Esse Impulso Maravilhoso / That Wonderful Urge

Nota: ★★☆☆

(Disponível no Cine Antiqua do YouTube, em novembro de 2022.)

Em resumo bem resumido, a trama da comedinha romântica é assim: bela milionária se vinga de jornalista que não parava de escrever reportagens sórdidas sobre ela.

Resumidinha assim, a trama parece até interessante. Mas espere só o eventual leitor até ver alguns detalhes da história de That Wonderful Urge, no Brasil Esse Impulso Maravilhoso, na Franças Scandale en Première Page, em Portugal Escândalo na Primeira Página, que a Fox lançou em 1948, com o galã Tyrone Power e a estonteantemente bela Gene Tierney, os dois no auge da fama, ele depois de A Marca do Zorro (1940), Sangue e Areia (1941), O Fio da Navalha (1946), ela depois de O Diabo Disse Não (1943), Laura (1944), O Fantasma Apaixonado (1947).

É assim:

* O jornal, de Nova York, faz uma série grande de reportagens sobre a moça, Sara Farley, única herdeira de uma família dona de um conglomerado industrial da área de alimentação que, claro, mora lá mesmo, na maior metrópole do país. A cada edição, há uma chamada imensa na primeira página sobre Sara Farley – e todas as matérias são assinadas por Thomas Jefferson Tyler.

* Sara vai passar uns dias em Sun Valley, uma estação de esqui. (Sun Vallley existe mesmo, fica em Idaho, ou seja, longe pra cacete de Nova York.) Está com uma tia idosa, simpática, Cornelia (Lucile Watson), e um amigo, admirador, apaixonadão por ela, o conde Andre de Guyon (Reginald Gardiner).

* Titia Cornelia tinha ficado conhecendo um rapaz muito simpático, Tom – e logo Tom aparece e se senta à mesa em que estão a titia, Sara e o conde. Ele se apresenta como um jornalista de uma pequena cidade ali pertinho de Sun Valley. Diz para Sara que acha nojento, repulsivo o que aquele jornal de Nova York vem fazendo com as reportagens sobre ela. Sara, é claro, fica interessada no “jornalista do interior” que é contra o mui odiado Thomas Jefferson Tyler.

* Thomas Jefferson Tyler que se finge de Tom, “jornalista do interior”, dá um jeito de ficar a sós com a herdeira milionária e pede para ela contar a verdadeira história de sua vida, para que ele publique no seu jornal do interior – se ela quiser e aprovar –, para destruir a versão safada, suja, horrorosa, do jornal de Nova York.

* Sara Farley então se apaixona por Tom, “o jornalista do interior” – sem saber que ele vem a ser o horrendo, nojento, repulsivo Thomas Jefferson Tyler.

* O fato de que “o jornalista do interior” todo bonzinho e o horrendo, repulsivo, nojento jornalista de Nova York que infernizava a vida de Sara são a mesma pessoa é revelado.

* Para se vingar – para fazer com que Thomas veja como é o absoluto horror estar nas manchetes dos jornais estampado como alguém que ele na verdade não é -, a linda milionária faz o seguinte: anuncia ao mundo que se casou com Thomas Jefferson Tyler, depois de dar a ele de presente um milhão de dólares.

É divertido, a gente dá risada – mas é muito bobo

Lá pelas tantas eu olhei para Mary e pedi desculpas a ela por estarmos vendo um filme com uma história tão boba.

É assim: eu sou absolutamente apaixonado pelos filmes do período de ouro de Hollywood, os anos 30 a 50. Gosto de ver e rever aquelas velhas obras – mesmo as menores, menos conhecidas, mais obscuras. Mas, diabo, não tenho o direito de obrigar minha mulher a ver filmes bobos como este aqui.

Porque o filme é bobo. Sim, é divertido, para quem gosta desse tipo de coisa – é levinho, quase leviano, a gente dá umas risadas. Mas é bobo.

Por exemplo, a sequência em que Thomas e Sara estão presos.

