Pronto para Recomeçar / Everything Must Go

Nota: ★★★☆

Pronto para Recomeçar, no original Everything Must Go, produção de orçamento baixo do cinema independente americano, é um filme duro, amargo, inquietante, perturbador. Trata de alcoolismo, mas não só; vai fundo no exame da escala de valores das pessoas, da sociedade.

Convenhamos: não é pouca coisa.

O protagonista da história é Nick Halsey (numa bela interpretação de Will Ferrell, esse ator mais conhecido por seus trabalhos em comédias), um sujeito aí de uns 40 e tantos anos que conseguiu “vencer na vida” – para usar uma expressão que tem grande importância na sociedade capitalista.

Por “vencer na vida”, entenda-se que Nick trabalhou duro – tem um grande talento para vendas, e chegou a vice-presidente regional de uma corporação muito grande –, ganhou bastante dinheiro, pôde comprar uma bela casa com uma grande piscina em um bom subúrbio de uma cidade do Arizona, e enchê-la de coisas, além de ter podido fazer várias viagens ao exterior com a mulher, Catherine – inclusive duas ao Japão. Sua mulher apaixonou-se por coisas do Japão, e acabou transformando a bela piscina em um grande aquário para carpas coloridas, vistosas. O casal perdeu a piscina, mas ganhou um grande aquário com carpas – provavelmente a única piscina-aquário de carpas coloridas de todo o Estado do Arizona.

Encheram, ele e Catherine, a casa de coisas. Things, stuff. Coisas, bens materiais. Algumas preciosidades, como uma bola de beisebol com os autógrafos de todo o time dos Yankees, que vale uma fortuna.

Uma bela casa, cheia de coisas. Não é isso que, para tanta gente, significa vencer na vida?

A ficha de Nick na empresa tem graves problemas, por causa do alcoolismo

A descida de Nick Halsey do alto do sonho americano para o inferno é fulminante.

Depois de 16 anos de trabalho na grande corporação, com uma coleção de bons números de vendas, Nick é demitido, para sua total, absoluta surpresa. Mas a empresa, generosa, permite que ele use o carro corporativo até o final do mês, e, em reconhecimento por seus bons serviços prestados, o presenteia com mais uma coisa, mais um bem material: um canivete tipo suíço, com seu nome gravado.

Antes de deixar o estacionamento da firma com o carrão que em breve terá que devolver, Nick enfia uma das muitas lâminas do canivete com seu nome gravado num pneu do Mustang do sujeito do RH que o comunicou sobre a demissão. Um tanto atarantado, não consegue sequer tirar do pneu a prova do crime.

Passa num mercado, compra algumas dúzias de cerveja. Ao entrar no carro com a compra, quase apanha de dois garotões grandões desocupados que resolvem tirar sarro da cara dele.

Não há um tipo de demissão, desemprego, menos grave do que outro: qualquer situação de demissão e desemprego é humilhante, apavorante, é a sensação de que falta chão embaixo de nossos pés. Mas é preciso dizer que Nick não foi demitido por causa da crise econômica, ou porque ficou mais velho, ou seu salário ficou alto demais em comparação aos de outros funcionários. Conforme o camarada do RH recita para ele, a ficha de Nick na companhia registra um mês de afastamento em 1998 para tratamento de alcoolismo; mais um mês em 2000; uma acusação de agressão em 2001; um flagrante por dirigir embriagado em 2003; e, em 2005, uma batida que destruiu um carro da firma. E agora mesmo, poucos dias atrás, um outro caso de embriaguez em Denver, Colorado.

