Hollywood demorou duas décadas inteiras para filmar Finian’s Rainbow. A peça – escrita por E.Y. Harburg e Fred Saidy, com diversas canções de Burton Lane com letras inteligentes, gostosas, de Harburg – tinha sido um grande sucesso quando estreou na Broadway e no East End de Londres, em 1947. Em Nova York, ficou anos em cartaz – foram 725 apresentações.
Mas só virou filme em 1968 – e pelas mãos de um diretor novato, um jovem de 29 anos, Francis Ford Coppola.
É um musical fantasia, quase um conto de fadas. Tem duende – um autêntico duende irlandês, um leprechaun – e pote de ouro mágico, mas é também um virulento panfleto contra o racismo e uma indisfarçável defesa do socialismo, de uma sociedade sem injustiça social, sem o abismo entre ricos e pobres.
Foi por causa do tom fortíssimo de crítica ao racismo que Finian’s Rainbow não encontrou quem topasse levar a peça ao cinema, numa época em que estavam em vigor leis que segregavam a população, proibiam a convivência entre brancos e negros nos mesmos ambientes e tratavam como crime o casamento de pessoas de diferentes cores de pele. É sempre necessário lembrar que, nos Estados Unido, apenas durante o governo de Lyndon B. Johnson, em 2 de julho de 1964, foi promulgada a Lei dos Direitos Civis, que baniu definitivamente todo tipo de discriminação baseada em raça, cor, religião, sexo ou nacionalidade.
O IMDb resume a questão assim: “Por causa de sua sátira ao racismo, esse musical de sucesso na Broadway era considerado uma batata quente em Hollywood, e os estúdios não queriam chegar perto dele a não ser que tivessem permissão de mudar a história. Seus criadores originais, E.Y. Harburg, Burton Lane e Fred Saidy, não permitiram, e em 1968 foi possível filmá-lo com muito poucas mudanças”.
Os próprios autores do libreto, Harburg e Saidy, escreveram o roteiro que Coppola filmou.
Feito no meio da efervescência dos anos 60, os anos da contracultura, dos hippies, o Finian’s Rainbow de Coppola tem um inegável ar de flower power. O povo do Vale do Arco-Íris, onde se passa a história, parece o de uma comuna hippie, ou a tribo do Hair versão Milos Forman. Uma antecipação de Woodstock, que rolaria um ano depois, em 1969.
Pai e filha irlandeses rumo aos EUA
O filme começa com a dupla Fred Astaire e Petula Clark, cada um carregando malas, caminhando pelos mais diversos pontos dos Estados Unidos, enquanto rolam os créditos iniciais, ao som da primeira das diversas canções de Burton Lane e E.Y. Harburg, “Look to the rainbow”: a Estátua da Liberdade em Nova York, em seguida a Golden Gate sobre a baía de San Francisco no outro extremo do país, o Monument Valley que John Ford mostrou em seus westerns, o Monte Rushmore com os rostos dos presidentes, o Grand Canyon, um rio imenso, certamente o Mississipi, montanhas geladas, pradarias a perder de vista.
Fred Astaire interpreta o Finian do título, Finian McLonergan, o homem que está à procura do arco-íris da música, o homem que persegue incansavelmente o seu sonho. E Petula Clark – linda demais aos 36 aninhos, parecendo bem menos, então no auge da fama gigantesca como atriz de cinema e como cantora – faz a filha dele, Sharon McLonergan.
Quando os créditos finais e a canção acabam, Finian diz que agora estão chegando perto do lugar que ele procurava: está ali atrás daquela colina depois da outra colina. E Sharon responde: – “Estou ouvindo isso de colina depois da outra colina desde que saímos da Irlanda…”
Sim: Finian McLonergan havia saído da Irlanda, carregando a filha, um monte de malas e também – mas isso tanto a filha quanto o espectador só ficarão sabendo um pouco mais tarde – um pote de ouro. Na sua Irlanda natal, havia roubado o pote de ouro de um duende. E procurava, nos Estados Unidos, mais exatamente no interior do fictício Estado de Missituck (mistura óbvia de Mississipi com Kentucly), perto do Forte Knox, um lugar para enterrar o seu pote de ouro.
Forte Knox, como se sabe, é o local em que o Tesouro dos Estados Unidos guarda o ouro que serve de lastro para a sua moeda.
