(Disponível na Netflix em 7/2021.)
Ninguém Sabe que Estou Aqui, produção chilena de 2020, mostra verdades importantíssimas, fundamentais: estamos deixando de lado a essência para nos concentrarmos nas aparências. Nossa sociedade está se tornando escrava do culto às aparências, e nós vamos perdendo a noção dos valores que realmente importam.
Secundariamente, o filme fala de outra verdade: ao contrário do título do romance de Thomas Hardy, não existe mais no planeta lugar em que se possa estar far from the madding crowd, longe deste insensato mundo. Você pode viver no lugar mais distante, menos habitado que existe – mas, nestes tempos de internet e celular, você estará sempre cercado de milhões de pessoas.
A trama criada para demonstrar isso é original, interessante, fascinante – e também chocante, apavorante.
Só que o filme demora para mostrar qual é, afinal, a história que vai contar. Roteiristas e diretor fazem uma imensa, gigantesca questão de manterem tudo da forma mais misteriosa possível. O filme demonstra que foi feito um grande esforço para reter ao máximo as informações, não entregá-las ao espectador a não ser quando não há mais outro jeito.
Um esforço hercúleo para não ser claro.
Não vai aí nestas frases crítica ou reclamação. É apenas a descrição dos fatos.
Ninguém Sabe que Estou Aqui é bem realizado em todos os quesitos técnicos. A fotografia e a iluminação são extremamente trabalhadas, rebuscadas. Boa parte das tomadas de interiores tem pouquíssima iluminação, como se ali não houvesse luz elétrica – e muitas vezes há momentos em que é difícil enxergar o que está sendo mostrado. Em contraste absoluto com isso, há tomadas de exteriores de beleza absolutamente esplendorosa: a ação se passa bem no Sul do Chile, em torno do grande lago de Llanquihue, nas proximidades da cidade do mesmo nome – e o diretor Gaspar Antillo e seu diretor de fotografia Sergio Armstrong aproveitam ao máximo o esplendor daquelas paisagens. Há muitos, muitos planos gerais do lago, pequenas barcos cruzando o lago – e não se economizou dinheiro para botar a câmara em drones, em absolutos plongées de uma beleza visual acachapante.
Se o eventual leitor a esta altura estiver se perguntando algo do tipo “tá legal, mas de que se trata, afinal? qual é a história?”, eu diria que o texto está tentando imitar o filme.
O filme se nega, peremptoriamente, a dizer do que se trata ao longo dos primeiros muitos minutos.
Creio que estávamos aí com uns 10 minutos de projeção quando Mary comentou: – “Tá bom, mas seria legal que tivesse uma história”.
Nadie Sabe que Estoy Aquí tem, sim, uma história, e é uma história – repito – original, interessante, fascinante.
A questão é que, como o filme foi todo construído para demorar a revelar a que veio, se eu narrar logo os acontecimentos vai ser spoiler.
Jorge Garcia, da série Lost, faz o papel principal
O protagonista da história é um homem muito gordo, imenso, bem além do nível da obesidade mórbida. Veremos que se chama Memo; parece ter aí uns 35 anos, talvez. Fala pouquíssimo, quase nada. Mora com um outro homem, num sítio, às margens de um gigantesco lago, onde há uma criação de carneiros e uma espécie de oficina de beneficiamento de lã. Como o diretor Gaspar Antillo optou por essa coisa de manter tudo muito misterioso, não dá para entender muito bem o que exatamente Memo e aquele outro homem fazem ali, já que criam ovelhas mas também recebem entregas, feitas de barco, de carregamentos de mais pele de ovelha. Aparentemente, eles beneficiam lã – tanto a produzida por eles quanto a que recebem de outros –, mas isso não é mostrado claramente.
Leva-se algum tempo para o espectador ficar sabendo que o outro homem, o dono da propriedade, é um tio de Memo. Chama-se Braulio (o papel de Luís Gnecco), e é basicamente a única pessoa com quem o sobrinho convive. Memo – o espectador vai percebendo – é extremamente fechado em si mesmo.
É o papel de Jorge Garcia.