Eles vão a uma lanchonete que é ponto de encontro de caminhoneiros sindicalistas, e se envolvem numa briga; os funcionários da lanchonete chamam a polícia, os dois são levados a um juiz preguiçoso, vagabundo, que manda prendê-los. Ficam em celas próximas, contíguas. Ela fica sozinha na cela dela; ele tem um companheiro de cela, um bêbado andrajoso que dorme na cama de baixo do beliche da cela. Thomas se deita – de terno e gravata – na cama de cima. Sente frio, e pega o cobertor do bêbado – o único cobertor existente ali. O bêbado, sem acordar, puxa o cobertor para si. Thomas puxa de novo para cima, o bêbado puxa de novo. A piada se repete algumas vezes.

De repente, Thomas começa a se coçar. Claro: havia um monte de pulgas no cobertor do bêbado andrajoso.

Da sua cela, Sara pede um cigarro. Diz que está com frio. Thomas, sempre bravíssimo com ela, passa o paletó. Daí a pouco Sara começa a se coçar.

Vamos e venhamos: eta bobagem danada, não?

Mas, diabo: você olha para Gene Tierney, aquela beleza absurda, e aí, fazer o quê? Dá uma risada…

Uma bobagem danada – e no entanto foi a segunda vez que Hollywood contou a mesma história. That Wonderful Urge é a refilmagem, em 1948, de Love is News, no Brasil Quem Ama… Castiga!, de 1937. E o mais doido: o filme de 11 anos antes era também com Tyrone Power! Ele interpretou duas vezes o mesmo jornalista que escreve reportagens ironizando a vida de uma herdeira riquíssima – o papel, na primeira versão, de Loretta Young.

O diretor do filme original foi Tay Garnett (1894-1977), que fez o excelente drama noir O Destino Bate à Porta/The Postman Always Rings Twice (1946). O diretor dessa refilmagem aqui foi Robert B. Sinclair (1905-1970), de quem eu nunca tinha ouvido falar.

As screwball comedies, uma criação de Hollywood

That Wonderful Urge foi ignorado por Pauline Kael e também não está entre os 11 mil títulos do guia de Mick Martin e Marsha Potter. O Petit Larousse des Films e o Guide des Films não quiseram saber de Scandale en Première Page. Mas Leonard Maltin não achou horroroso: “Refilmagem bastante divertida de Love is News sobre herdeira se vingando de repórter desagradável. Power repete seu papel do filme de 1937.” E deu 2.5 estrelas ao filme no total de 4 – exatamente a mesma cotação dada no guia de Steven H. Scheuer. É desse guia aquele resumo que usei na abertura deste texto: “Bela milionária se vinga de jornalista que não parava de escrever reportagens sórdidas sobre ela”. E Scheuer arremata: “Comédia romântica levemente agradável”.

Nem Sheuer nem Maltin usa a expressão screwball comedy para definir o filme. A expressão tampouco é usada no livro The Films of 20th Century Fox – que não faz avaliação alguma sobre That Wonderful Urge, apenas apresenta um resumo da trama.

Apesar disso, não há dúvida alguma de que esse filme é uma screwball comedy, um subgênero das comédias românticas inventado por Hollywood nos anos 30, que foi extremamente popular até o início dos anos 50 e até hoje de vez em quando é revisitado.

A palavra portuguesa mais adequada para screwball seria excêntrico, ou, com um pouco de forçação de barra, maluco. Há quem use “comédia amalucada” para o subgênero.

O livro … ismos – Para Entender o Cinema, de Ronald Bergan, lançado no Brasil pela Editora Globo, preferiu não traduzir o termo. “Comédia Screwball” está lá entre os gêneros “Gangsterismo” e “Exotismo”. Diz o livro:

“Criação exclusiva de Hollywood nos anos 1930 e início da década de 40, a Comédia Screwball tem como elementos o humor irreverente, a ação, diálogos rápidos, personagens excêntricos, o clima de guerra dos sexos e o confronto entre ricos ociosos e pobres diligentes.”

Uma característica básica: “enredos improváveis”.

