Duets: Vem Cantar Comigo / Duets

2.5 out of 5.0 stars

Duets é um filme sobre karaokê – sobre a onda, a febre do karaokê. Não chega a ser um bom filme: é bastante irregular, com ótimos momentos e outros bem ruins, ou estranhos, ou muito exagerados. Mas me pareceu bem simpático, gostoso de se ver.

E até mais que isso.

Nunca cometi a insanidade de cantar num bar de karaokê, porque minha voz é um absoluto pavor. Mas qualquer pessoa que já tenha se aventurado nisso vai seguramente gostar bem do filme.

É uma mixórdia: tem momentos de comédia, momentos de drama. Nos momentos dramáticos, faz algumas considerações sérias sobre a vida, a concorrência desenfreada na sociedade, o consumismo, a vida besta que é perder a vida para poder ganhá-la.

É um musical, claro – vemos vários números musicais sendo apresentados em bares de karaokê.

É também um road movie.

Tem um lado surreal.

E é um daqueles filmes com diversos personagens, um mosaico, à la Short Cuts – ou, em linguagem de crítico de cinema, uma obra de estrutura multiplot. O número de personagens parece a princípio grande demais, mas a rigor são três histórias que vão correndo paralelamente. E o fascinante é que são três histórias que falam de encontros inesperados.

Tem também um lado família: foi a única vez em que Gwyneth Paltrow trabalhou em filme dirigido por seu pai, Bruce Paltrow (1943-2002).

Pai e filha que nunca se viram se conhecem no funeral da mãe da moça

Gwyneth interpreta Liv, uma dançarina-cantora de Las Vegas que, nos funerais de sua mãe, fica conhecendo o pai, que havia transado com a então jovem dançarina-cantora Donna e cascado fora.

É uma das três histórias, e é um dos três encontros, o do pai com a filha que nunca tinham se visto antes.

O pai, Ricky Dean (interpretado pelo cantor Huey Lewis), é um malandro, um trapaceiro, golpista, um hustler. Seu golpe é o seguinte: ele chega num bar de karaokê, identifica quem é o maiorial ali do pedaço. Aí, com uma cara de comerciante, vendedor, goza o sujeito, e diz que canta melhor que ele. Com seu orgulho ferido, o bambambã local invariavelmente sugere uma aposta; Ricky topa apostar, mas por quantias bem maiores que as propostas pelo outro. E vence.

O golpe de Ricky é mostrado logo na primeira sequência do filme. As primeiras tomadas são de um rapaz, Ronny (Lochlyn Munro), cantando, com jeitão um tanto profissional de karaokê, paletó vermelho, brilhante. Ricky, ao contrário, está vestido como quem passou pelo bar depois do trabalho.

Ricky lança o laço, Ronny cai feito um patinho: propõe uma aposta de US$ 100. Ricky tira um maço de notas de dentro do bolso, sugere uma aposta de US$ 690, sobe no palco e arrasa cantando uma música do repertório de Joe Cocker, “Feeeling alright”, se não me engano.

(Malandro, trapaceiro, golpista, hustler. A palavra hustler é mencionada. The Hustler é o título original da obra-prima de Robert Rossen de 1961, no Brasil Desafio à Corrupção, em que Paul Newman interpreta o hustler que finge ser um bobão nos salões de sinuca e aí vence todas as apostas com os carinhas que se julgavam imbatíveis. Impossível ver o personagem de Ricky em ação e não lembrar do Eddie Felson, que Paul Newman voltaria a interpretar em A Cor do Dinheiro, de Martin Scorsese, em 1986.)

Do bar em que arrasa com sua apresentação inesperada, Ricky sai direto para um motel com uma frequentadora (o corte da cena do bar para a da trepada é uma delícia). Está ainda comendo a moça quando toca o telefone, com a notícia da morte da moça que ele comeu no passado.

Na sequência seguinte ele está diante do caixão de Donna, e Liv aparece. Os dois não se reconhecem – afinal de contas, nunca haviam se visto antes. Só quando aparece Blair, a mãe de Dona, avó de Liv, é que pai e filha ficam sabendo quem são.

Blair é interpretada por Angie Dickinson, aquela atriz que marcou gerações por seus papéis sensualíssimos em Onde Começa o Inferno/Rio Bravo (1959) e, bem depois, em Vestida para Matar/Dressed to Kill (1980).