E aí houve um problema que não tem nada a ver com a vontade do diretor Gaspar Antillo de fazer tudo da maneira mais misteriosa possível: acontece que Mary e eu, ao contrário de boa parte das pessoas, não sabíamos quem era Jorge Garcia, o sujeito que, como resume o IMDb, ficou mundialmente famoso no papel de Hugo Reyes, o Hurley do seriado Lost.
Boa parte dos espectadores, ao contrário de nós, identificará de imediato o ator que faz o protagonista do filme.
Jorge Garcia, ficamos sabendo depois de ver o filme, nasceu em Omaha, a cidade mais populosa do Estado americano de Nebraska, em 1973; sua mãe é cubana e o pai é chileno.
Fiquei imaginando, depois que soube desses fatos, que a história do filme deve ter sido escrita com os autores pensando em ter Jorge Garcia para o papel central. Não há muitos atores no mundo que falam inglês e espanhol e pesam essa quantidade enorme de quilos que ele pesa.
(Na verdade, pesava; segundo se vê na internet, nos últimos anos Jorge Garcia virou vegano, enfrentou uma dieta rigorosíssima e emagreceu quase 50 quilos.)
A história de Nadie Sabe que Estoy Aquí é original, não se baseia em livro, peça de teatro. Foi escrita diretamente para o filme pelas três pessoas que assinam o roteiro – o diretor Gaspar Antillo e mais Josefina Fernández e Enrique Videla.
Este foi o primeiro longa-metragem que Gaspar Antillo escreveu e dirigiu na vida. O que explica muita coisa. Em sua primeira obra, é absolutamente normal que os jovens queiram demonstrar muito talento – e aí ousem demais, às vezes se atrapalhem.
Ele entra escondido em casas dos outros
Ouvimos, antes mesmo da primeira imagem, uma voz de adulto em off que dá instruções: – “Concentre-se. Barriga para fora, isso mesmo. Respire, respire fundo”, diz a voz, em espanhol. Em seguida muda para o inglês: – “Não com a garganta.” Volta para o espanhol: – “Não com a garganta. Direto. Ah, ah! Inspire. Inspire de novo. Vamos, inspire de novo.”
Depois de rápidos créditos iniciais sobre a tela ainda negra – apenas o nome da produtora e o dos atores –, surge a primeira imagem, uma floresta. No meio das árvores, começa a aparecer um homem gordo. A voz em off de uma criança diz, em inglês: – “Olá, meu nome é Brittany, tenho 12 anos”. Outra voz de criança: – “Meu nome é Joe. A coisa que mais gosto de fazer é dançar.”
Corta, e vemos um big close-up de uma câmara de vídeo. Corta, e vemos uma imagem borrada, como de um filme ainda no tempo pré-digital, um adulto faz perguntas a um garotinho aí de uns oito anos, grande, gordinho: – “Qual o seu nome?” – “Guillermo.” Como se fosse um teste de imagem.
Corta, e vemos o homem gordo dentro de uma casa, um lago ao fundo. Corta, surgem imagens de fotos em preto-e-branco, emolduradas, enfeites da casa.
Alternam-se imagens do garoto gordinho fazendo teste de imagem com imagens do homem gordo andando pela casa.
Óbvio: aquele homem gordo foi aquele garoto que fez testes de imagem e ouviu instruções ora em espanhol, ora em inglês.
Daí a pouco o homem gordo está num barco com motor, atravessando um trecho do lago, chegando à casa em que mora. O homem que está na casa, e veremos depois que é o tio dele, comenta: – “Memo, um dia vão te pegar entrando escondido nessas casas”.
Memo não responde. O tio: – “Pelo menos não deixou uma bagunça, não é? Imagine a surpresa do dono da casa. Ele chega… e topa com um tipo como você.”
Memo pronuncia uma frase, uma só – e nos minutos seguintes não ouviremos mais sua voz: – “Sou uma gazela!”
E então o filme passa a mostrar o dia a dia de Memo e seu tio Braulio ali no sítio em que criam ovelhas e trabalham com lã.
Vemos Memo de novo invadindo uma casa num momento em que os moradores estão fora; ele anda pela casa, observa as coisas. Não rouba nada – apenas invade, caminha, observa. E em seguida entra de novo no barco e volta para o sítio, que fica completamente isolado, sem vizinhos por perto.