“Como a Comédia Screwball emergiu da Grande Depressão, é compreensível que um de seus temas favoritos tenha sido sobre ricos ociosos aprendendo como vive o resto do mundo. Suavemente satíricos, os filmes terminavam com a heroína rica casando-se com o herói proletário, depois das hostilidades iniciais de praxe. Um exemplo típico é Irene, a Teimosa (1936), de Gregory La Cava. Adaptado do livro O Admirável Crichton (1902), de James Barrie, o filme conta como um homem (William Powell) torna-se mordomo de uma família abastada, endireita a vida de todos e se casa com a filha desmiolada (Carole Lombard, uma das atrizes-ícones desse subgênero). Já Aconteceu Naquela Noite (1934), de Frank Capra, mostra uma mimada herdeira fugitiva (Claudette Colbert) às voltas com um áspero jornalista (Clark Gable).”

Sim, herdeira com jornalista. Exatamente como em Love is News e That Wonderful Urge.

O livro dá outros exemplos:

“Em Boêmio Encantador (1938), de George Cukor, o jovem Cary Grant, comprometido com a herdeira esnobe de um banqueiro milionário, descobre que na verdade ama a irmā (Katherine Hepburn) de sua noiva. Em vez de aceitar um trabalho lucrativo, ele parte com a garota para a Europa: ambos renunciam a suas vidas douradas em nome do amor. Grant e Hepburn tornaram-se o perfeito casal “srewball” em Levada da Breca (1938), de Howard Hawks. No filme, Hepburn vive uma herdeira maluca que persegue Grant, na pele de um pacato paleontólogo de óculos. O enredo, como em muitas comédias do estilo, é tão louco quanto os protagonistas, e a ação transcorre em ritmo acelerado.

“Mulheres dinâmicas são uma marca da Comédia Screwball. As heroínas se revelam tão independentes e agressivas quanto os personagens masculinos. Em Levada da Breca, é famosa a frase dita por Hepburn: “Ele é o homem com quem eu vou me casar – ele não sabe ainda, mas eu vou”. As comédias de Hawks caracterizavam-se pela troca de papel entre os gêneros, como exemplifica Jejum de Amor (1940), em que a repórter de Rosalind Russell tenta, em vão, levar uma vida passiva num casamento de classe média. O filme se insere na categoria de comédias de “recasamento”, em que os personagens se divorciam para, em seguida, voltar a casar. Cupido é Moleque Teimoso (1937) de Leo McCarey e Núpcias de Escândalo (1940), de Cukor, também mostravam uma visão mais liberal em relação ao divórcio.

“No início da década de 1940, a Comédia Screwball seguiu por trilha similar com as comédias sociais de Preston Sturges, como Um Marido Rico (1942), em que Claudette Colbert parte de trem para a Florida, a fim de se divorciar de seu marido falido (Joel McCrea) e se casar com o noivo abastado. O subgénero, porém, não sobreviveu ao final da Segunda Guerra Mundial, quando a frivolidade saiu de moda.”

O cinema não parou de fazer screwball comedies

As duas últimas afirmações me parecem arriscadas, para dizer o mínimo. Em primeiro lugar, a frivolidade nunca saiu da moda. E, em segundo lugar, sem dúvida o auge das screwball comedies foi entre 1935 e 1945 – mas continuaram pingando exemplos nos anos seguintes. O verbete “screwball comedies” da Wikipedia cita dezenas de filmes pós 1945, entre eles

O Inventor da Mocidade/Monkey Business (1952), d. Howard Hawks

Como Agarrar um Milionário/How to Marry a Millionaire (1953), de Jean Negulesco,

Confidências à Meia-Noite/Pillow Talk (1959), de Michael Gordon,

Sortilégio do Amor/Bell, Book and Candle (1958), de Richard Quine,

O Pecado Mora ao Lado/The Seven Year Itch (1955), de Billy Wilder,

Quanto Mais Quente Melhor/Some Like It Hot (1959), também de Billy Wilder,

Cupido Não Tem Bandeira/One, Two, Three (1961), mais um de Billy Wilder.