Com seis minutos de filme, Nick já perdeu o emprego, a mulher e a casa

Nick vai para sua bela casa no bom subúrbio bebendo uma lata de cerveja atrás da outra – para deparar com todas as suas coisas espalhadas no jardim diante da casa. Catherine tinha deixado um bilhete dizendo que se mandava. Todas as fechaduras haviam sido trocadas – ele não conseguiria entrar em casa. E suas coisas estavam lá, diante do passeio, à vista dos vizinhos, de quem quer que passasse pela rua. A bela poltrona de couro reclinável. Todas as suas roupas, sapatos, meias. Os discos, alguns livros, revistas. A bola de beisebol com autógrafos de todos os jogadores do Yankees. Grelha elétrica para churrasco, geladeira. Troféus dos tempos da faculdade. O livro do ano da High School.

As coisas, os bens materiais comprados e juntados ao longo da vida. Tudo o que, dentro de casa, dá uma sensação de conforto – e que, jogado sobre a grama do jardim, à vista de todos, parece uma favela miserável.

Estamos com seis minutos de filme.

Quando o filme está com 17 minutos, Nick já se viu com um cartão de crédito bloqueado e a gorda conta no banco igualmente bloqueada. A conta era conjunta, e qualquer um dos cônjuges tinha o poder de bloqueá-la, explicou o gerente do banco. Ah, sim, e um funcionário da firma veio e pegou o carro, de onde Nick sequer havia pego as três caixas com seus itens pessoais retirados de seu escritório após a demissão.

Com 17 dos 97 minutos de duração do filme, Nick Halsey é um desempregado sem teto diante da casa milionária que a agora ex-mulher quer só para ela.

Mas ainda tem um resto de dinheirinho para comprar caixas de lata de cerveja, que vai consumindo com uma sede de trasanteontem.

Mas o fundo do poço na vida de Nick ainda estará mais fundo

Certo, mas este é um filme americano, e portanto as coisas no final vão melhorar, não é isso?

Está lá no título brasileiro: Pronto para Recomeçar. E a tagline, a frase de marketing que vai nos cartazes e na capinha do DVD diz “Ele perdeu tudo e ganhou muito mais!”

Então tudo, tudo vai dar pé.

Hum… Não será exatamente assim. Até porque os exibidores brasileiros foram mais otimistas do que o rei. O título original do filme não é tão esperançoso assim: Everything Must Go – tudo tem que ir, tudo tem que ir embora. E a tagline original é bem mais dúbia que a escolhida para apresentar o filme ao público brasuca: “a perda é um bom lugar para alguém se encontrar”.

O fundo do poço na vida de Nick Halsey estará ainda mais fundo do que neste início de filme.

Não há absolutamente nada cor de rosa nos contos de Raymond Carver

O diretor Dan Rush criou o roteiro de seu filme a partir de um conto de Raymond Carver chamado “Why Don’t You Dance”. Nunca li Raymond Carver na vida, mas dá para saber que não há nada, absolutamente nada cor de rosa neles. Muitíssimo ao contrário. Nas histórias dele, as putas não se casam com milionários, os pobres não ficam ricos, os sem-documento não encontram os documentos, os mortos não voltam a viver – e, como diz a canção de Leonard Cohen, “todo mundo sabe que os mocinhos perderam”.

Foi baseado em histórias de Raymond Carver que Robert Altman criou Short Cuts, aquele belo mosaico sobre pessoas infelizes e chatas. Quando comentou sobre Short Cuts, o crítico Roger Ebert escreveu o seguinte:

“Num conto de Carver (e você deveria ler um, se nunca o fez), existe tipicamente um momento em que uma afirmação comum se transforma em crucial, ou poética, ou triste. (…) Algumas vezes as pessoas vêem com clareza que elas são livres para tomar decisões, que ninguém está condenado a repetir os mesmos erros.

“Carver morreu aos 50 anos, de um tumor no cérebro. Ele acreditava que morreria aos 40, de alcoolismo, se não conseguisse parar de beber. Quando ficou sabendo que o câncer o mataria, escreveu um poema sobre o bônus de dez anos, chamado ‘Gravy’ (uma tradução aproximada seria ‘no lucro’).