O que relato a seguir acontece quando o filme está com 20 minutos – mas, a rigor, a rigor, é spoiler. Quem não viu o filme deveria parar de ler por aqui.
Atenção: o que vem agora é spoiler.
Até os 20 minutos, ainda não houve propriamente o começo de uma história. A história começa a surgir nessa altura, em um flashback que se passa em um estúdio de gravação – veremos bem mais tarde que o estúdio fica em Miami. Ali, dois homens conversam. Um deles é evidentemente um produtor (o papel de Roberto Vander). O outro é o pai de um garoto que, conforme se fala no diálogo, tem uma voz maravilhosa, “divina” – obviamente Memo.
Memo garoto é interpretado por Lukas Vergara. O pai, Jacinto, por Alejandro Goic.
– “Uma voz não é tudo”, diz o produtor.
– “Meu filho não é idiota”, diz o pai.
Enquanto vemos o diálogo, ouvimos, ao fundo, a voz – de fato linda, maravilhosa – de um garoto. Memo está gravando no estúdio.
– “Isto é um produto”, diz o produtor. “O produto é o visual. O dinheiro não está na música. O dinheiro está nas menininhas tendo suas primeiras fantasias sexuais com seu filho.
– “Então por que estamos aqui gravando há semanas?”
– “Porque gosto da voz dele. Você me entende?”
– “Sim, mas a voz vem com o corpo. Você quer que eu… Quer que faça com que ele perca peso? É isso?”
– “Não, não, não. Ninguém aqui está pedindo que o Memo perca peso.
– “Então o quê? Não entendo.”
– “Veja, está é uma proposta. É bem comum, não tem nada de estranho.
– “O quê? Não entendo”, repete o pai.
O produtor faz uma pausa, e enfim explica: – “Você me dá a voz do seu filho… e eu faço o resto.”
O pai: – “Só a voz?”
– “Só a voz dele, meu irmão. Relaxe. Eu me encarrego de encontrar um corpo.”
Corta, e estamos na coxia de um palco de teatro em que se realiza um programa de TV ao vivo. O apresentador diz: – “Amigos, hoje à noite, neste programa, nasce uma estrela, um novo cantor, uma voz maravilhosa. Uma salva de palmas para Ângelo Casas!”
E entra em cena um garotinho magrinho, louro e com um rostinho bonito. Vai fingir que está cantando, enquanto o distinto público no teatro e nas casas ouve a voz de Memo.
Depois de anos de solidão total, surge uma moça
O que aconteceu no intervalo de 25 anos entre aquele diálogo no estúdio em Miami e a vida de Memo naquele fim de mundo, num sítio separado da pequenina cidade de Llanquihue por um braço do grande lago, o espectador só ficará sabendo bem no final da narrativa – e, obviamente, não vou antecipar aqui. Revelar o que acontece quando o filme está com 20 minutos a rigor já é spoiler – mas final de história, isso eu jamais conto aqui.
Só gostaria de registrar que surge na vida de Memo, inesperadamente, uma moça, que primeiro aparece na fazenda de Braulio para levar encomendas, e fica interessada em conhecer aquele homem que ela nunca havia visto antes.
Chama-se Marta, e é interpretada por Millaray Lobos.
A princípio, Memo se fecha completamente diante da aparição daquela desconhecida. Fica bastante claro – mesmo neste filme em que a narrativa é propositalmente misteriosa, sem explicitar quase nada – que Memo não tinha contato com mais ninguém além do tio. Conviver com uma moça, então, parece algo extremamente inusitado, inédito – mas, aos pouquinhos, ele vai se abrindo para ela.
Marta se torna uma personagem fundamental na história.
“Memo permanece como um enigma…”
Nadie Sabe que Estoy Aquí foi o primeiro filme chileno feito para ser exibido pela gigante Netflix. Foi uma produção da Fabula, a empresa do produtor e diretor Pablo Larraín, um dos maiores realizadores chilenos, ao lado de Sebastián Lelio. São de Pablo Larraín Tony Manero (2008) e o ótimo No (2012), sobre o plebiscito que marcaria o fim da ditadura do general Pinochet no Chile.
O jovem diretor Gaspar Antillo deu sorte de começar com Pablo Larraín como produtor.
