, mesmo sem saber os demais concorrentes – o Globo de Ouro pelo conjunto do elenco. Em Veneza, levou o mesmo prêmio pelo conjunto dos atores, e também o Leão de Ouro, empatado com A Liberdade é Azul/Trois Couleurs: Bleu, o terceiro da trilogia de Kieslowski das cores da bandeira francesa.
Raymond Carver (1938-1988), o autor das histórias em que Altman e Frank Barhydt se basearam para fazer o extraordinário roteiro, é tido como um dos grandes escritores americanos do século XX, uma grande força na revitalização do gênero conto. Além de contos, escreveu também ensaios e poemas.
Uma das dezenas de histórias de Short Cuts – a pescaria dos três amigos, um deles interpretado por Fred Ward, durante a qual eles encontram o corpo de uma mulher morta no rio – viraria um longa-metragem australiano, Jindabayne, dirigido por Ray Lawrence em 2006, com Gabriel Byrne e Laura Linney, que volta e meia passa nos canais a cabo. O conto original se chama “So Much Water So Close to Home”.
Dois dos personagens do filme são invenção de Altman e do co-roteirista Frank Barhydt – não há nada relacionado a eles nas histórias criadas por Raymond Carver. São a cantora da noite Tess Trainer, interpretada por Annie Ross, e sua filha Zoe, uma jovem e linda violoncelista erudita (Lori Singer) fascinada com a morte. (Na ficha técnica, abaixo, separei os atores pelos grupos dos personagens.)
“Uma fascinação pela natureza acidental da vida”
Leonard Maltin, o autor dos guias de filmes mais vendidos do mundo, não gostou de Short Cuts; deu 2 estrelas em 4. “Mordaz mosaico de vidas desagradáveis, infelizes, no Sul da Califórnia, adaptado dos contos de Raymond Carver. Altman pinta outro gigantesco afresco, com uma série de vinhetas marginalmente interconectadas sobre vários casais, parentes, amantes e amigos (de uma atendente de serviço de sexo por telefone que alimenta seu bebê enquanto trabalha até uma palhaça que anima festas infantis e é tomada por melancolia)… interperetados por um virtual quem-é-quem no talento contemporâneo. Como um feito – um trabalho de direção – é algo para se admirar, mas como entretenimento é menos compensador.”
Ué – tá bem perto do que eu acho. Beleza de filme – mas eta personagens insuportáveis.
Já Roger Ebert babou com o filme. Deu 4 estrelas, a maior cotação, e escreveu trocentas linhas de elogios. “O filme é baseado em contos de Raymond Carver, mas é uma obra de Altman, e não de Carver, e tudo o que o filme de fato tem em comum com sua fonte é um sentimento por pessoas que são desconectadas – dos parentes, da igreja, da tradição – e ganham a vida em trabalhos que nunca parecem muito reais. É um trabalho duro, sem dúvida, ser um limpador de piscinas, um motorista, uma atendente de sexo por telefone, um decorador de bolos de aniversário, uma cantora de jazz, um piloto de helicóptero, mas essas são profissões que acham você antes que você as ache. Quantas pessoas acabam em trabalhos que elas planejaram conquistar? Altman é fascinado pela natureza acidental da vida, pela forma com que décadas inteiras de nossas vidas podem ser definidas por acontecimentos que não compreendemos ou nem sabemos quais são.”
Sempre digo que Roger Ebert é um crítico que ama os filmes que vê – enquanto a maioria dos críticos parece detestar sua profissão, odiar a obrigação de ver filmes. Dá prazer ler os textos de Ebert, em especial quando ele elogia os filmes. O final de seu longo texto sobre Short Cuts é um brilho:
“Altman já fez esse tipo de filme antes, notavelmente em Nashville (1975) e The Player (1992). Ele não gosta de histórias que fingem que os personagens controlam seus destinos, e suas ações vão produzir frutos satisfatórios. Ele gosta da confusão e das coincidências da vida real, onde você pode fazer o melhor que consegue, e em alguns dias isso não será o suficiente. Ele não reproduz as histórias de Raymond Carver – reproduz mais sua atitude.”
“Num conto de Carver (e você deveria ler um, se nunca o fez), existe tipicamente um momento em que uma afirmação comum se transforma em crucial, ou poética, ou triste. (…) Algumas vezes as pessoas vêem com clareza que elas são livres para tomar decisões, que ninguém está condenado a repetir os mesmos erros.”
“Carver morreu aos 50 anos, de um tumor no cérebro. Ele acreditava que morreria aos 40, de alcoolismo, se não conseguisse parar de beber. Quando ficou sabendo que o câncer o mataria, escreveu um poema sobre o bônus de dez anos, chamado ‘Gravy’ (uma tradução aproximada seria ‘no lucro’). Altman, que passou a maior parte dos anos 1980 numa espécie de exílio depois que Hollywood o rotulou de não comercial, continuou a fazer filmes, mas eles não tiveram os orçamentos ou a distribuição que as obras de um grande cineasta deveriam ter. Mas então houve a volta por cima de The Player, e agora eis aí Short Cuts. No lucro.”
Beleza de texto.
Personagens insuportáveis – mas beleza de filme.
Short Cuts – Cenas da Vida/Short Cuts
De Robert Altman, EUA, 1993
Com Andie MacDowell (Ann Finnigan), Bruce Davison (Howard Finnigan), Jack Lemmon (Paul Finnigan),
Julianne Moore (Marian Wyman), Matthew Modine (Dr. Ralph Wyman),
Anne Archer (Claire Kane), Fred Ward (Stuart Kane),
Jennifer Jason Leigh (Lois Kaiser), Chris Penn (Jerry Kaiser), Lili Taylor (Honey Bush), Robert Downey Jr.(Bill Bush),
Madeleine Stowe (Sherri Shepard), Tim Robbins (Gene Shepard),
Lily Tomlin (Doreen Piggot), Tom Waits (Earl Piggot),
Frances McDormand (Betty Weathers), Peter Gallagher (Stormy Weathers), Jarrett Lennon (Chad Weathers),
Annie Ross (Tess Trainer), Lori Singer (Zoe Trainer),
Lyle Lovett (Andy Bitkower), Buck Henry (Gordon Johnson), Huey Lewis (Vern Miller)
Roteiro Robert Altman e Frank Barhydt
Baseado em textos de Raymond Carver
Fotografia Walt Lloyd
Música Mark Isham
Canções interpretadas por Annie Ross
Produção Avenue Pictures Productions, Fine Line Features
Cor, 187 min
R, ***1/2
O problema é que o filme não tem final. É sensacional, mas ele simplesmente acaba sem fechar nada.