Ricky diz, com todas as terríveis letras, que não está preparado para ser pai. Liv, que acabara de perder a mãe, não se mostra disposta a perder o pai que acaba de aparecer pela primeira vez diante dela.

Um vendedor absolutamente estressado sobe no palco – e sua vida muda

O segundo encontro da história criada pelo roteirista John Byrum se dá entre um muito bem sucedido mas profundamente angustiado profissional de vendas e um ex-detento que acaba de sair da cadeia e volta a fazer o que sabe na vida – assaltar.

Primeiro conhecemos Todd Woods, o vendedor interpretado – com brilhantismo e uma dose exagerada de exagero – pelo ótimo Paul Giamatti. Todd está absolutamente estressado. Vendedor competente, está agora vendendo cotas de um parque aquático que está para ser inaugurado em um Estado do Sul (Carolina do Sul, se não me engano), e que simplesmente destruiu um dos últimos santuários ecológicos da Costa Leste – como o próprio vendedor vai dizer várias vezes ao longo do filme. Ao longo da vida profissional, viajou pelo país inteiro vendendo cotas, franquias, empreendimentos imobiliários, pedaços concretos do sonho americano, contra o qual ele passará a vociferar depois de uma experiência traumática.

O espectador vê em rápidas pinceladas a experiência traumática que Todd enfrenta. Primeiro, ele erra a sala de convenção do hotel, e passa algum tempo falando do parque aquático para uma platéia de alguma outra atividade completamente diferente. Depois erra de Estado, tipo era para viajar para a Flórida e ele vai parar no Texas, por engano.

E então volta para a casa – uma casa grande, imensa, resultado de seu esforço louco a vida inteira para ganhar muito dinheiro. Os dois filhos e a mulher não dizem sequer um oi para ele, como se ele simplesmente não existisse.

Todd sai de casa dizendo à mulher que vai comprar um maço de cigarros – embora não fume.

Tenta se hospedar num hotel usando as 800 mil milhas voadas na mesma companhia – mas o hotel tem uma desculpa qualquer para não aceitar milhas como pagamento.

Vai então para um bar, sem saber que é um bar de karaokê. Uma moça bonitinha, Sheila (Keegan Connor Tracy), que havia acabado de cantar, o convence a ir para o palco e experimentar. Todd diz que não, de jeito nenhum; a moça oferece um comprimido de um remédio mágico que vai fazer o medo, a vergonha, desaparecer. Todd-Paul Giamatti então sobe ao palco – e arrasa numa versão deliciosa de “Hello, it’s me”.

O ex-careta agora doidão dá carona para um ladrão – e aí formam uma dupla

A história de Todd, o homem de vendas estressadíssimo que sai de casa para comprar cigarros e pira bravo, é exagerada como a interpretação de Paul Giamatti. É bastante surreal, e assim difere muito do resto do filme.

Depois daquela experiência no bar de karaokê, Todd pega um carro e sai em disparada pelas estradas do país, com cara de doidão, de quem tomou um coquetel de várias drogas, respirando uma liberdade que não sabia que existia. Tipo de repente o caretão Tood Woods virou a dupla de motoqueiros de Sem Destino/Easy Rider, só que mais doidão que eles.

No meio do deserto, dá carona para Reggie Kane (Andre Braugher) – um tipo que o espectador já havia visto, pouco antes, assaltando o motorista de caminhão que tinha dado carona a ele.

O homem de vendas que se cansou do Sistema e o ex-presidiário ladrão vão desenvolver uma parceria bem louca, que inclui um dueto arrasador de “Try a little tenderness” num bar de karaokê – e dois tiroteios.

Assim como a dupla pai & filha, a dupla doidão & ladrão vai se encaminhar para Omaha, em Nebraska, onde no sábado haverá um concurso de karaokê que paga US$ 5 mil para o vencedor.

Um rapaz idealista cruza na vida com uma gostosona hedonista

O terceiro encontro da história é entre um rapaz idealista, puro, altruísta, e uma moça hedonista que presta favores sexuais – sejam quais forem – a quem se dispuser a pagar alguma conta dela.