Essa Pequena é uma Parada/What’s Up, Doc? (1972), de Peter Bogdanovich

O Amor Custa Caro/Intolerable Cruelty (2003), dos irmãos Coen,

A Vida num Só Dia/Miss Pettigrew Lives for a Day (2008), de Bharat Nalluri

Um Amor a Cada Esquina/She’s Funny That Way (2015), de Peter Bogdanovich.

Bem… Pela quantidade de filmes citados acima que já estão neste +_ de 50 Anos de Filmes (os que têm link), acho que dá para notar que o autor do site gosta bastante de uma screwball comedy…

Anotação em novembro de 2022      

Um P.S.: Ah, a memória da gente… Foi só na hora de postar o texto que vi que já havia escrito sobre o filme em 2004!

Atentíssimo, impressionantemente atento, Miguel Moreira reparou isso de imediato: “Sérgio, você já tinha comentado este filme antes!”, ele escreveu, nem 24 depois de o post entrar no ar. Formado em Ciências da Comunicação  pela Universidade da Beira Interior, com mestrado em Cinema e atualmente estudando História em Coimbra, Miguel é um jovem apaixonado pela época de ouro de Hollywood e suas belas atrizes. Conhece aquele período como só Rubens Ewald Filho conhecia.

Eu simplesmente não me lembrava de já ter visto o filme, quando o vimos em novembro passado. E, claro, de forma alguma me lembrava de ter escrito sobre ele.

Joguei fora o post antigo – mas, é óbvio, copiei o que havia escrito quase 20 anos atrás, antes de criar este site. Começava assim:

Ah, que maravilha as comédias românticas dos anos 30 a 50. Daria para fazer tratados sobre elas.

Esta aqui, feita em 1948, pertence a alguns dos subgêneros que Hollywood adorava: o do milionário(a) versus o(a) pobre; o do jornalista pobre x garota milionária (Aconteceu Naquela Noite, Núpcias de Escândalo); o dos jornalistas (A Primeira Página, Jejum de Amor).

Tem algumas brincadeirinhas políticas. A jornalista pergunta ao jornalista onde ele iria escrever a verdadeira história, agora que ele foi demitido, e ele diz: “No Pravda; é um perfeito exemplo dos defeitos do capitalismo”. A milionária e o jornalista entram num bar freqüentado por caminhoneiros sindicalizados e politizados, e eles começam a fazer uma assembléia para decidir que passos tomar diante da situação.

Mas é sobretudo despretensioso, divertido, maluco, sem pé nem cabeça – screwball.

Esse Impulso Maravilhoso/That Wonderful Urge

De Robert B. Sinclair, EUA, 1948

Com Tyrone Power (Thomas Jefferson Tyler),

Gene Tierney (Sara Farley|)

e Reginald Gardiner (conde Andre de Guyon), Arleen Whelan (Jessica Woods, a namorada de Thomas), Lucile Watson (Cornelia Farley, a tia), Gene Lockhart (juiz Parker), Lloyd Gough (Duffy, o editor chefe), Porter Hall (advogado Ketchell), Richard Gaines (Whitson), Taylor Holmes (advogado Rice), Chill Wills (juiz de paz Homer Beggs), Hope Emerson (Mrs. Riley), Frank Ferguson (Findlay), Charles Arnt (Mr. Bissell), Francis Pierlot (Barret), Joe Haworth (patrulheiro no campo de esqui)

Roteiro Jay Dratler

Baseado na história “Love Is News”, de William R. Lipman e Frederick Stephani

Fotografia Charles Clarke

Música Cyril J. Mockridge

Direção musical Lionel Newman

Montagem Louis Loeffler

Direção de arte Lyle Wheeler, George W. Davis

Figurinos Oleg Cassini, Fred A. Picard

Produção Fred Kohlmar, 20th Century Fox.

P&B, 82 min (1h22)

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Título na França: Scandale en Première Page. Em Portugal, Escândalo na Primeira Página.

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