Na viagem ao inferno, Nick tem a chance de conhecer duas pessoas interessantes

É bela esta frase: “Algumas vezes as pessoas vêem com clareza que elas são livres para tomar decisões, que ninguém está condenado a repetir os mesmos erros.”

Na sua viagem ao fundo do poço do inferno, Nick Halsey terá algumas oportunidades de ver com clareza que as pessoas são livres para tomar decisões, que ninguém está condenado a repetir os mesmos erros.

Está certo que ele repete alguns dos mesmos erros do pai. O pai deixou para ele algumas boas lembranças – era um disk jockey de algum talento – e uma coleção de velhos discos, bolachões pretos de vinil, agora expostos à visitação pública no jardim da bela casa. Mas, na maior parte do tempo, como o próprio Nick dirá lá pelas tantas, o pai era mesmo um bêbado miserável, filho da puta.

E Nick vai repetindo o mesmo erro do pai: beber demais.

De qualquer forma, mesmo enchendo a cara de cerveja sem parar, sentado na bela poltrona reclinável no meio da favelenta exposição de seus bens materiais, Nick terá oportunidade de pensar nos valores em que baseou sua vida.

Terá mesmo a chance de conhecer duas pessoas que teriam coisas para ensinar a ele.

Uma delas é o garoto Kenny (Christopher Jordan Wallace, na foto acima). Kenny aparece diante de Nick logo que ele chega em casa desempregado e se descobre também sem-teto. É um menino aí de uns 12, 13 anos, negro, gordinho, que passeia de bicicleta pelo bairro enquanto sua mãe cuida de uma senhora doente do lugar. Nick pedirá alguns favores a Kenny, como tomar conta da coisarada enquanto ele sai para fazer alguma compra, alguma coisa. Vão acabar estabelecendo algum tipo de amizade.

A outra pessoa é Samantha (a sempre ótima Rebecca Hall, na foto abaixo), uma jovem grávida que acabou de se mudar para a casa em frente à que era de Nick. É fotógrafa, professora de fotografia, morava em Nova York, mas o marido foi transferido para aquela cidade – provavelmente como punição por desempenho fraco –, e ela abriu mão de sua carreira e se mudou. O marido continuava em Nova York, acertando as coisas antes de ele mesmo se mudar.

Samantha será a única pessoa da vizinhança a demonstrar algum tipo de simpatia por aquele sujeito que agora é um has been, um que já foi, mas não é mais, e agora atrapalha o belo visual do bairro expondo suas coisas íntimas no jardim.

Um filme de uma amargura feroz, que investe contra a escala de valores básica do capitalismo

Se fosse um filme de Frank Capra, o mais sonhador dos realizadores americanos, Nick aprenderia que as coisas materiais não têm valor – a única coisa que vale na vida são os amigos, a solidariedade entre os amigos, saber dividir com os outros suas pequenas alegrias, esperanças.

Os personagens de Frank Capra são exatamente o oposto do casal interpretado por Michael Douglas e Kathleen Turner em A Guerra dos Roses, de Danny DeVito (1989), criados à imagem e semelhança da maior parte das pessoas que vivem em sociedades como a nossa. Oliver e Barbara Rose passam os melhores anos de sua vida ganhando dinheiro para ter uma casa cada vez maior, e dentro dela a maior quantidade de coisas possíveis.

Me lembrei muito de A Guerra dos Roses enquanto via este Pronto para Recomeçar. São, os dois filmes, virulentos panfletos contra esse tipo de escala de valores, a escala de valores básica do capitalismo.

Indo pelo lado oposto, esses dois filmes acabam se aproximando dos valores do velho Capra.

Com a brutal diferença de que Capra é um idealista, um sonhador. E este filme aqui, assim como A Guerra dos Roses, é de uma amargura feroz.

Um jovem diretor que põe em seu filme duas canções do Dylan dos anos 60

Vejo que foi o primeiro filme escrito e dirigido por esse Dan Rush. O sujeito é tão novo no métier que o IMDb ainda tem pouca, quase nenhuma informação sobre ele. Não fala sequer sua idade, mas a foto mostra que é um jovem, talvez aí na faixa dos 40 e poucos anos.