Primeiro o espectador fica conhecendo Billy (Scott Speedman). Billy divide a propriedade de um táxi com um conhecido, Ralph (Steve Oatway), em Cincinatti, Ohio. Atende ao chamado de uma delegacia de polícia – a corrida é para levar para casa uma mulher que acaba de ser solta da prisão. Billy a reconhece: chama-se Harriet (Marian Seldes), e ela também o reconhece. Havia sido professora dele, e até se lembrava de que ele pretendia ser padre.

O diálogo entre os dois é tristíssimo, apavorante. A ex-professora, que havia sido presa por furto, o acusa de underachiever. Underachiver – alguém que tem menos sucesso do que deveria, do que seria de se esperar. Uma palavra quase tão ofensiva, na sociedade capitalista americana, quanto loser, perdedor, fracassado.

O encontro com aquela mulher deixa Billy tão absolutamente abalado que ele desiste de continuar trabalhando naquele dia, e volta para casa.

Voltar para casa mais cedo sempre pode ser um problema.

E não dá outra. Em casa, Billy encontra a mulher, Arlene (Angie Phillips), com Ralph, o cara que tem a outra metade de seu táxi.

No bar em que está enchendo a cara, Billy fica conhecendo Suzy Loomis – o papel de Maria Bello, bem diferente da Maria Bello loura de tantos outros filmes por estar com os cabelos castanhos.

Moça bonita, atraente, gostosa, Suzy Loomis diz que está indo para a Califórnia, onde vai ganhar muito dinheiro. Pagará uma boa grana para Billy se ele topar levá-la em seu táxi. No caminho, garante que vai satisfazer todos os desejos dele.

Os atores estão muito bem, em especial Gwyneth Paltrow e Maria Bello

Os três pares de personagens tão díspares vão todos se encontrar no grande concurso de karaokê em Omaha, Nebraska. A mestre de cerimônias em Omaha é interpretada por Maya Rudolph, mais uma mulher muito interessante neste filme de tantos atores interessantes.

Aliás, era para o personagem de Billy ser interpretado por Brad Pitt, que, naquele ano de 2000 em que o filme foi lançado, já era um grande astro. Brad Pitt era noivo de Gwyneth Paltrow, mas os dois romperam – e aí o galã caiu fora do projeto. É bem provável que este Duets tivesse sido um filme de muito mais sucesso, caso tivesse como chamariz no elenco o bonitão.

Embora pouco conhecido, Scott Speedman dá conta do recado. O personagem que ele constrói é talvez o mais interessante de toda essa galeria de tipos.

Já disse e repeti, mas insisto: Paul Giamatti dá um show. Sim, ele está over, está exagerado – mas deram para ele um papel que é exatamente isso, o over, o exagero.

E também estão muito bem, acho, as duas atrizes que fazem os principais papéis femininos, Gwyneth Paltrow e Maria Bello.

Gwyneth estava com 28 aninhos, e tinha acabado de ganhar o Oscar por Shakespeare Apaixonado (1998). Sob a direção do pai, compôs uma Liv – garota criada só pela mãe, cantora-dançarina de boates de Las Vegas, a capital mundial do jogo, do divórcio e da luz neon – que é mezzo inocência, mezzo sensualidade. Tem um ar de jovem que ainda não deixou totalmente a adolescência, e ao mesmo tempo exibe o corpo, e dança, e canta, de forma a despertar a libido de um frade de pedra.

Maria Bello é cinco anos mais velha que Gwyneth – nascida em 1967, estava com 33 anos. Compôs uma Suzy Loomis que é uma força da natureza, é o hedonismo em estado puro. Não é que a Suzy Loomis de Maria Bello seja imoral, seja uma puta, simplesmente. Não é isso. Ela é amoral. Para ela, trepar, ou fazer um boquete, em troca de uma diária de hotel ou uma pintura de carro, é um trabalho como outro qualquer, como um dia como faxineira ou garçonete.

Desde a primeira vez que vi Maria Bello – creio que em outro filme passado em Las Vegas, The Cooler – Quebrando a Banca (2003) fiquei impressionado com a sensualidade dela. É uma coisa aberta, explícita, vulcânica – algo só semelhante no cinema americano, que me lembre, a Ellen Barkin.

Ela confirma isso sobejamente, neste Duets.