Finian, que acredita em duendes, acredita também que, enterrando seu ouro perto de onde o Tio Sam guarda o ouro dele, conseguirá fazer com que o ouro dê frutos, se multiplique.
O exato local que ele procurava se chama exatamente Rainbow Valley, o Vale do Arco-Íris.
Um vale em que todos vivem felizes
E o Vale do Arco-Íris é um lugar absolutamente especial. Não é tão abertamente mágico quanto Brigadoon, o lugarejo perdido na Escócia onde vão parar os dois americanos interpretados por Gene Kelly e Van Johnson em A Lenda dos Beijos Perdidos/Brigadoon (1954), outro musical da Broadway que virou filme. Mas é quase. É um daqueles lugarejos de sonho, de conto de fadas, em que todos são absolutamente felizes, e cantam e dançam boa parte do tempo.
Ali, brancos e negros, homens e mulheres e crianças vivem em perfeita harmonia, plantando e colhendo os frutos da terra. O líder natural daquela gente feliz se chama Woody – e é bastante óbvia a semelhança entre esse Woody e Woody Guthrie, o ativista de esquerda, organizador de sindicatos e o maior nome da música folk americana, o sujeito que o jovem Bob Dylan imitava quando chegou a Nova York.
Como Woody Guthrie, o Woody do Vale do Arco-Íris (o papel de Don Francks) viaja a bordo de trens cargueiros, levando seu violão.
Chega de volta ao Vale do Arco-Íris logo após a chegada dos irlandeses McLonergan – e é óbvio que ele, o líder do pedaço, e a bela Sharon vão logo se apaixonar.
Woody tem uma irmã mais nova, Susan the Silent: segundo os moradores, Susan, muda, fala com os pés. Dança o tempo todo, e dança divinamente. Foi a estréia no cinema de uma jovem dançarina de apenas 19 anos, linda de morrer, Barbara Hancock.
Woody e seu amigo Howard (Al Freeman Jr.), um botânico de mão cheia, estavam trabalhando em um projeto que poderia deixar os habitantes do lugar milionários: criar um tipo de tabaco já mentolado.
Como nada na vida é perfeito, ronda sobre o Vale do Arco-Íris um perigo: um sujeito tão rico quanto mau-caráter, o senador Rawkins (Keenan Wynn), faz de tudo para comprar as terras do vale e expulsar dali seus alegres moradores.
Algum tempinho depois da sua chegada ao Vale do Arco-Íris, numa bela noite, Finian, munido de um garrafão de uísque – onde já se viu irlandês que não bebe? –, sai para enterrar o pote de ouro.
E logo depois Og (Tommy Steele), o duende de quem ele havia roubado o ouro, aparece pedindo de volta o que lhe pertence.
Há espaço de sobra, com uma trama assim, para as situações mais engraçadas. E oportunidade para que se cante e dance também é o que não falta.
O filme faz piadas com tudo – até com a injustiça
Quando se exprime um desejo perto de um pote de ouro pertencente a duende, o desejo se realiza. Num momento em que o senador Rawkins tenta um golpe absolutamente sujo para tentar se apossar das terras dos pequenos proprietários ali do Vale do Arco-Íris – ele mesmo cria uma lei dizendo que brancos e negros que convivem numa mesma localidade não têm direito a possuir terras, ou algo assim –, Sharon, enfurecida, diz a frase: “Eu gostaria que você virasse negro”. Trovões, ventos bravos – e o senador racista vira negro.
Há muitas piadas sobre a Irlanda – a pobreza da Irlanda comparada com a riqueza dos Estados Unidos, o fato de uma altíssima percentagem da população irlandesa ter emigrado para Estados Unidos e Canadá. Numa conversa com o pai, a bela Sharon brinca que há mais irlandeses na América do que na Irlanda.
Finian canta a beleza do verde: “Verde é a cor dos trevos e da grama nas colinas. / Ó, a beleza verde querida da Irlanda / e das velhas e boas notas de dólar”.
Brinca-se com tudo. Na primeira vez em que Susan the Silent aparece em cena, Henry (Louis Silas), um garotinho negro, explica para Buzz (Ronald Colby), o faz-tudo do senador racista e corrupto, que ela fala com os pés. Uma moradora complementa que ela nasceu silenciosa – e o marido dela acrescenta: “Uma das pouquíssimas mulheres desse jeito”.