Embora jovem, curte música popular de qualidade feita algumas décadas atrás. Lá pelas tantas, Nick bota para tocar um LP em que Odetta canta “Baby, I’m in the mood for you”, de Bob Dylan. Odetta, cantora excepcional, voz poderosíssima, mestre no blues e no folk, foi a primeira artista a fazer um disco exclusivamente com músicas de Dylan, Odetta Sings Dylan, de 1965. Trocentos cantores fariam depois discos só com canções dele, mas o de Odetta continua sendo um dos mais belos, se não o mais belo.

Bem no final da narrativa, o diretor Dan Rush reincide. Ouvimos “I Shall Be Released”, com The Band. Por coincidência, ou não, duas canções que Dylan não gravou em nenhum de seus discos oficiais. “I Shall Be Released” é triste e amarga como a maior parte das canções de Dylan dos anos 60, mas é sutilmente, suavemente esperançosa (ou seria uma esperança cega, sem qualquer chance de se tornar realidade?), a começar do título e do refrão – qualquer dia destes, qualquer dia destes eu serei libertado.

É até possível que Nick Halsey se liberte depois de tanta besteira que fez na vida. Pode até ser. Quem sabe?

Nem tudo pode estar tão perdido.

Anotação em outubro de 2012

Pronto para Recomeçar/Everything Must Go

De Dan Rush, EUA, 2010

Com Will Ferrell (Nick Halsey),

e Christopher Jordan Wallace (Kenny Loftus), Rebecca Hall (Samantha), Michael Peña (Frank Garcia), Rosalie Michaels (Kitty), Stephen Root (Elliot), Laura Dern (Delilah), Glenn Howerton (Gary )

Roteiro Dan Rush

Baseado no conto Why Don’t You Dance, de Raymond Carver

Fotografia Michael Barrett

Música David Torn

Produção Temple Hill Entertainment, Cowtown Cinema Ventures, Nationlight Productions, Birdsong Pictures, IM Global. DVD PlayArte

Cor, 97 min

***

 

5 Comentários para “Pronto para Recomeçar / Everything Must Go”

  1. Assisti este filme por acaso.Na locadora eu escolhia uns DVDs e,peguei neste.Li o resumo e resolvi conferir,pois não vi comédia alguma
    ali.E,de fato,tem sim,um puto de um senhor drama.Eu fico me perguntando,que direito a mulher dele tinha para bloquear o cartao a conta no banco;o fato de ser conjunta,não lhe dava esse direito.Trocar as fechaduras da casa,segrêdo,etc…enfim.colocá-lo literalmente na rua também.Aquela casa e tudo mais existente nela,foi obra dele.Como é que a “fulana de tal” faz isso? O cara perde o emprêgo,perde a casa e, perde também a “fulana de tal” para o “amigo”.
    Não é só ele;todos na história têm seus problemas,cada um na sua dimensão;a vizinha linda e grande Rebecca Hall,o qaroto(muito bom),a colega de escola,a linda e tbm grande Laura Dern.Por acaso,o problema da vizinha Samantha e seu marido,era bem parecido com o dele.Há uma cena em que a Delilah diz prá ele
    que ele tem um bom coração.Eu diría que ele tinha sim,um coração maior que ele,no fundo daquele poço no qual caíra.
    É aquilo,a vida continua por mais dura que seja e,”nem tudo está perdido” e,ele sairá do fundo desse poço,com certeza.
    Sabe,eu já caí num poço igual ao dele,só que eu bebia eram garrafas de vodka.Foi entre 1980/1982,foi uma época muito difícil e, quem me tirou do poço,foi uma academia de ginastica;e,o Nick vai encontrar tbm a corda para tirá-lo do poço.
    Um ótimo filme. Vale conferir.
    Abraço, Sergio.

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