Duets é um filme que nos faz lembrar que a vida não é um esgoto

Roger Ebert, o maravilhoso crítico que amava os filmes, deu 2.5 estrelas ao filme. “Duets tem pequenas ilhas de humor e até perfeição flutuando num mar de objetivos não atingidos e intenções obscuras. Deve ter havido muitas cenas em que todos estavam felizes no set, mas elas não levam a um bom resultado. O erro fundamental do filme é que ele tenta espremer desgostos doçamargos e sátira social patética na mesma história. Exatamente quando o filme consegue adquirir um ritmo, ele pisa em seu próprio pé.”

Um espectador de Salem, Oregon, que se assina jhclues, escreveu no IMDB: “Mais para o começo do filme, um motorista de caminhão pergunta ao sujeito que pegou carona com ele – um cara que acabou de sair da prisão: – ‘Por que você foi pego?’ O sujeito responde: – ‘Um erro no julgamento’. E, na análise final, é sobre isso que é Duets: os defeitos, as imperfeições e ‘erros no julgamento’ que fazem a música da vida. É sobre encontrar a nota certa e ser capaz de dividi-la com alguém – ser capaz de fazer um dueto na trilha sonora da vida.”

Os críticos de cinema (Roger Ebert não incluído aí – Roger Ebert é exceção) adoram descobrir os defeitos, as imperfeições dos filmes. Vivem disso, afinal das contas – críticas elogiosas não dão ibope algum, bem ao contrário de pau violento.

Exatamente como o cinéfilo do Oregon, como Roger Ebert, gosto de encontrar a nota certa, o dueto que funciona, nos filmes que vejo, assim como na vida.

Para mim, um filme que tem um diálogo como este que reproduzo abaixo é uma obra que merece respeito.

É aquele diálogo entre a mulher que foi professora e Billy, o sujeito que queria ser padre, que quer ajudar os outros, que não quer perder a vida na loucura de ganhar um monte de dinheiro.

Quando pára o carro para que a ex-professora e atual ladra que o chamou de underachiver desça, Billy pega a nota de US$ 10 que havia recebido do policial na delegacia, e a entrega para a mulher, dizendo que ela precisa mais do dinheiro do que ele.

E tenta explicar: – “Me ouça. Eu não sou um fracassado. (Ele usa underachiver, a palavra que ela usou. Pense na palavra que melhor traduza o que undertachiver quer dizer.) Não sou. Eu apenas desejo conquistar algo diferente do que a maioria das pessoas.” (To achieve something different, no original.)

E a ladra: – Ah… E o que é isso?”

Billy: – “Harmonia”.

A mulher pavorosa dá uma gargalhada, e despeja o resto de veneno: – “Você é meio patético… Deixe eu te dar um conselho. O mundo é um esgoto, e as pessoas não prestam.”

Duets é um filme desigual, irregular, imperfeito, mas que, afortunadamente, nos faz lembrar que há muita gente que presta e o mundo não é um esgoto.

Anotação em abril de 2017

Duets: Vem Cantar Comigo/Duets

De Bruce Paltrow, EUA, 2000

Com Gwyneth Paltrow (Liv Dean), Huey Lewis (Ricky Dean), Angie Dickinson (Blair, a avó de Liv), Lochlyn Munro (Ronny Jackson, o primeiro cantor a aparecer)

Scott Speedman (Billy Hannan), Maria Bello (Suzi Loomis), Marian Seldes (Harriet Gahagan, a ex-professor da Billy), Angie Phillips (Arlene, a mulher de Billy), Steve Oatway (Ralph Beckerman, o sócio de Billy e amante de Arlene),

Paul Giamatti (Todd Woods), Andre Braugher (Reggie Kane), Kiersten Warren (Candy Woods, a mulher de Todd), Keegan Connor Tracy (Sheila, a moça que faz Todd cantar), Maya Rudolph (a MC de Omaha)

Argumento e roteiro John Byrum

Fotografia Paul Sarossy

Música David Newman

Montagem Jerry Greenberg

Produção Hollywood Pictures, Seven Arts Pictures, Beacon Pictures. DVD Europa Filmes.

Cor, 112 min.

**1/2

 

3 Comentários para “Duets: Vem Cantar Comigo / Duets”

  1. Adorei o filme, faz tempo que assisti, nunca mais esqueci. Só quero saber o nome da música que ela canta no final do filme… Adoro essa canção… Só não sei o nome.. por favor me passe..

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