Brinca-se até com a injustiça social, o fosso entre ricos e pobre. Os McLonergan, pai e filha, cantam juntos a canção “When The Idle Poor Become The Idle Rich” – quando o ocioso pobre se torna um rico ocioso. Os versos de E.Y. Harburg são cortantes feito peixeira de baiano: “Quando um rico não quer trabalhar / É um bon-vivant. / Mas se um pobre não quiser trabalhar / é um vagabundo, um preguiçoso, sujeito que não presta”.
“Quando um rico perde com um cavalo / é um desportista. / Mas se um pobre perde com um cavalo / é um jogador, um gastador, um marginal, um motivo para o divórcio. / Quando um rico vai atrás de mulheres, é um homem do mundo. / Mas quando um pobre vai atrás de mulheres / é um pulha, é um monte de nomes sujos.”
Foi o último musical de Fred Astaire
Pauline Kael, a prima donna da crítica americana, classificou a peça e o filme Finian’s Rainbow, com toda a ironia do mundo, como “opereta com mensagem”. É muita ironia – mas a definição é acertada. Há em Finian’s Rainbow, sem dúvida, não apenas uma crítica virulenta ao racismo, mas também um tom de um socialismo romântico, onírico.
Não é à toa, não é gratuito. E.Y. Harburg (1896-1981) nunca escondeu suas escolhas políticas e ideológicas, e foi membro do Partido Socialista. Na época do macarthismo e da paranóia anticomunista do Comitê sobre as Atividades Anti-Americanas, entre 1950 e 1962, foi colocado na lista negra e proibido de trabalhar no cinema, teatro e TV.
Sem E.Y. Harburg, a Grande Música Americana seria menor. São dele as letras de clássicos como “Brother, Can You Spare a Dime?”, “April in Paris”, “It’s Only a Paper Moon” e todas as canções de O Mágico de Oz – inclusive, claro, “Over the Rainbow”.
Finian’s Rainbow foi o último musical da longa e gloriosa carreira de Fred Astaire. Ele ainda trabalharia em outros filmes – mas sem dançar.
Foi o primeiro filme de Petula Clark no cinema americano. Já era uma estrela imensa, aos 36 anos de idade – mas toda sua carreira havia sido até então na Europa. Nascida no Surrey, Inglaterra, em 1932, tornou-se estrela aos 11 anos de idade, cantando em teatros ingleses e na rádio da BBC para as tropas durante a Segunda Guerra Mundial. Fez diversos filmes como atriz mirim. Em 1960, mudou-se para a França, e consolidou uma carreira lá. Com sua versão de “Downtown”, estourou nas paradas americanas em 1966.
Petula Clark encerrou a carreira de atriz em 1981, mas continuou a de cantora. Em 2016 apresentou-se na Inglaterra e também na Alemanha, promovendo um novo disco, From Now On, que chegou às paradas inglesas – 62 anos depois de sua estréia entre os discos mais vendidos.
Já a outra bela atriz de Finian’s Rainbow, Barbara Hancock (na foto abaixo), que faz Susan the Silent, não teve grande carreira no cinema.
Não dá para entender por quê. Chegou com tudo. Nascida em Atlanta, Geórgia, em 1949, recebeu bolsa da prestigiosa Fine Arts Foundation e começou bem cedo a carreira como bailarina em Nova York. Antes mesmo de participar dos testes para a escolha da jovem que interpretaria Susan no filme, havia se apresentado na Casa Branca, num evento promovido pela Lady Bird, a mulher de Lyndon Johnson.
Dança maravilhosamente no filme – e é linda e gostosa.
Foi indicada a duas categorias do Globo de Ouro por sua Susan the Silent: melhor atriz coadjuvante e novata mais promissora.
Só faria mais três filmes, no entanto. Manteve a carreira de bailarina, e, mais madura, passou a dar aulas de balé.
Uma versão em que os pés foram cortados!
A Warner Bros., que produziu Finian’s Rainbow, cometeu um crime absolutamente inominável: desfigurou absolutamente a obra do jovem diretor Coppola, ao resolver transformar um filme feito com câmaras de 35 mm em um CinemaScope, um widescreen como se tivesse sido filmado com câmaras de 70 mm.
Ao fazer isso, ao passar imagens mais próximas do quadrado para um comprido retângulo, o estúdio simplesmente cortou o que havia bem no alto e bem na parte de baixo de cada quadro. O alto da cabeça dos atores sumiu, em várias sequências – assim como, em algumas tomadas, os pés dos bailarinos!