No site RogerEbert.com, o filme recebeu apenas 2 estrelas em 4. A crítica assinada por Odie Henderson e publicada em junho de 2020, logo após o lançamento do filme, começa assim:
“Nobody Knows I’m Here conta a história de Memo (Jorge Garcia), um homem recluso que se esconde com seu tio Braulio (Luis Gnecco) numa parte remota do Chile. Memo gosta de invadir a casa das pessoas por razões que não são explicadas, e poderia parecer autista, embora uma linha de diálogo negue isso. Ele ajuda seu tio a cuidar de ovelhas e se recusa a qualquer tentativa de ir a lugares públicos ou ser sociável. Raramente fala com o próprio Braulio, que o repreende pelo seu comportamento anti-social e sua inclinação a invadir casas. À noite, ocasionalmente Memo se veste com roupas chamativas que ele mesmo cria e se apresenta para uma audiência de uma única pessoa. Apesar de todos esses detalhes, Memo permanece como um enigma durante a maior parte desse lançamento da Netflix.”
Perfeito! Esse sujeito conseguiu resumir em um belo parágrafo tudo o que eu levei umas cem linhas tentando dizer. E bem mais adiante ele coloca muito bem impressões que eu também tive:
“O diretor Gaspar Antillo ocasionamente retira o filme da realidade, o que não chega a ser um problema, mas fiquei incerto sobre se a penúltima sequência do filme de fato aconteceu.”
Perfeito. Mary e eu também ficamos em dúvida. Até porque mostra-se que Memo é de fato chegado a imaginar coisas, situações, eventos. A sensação que se tem é de que o diretor Antillo quis de fato deixar em aberto se toda aquela penúltima sequência do filme aconteceu de fato ou apenas na imaginação de Memo.
O texto de Odie Henderson prossegue: “Além disso, a fotografia é tão escura que eu quase não conseguia imaginar o que estava acontecendo sem rever várias vezes. A direção de arte, no entanto, é intrigante, transformando a casa de Braulio em um bagunçado personagem de vida própria, que poderia de fato abrigar aquele velho mal-humorado e seu sobrinho introvertido, torturado. A paisagem chilena também é muito bem usada.
“Se você está se perguntando por que razão a Netflix promoveria um filme chileno mais destinado às salas que exibem filmes de arte, você provavelmente não percebeu que Jorge Garcia é o mesmo cara de Lost. Minha memória me dizia que eu tinha visto aquele rosto antes, embora eu jamais tenha visto um episódio de Lost.”
Bem, é o meu caso: jamais vi uma sequência sequer de Lost.
Concordo com praticamente tudo o que o crítico do site RogerEbert.com diz. Acho que o filme exagera na coisa de adiar demais a entrega de informações fundamentais para o espectador; acho que o diretor o encenou de maneira a que ele parecesse mais misterioso do que seria necessário – mas considero Nadie Sabe que Estoy Aquí um bom filme. Quando afinal ele conta a história, é inegável que é uma história interessante, fascinante mesmo. E o que o filme afinal quer dizer – aquela coisa de que falei no início, nos lembrar que estamos virando cegos e surdos nesse culto às aparências – é uma beleza.
Anotação em julho de 2021
Ninguém Sabe que Estou Aqui/Nadie Sabe que Estoy Aquí
De Gaspar Antillo, Chile, 2020
Com Jorge Garcia (Memo)
e Lukas Vergara (Memo criança), Luis Gnecco (Braulio, o tio), Millaray Lobos (Marta), Alejandro Goic (Jacinto, o pai), Gastón Pauls (Ángelo), Vicente Alvarez (Ángelo criança), Eduardo Paxeco (Samuel), Juan Falcón (animador na TV), Solange Lackington (produtora na TV), María Paz Grandjean (Francisca), Nelson Brodt (Sergio), Roberto Vander (produtor musical em Miami)
Argumento e roteiro Gaspar Antillo, Josefina Fernández, Enrique Videla
Fotografia Sergio Armstrong
Casting Eduardo Paxeco
Direção de arte Estefania Larrain
Figurinos Felipe Criado
Produção Juan de Dios Larrain, Pablo Larrain, Fabula. Distribuição Netflix.
Cor, 91 min (1h31)
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