Cortaram fora os pés de Fred Astaire!
É como, no momento do ataque fulminante rumo ao gol, cortassem fora os pés de Garrincha, de Pelé!
Felizmente, versões restauradas voltaram a usar a proporção original. No DVD podemos ver o alto das cabeças dos atores e os pés de todos, inclusive os do veterano Astaire e da novata Barbara Hancock.
Uma deliciosa surpresa, um alento nestes tempos
Leonard Maltin deu 3.5 estrelas em 4, e abriu sua avaliação com uma beleza de frase:
“A extravagante fantasia musical de Burton Lane-E.Y. Harburg sobre injustiça racial estava à frente de seu tempo no final dos anos 40 na Broadway e embaraçosamente datado 20 anos mais tarde, mas Coppola e um atraente elenco fizeram maravilhas nesse filme vencedor feito com muita imaginação – talvez o melhor musical de sua era. As letras de Harburg permanecem elegantes e inteligentes, e Astaire está engraçado como o irlandês transplantado cujo duende aparece bem vivo no Sul dos Estados Unidos.”
Em seu livro 5001 Nights at the Movies, Pauline Kael diz: “Algumas das extravagâncias desta opereta de mensagem são duras de engolir, mas, considerando o peso de todo o projeto, o jovem Francis Ford Coppola fez o melhor que pôde para deixar as coisas de uma forma relaxada, despreocupada. (…) Coppola tem a ajuda de Petula Clark, Al Freeman Jr. e Keenan Wynn, mas Fred Astaire não era adequado ao papel.”
E a chata de galocha vai em frente falando mal do filme, e então eu paro por aqui.
Em seu Dicionário de Cineastas, Rubens Ewald Filho diz que O Caminho do Arco-Íris é o pior filme da carreira de Coppola.
O Guide des Films de Jean Tulard desprezou o filme, que na França teve o título de La Vallée du Bonheur, e fez o seguinte comentário irônico – e, na minha opinião, bobo:
“Em algum lugar do Missitucky há um vale onde a felicidade reina… ‘Eu conheci a felicidade, mas não foi isso que me deixou mais feliz’ (Jules Renard).”
Para mim, Finian’s Rainbow foi uma deliciosa surpresa. Não tinha visto na época do lançamento – e talvez tenha sido melhor assim. Ver este filme agora, neste nosso tempo de tanta desesperança, de ilusões desfeitas, é um alívio, um alento. Os cínicos que me perdõem, mas a alegria é uma coisa maravilhosa.
Anotação em dezembro de 2018
O Caminho do Arco-Íris/Finian’s Rainbow
De Francis Ford Coppola, EUA, 1968
Com Fred Astaire (Finian McLonergan), Petula Clark (Sharon McLonergan), Tommy Steele (Og, o duende), Don Francks (Woody Mahoney), Keenan Wynn (senador Rawkins), Barbara Hancock (Susan the Silent), Al Freeman Jr. (Howard, o botânico), Ronald Colby (Buzz Collins, o secretário de Rawkins), Dolph Sweet (o xerife), Wright King (o promotor), Louis Silas (Henry, o garoto)
Roteiro E.Y. Harburg e Fred Saidy
Baseado na peça de autoria dos dois
Fotografia Philip Lathrop
Música Burton Lane, letras E.Y. Harburg
Choreografia Hermes Pan
Figurinos Dorothy Jeakins
Produção Joseph Landon, Warner Bros.-Seven Ars, DVD Warner.
Cor, 145 min (2h25).
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Título na França: La Vallée du Bonheur. Em Portugal: O Vale do Arco-Íris.
Olá!
Pois é, já eu vi esse filme em alguma madrugada na TV, no início dos 80 e ele ficou marcado em minha memória, mesmo eu não o tendo revisto desde então… A música (“look, look, look to the rainbow…”) ainda ecoa em minha mente em tardes de chuva com sol. Receava vê-lo agora e acabar descobrindo que o filme é fraco, bobo – isso estragaria uma memória muito feliz que tenho da infância. Mas pelo que entendi das suas observações, vejo que esse risco é mínimo.
Sim, foi a alegria dele que me marcou, e sua visão de uma sociedade mais justa (ainda que à época eu entendesse muito pouco de tais assuntos…).
Obrigado, e bons filmes pra você!
Assisti quando criança e nunca esqueci,me encantou.