A Cortina de Ferro / The Iron Curtain

Nota: ★★½☆

(Disponível No Cine Antiqua do YouTube em 8/2022.)

Pouquíssimo conhecido hoje, A Cortina de Ferro/The Iron Curtain, produção da 20th Century Fox de 1948 dirigida por William A. Wellman com, mais uma vez, a dupla Dana Andrews-Gene Tierney, é um filme que tem importância histórica.

Não chega a ser um ótimo filme, na minha opinião – embora Wellman seja um diretor de respeito, “um dos grandes realizadores de Hollywood”, como o define Jean Tulard.

Mas é indiscutivelmente um filme que tem importância histórica. Conta a história real do que muita gente considera um dos pontos de partida da Guerra Fria: a deserção do russo Igor Gouzenko, decifrador de códigos da embaixada da União Soviética em Ottawa, e a entrega por ele às autoridades canadenses de dezenas de documentos que comprovavam que agentes russos haviam montado uma ampla rede de espionagem, que incluía políticos, cientistas e nomes de diversas outras áreas.

A defecção do funcionário russo teve o efeito de uma bomba atômica.

Diante dos documentos roubados por ele da embaixada soviética e entregues às autoridades canadenses, o governo abriu uma ampla investigação, que levou à prisão de 39 suspeitos e à posterior condenação de 18 deles.

Mas, mais que isso, escancarou ao mundo os métodos de ação dos agentes de espionagem soviéticos, e como eles conseguiam obter a colaboração de pessoas que trabalhavam em postos importantes dos governos ocidentais.

“O ‘Caso Gouzenko’ é muitas vezes citado com um evento desencadeador da Guerra Fria’, diz a Wikipedia. E ela cita o historiador Jack Granatstein, segundo o qual foi “o começo da Guerra Civil para a opinião pública”, e o jornalista Robert Fulford, que escreveu estar “absolutamente certo de que a Guerra Fria começou em Ottawa”. E cita ainda o escritor e crítico literário Granville Hicks, para quem o Caso Gouzenko “despertou o povo da América do Norte para a magnitude e o perigo da espionagem soviética.”

Não é pouca coisa. De jeito nenhum.

Um filme feito logo após os fatos que reconstitui

Igor Gouzenko chegou à capital do Canadá, vindo da União Soviética, em 1943. Em plena Segunda Guerra Mundial, portanto, em que a União Soviética era aliada do Reino Unido, dos Estados Unidos, do Canadá, contra os países do Eixo, Alemanha, Itália e Japão. A deserção se deu no segundo semestre de 1945, pouco depois do final da guerra, com a rendição da Alemanha em maio e do Japão em agosto. As investigações e os julgamentos duraram vários meses, ao longo de 1946. Assim, quando The Iron Curtain foi lançado, em maio de 1948, os fatos todos eram recentíssimos. Tudo aquilo tinha acabado de acontecer, as notícias nos jornais e nas rádios ainda estavam frescas nas cabeças tanto canadenses quanto americanos.

Essa quase instantaneidade do filme é algo bem impressionante.

O diretor Wellman e o roteirista Milton Krims optaram por fazer um filme em um estilo quase de documentário; a voz em off de um narrador (o ator Reed Hadley) vai nos dando informações complementares à ação que vemos se desenrolar na tela, ao longo de todo o filme – que é curto, com apenas 87 minutos.

Nos créditos iniciais, informa-se que o roteiro é de Milton Krims, “baseado na história pessoal de Igor Gouzenko, ex-técnico em códigos, Embaixada da U.R.S.S. em Ottawa”. É dito também que a música é “de trabalhos selecionados dos compositores soviéticos Dmitiri Shostakovich, Serge Prokofieff, Aram Khachaturian e Nicolas Miaskovsky”, sob a regência de Alfred Newman.

O fato de terem sido usadas obras desses compositores foi motivo de grande polêmica – uma das primeiras batalhas da Guerra Fria. Falo sobre isso mais adiante.

Ao final dos créditos iniciais rápidos (como se usava na época), há as seguintes informações, apresentadas em letreiros sobre páginas de um livro:

“Esta história se baseia no relatório da Comissão Real de 27 de junho de 1946 e em provas apresentadas em tribunais canadenses que resultaram na condenação de agentes secretos do governo soviético. As mensagens e outros documentos citados e mostrados neste filme são exatamente os mesmos apresentadas como provas nos julgamentos dos agentes acusados. Todos foram autenticados pela polícia federal canadense. Todas as cenas externas foram filmadas no Canadá, nos locais originais.”

E, junto com as primeiras imagens que vemos – um avião em vôo, e depois seu interior –, ouvimos a voz em off do narrador:

“No início de 1943, um avião comercial comum chegava do Oeste, trazendo três passageiros da Rússia soviética. Haviam deixado Moscou cerca de uma semana antes; passaram por Fairbanks, no Alasca, e estavam a caminho de Ottawa, a capital do Canadá. Um dos passageiros era o coronel Alexander Trrigorin, o novo adido militar da embaixada soviética no Canadá. O outro era o major Semyon Kulin, seu auxiliar e secretário. O terceiro era Igor Gouzenko, especialista em decodificação, que deixava a Rússia soviética pela primeira vez. Assim que chegaram, foram levados à embaixada soviética, onde foram entrevistados por Ilya Ranov, segundo secretário da embaixada e chefe da NKVD, a polícia secreta soviética.”

NKVD – as iniciais para as palavras em russo que significam Comissariado do Povo de Assuntos Internos. A NKVD foi parte do Ministério do Interior da URSS, e uma parte dela viria nos anos 1950 a ser a KGB, o equivalente soviético à CIA americana.

O coronel Trigorin é interpretado por Frederic Tozere; seu ajudante, o major Kulin, por Eduard Franz; e Ranov, por Stefan Schnabel.

Igor Gouzenko, o protagonista da história, é o papel de Dana Andrews, que estava no auge da fama naquela segunda metade dos anos 40.

A mulher dele, Svetlana – chamada no filme de Ana –, viria de Moscou alguns meses depois. Ela é o papel da lindérrima Gene Tierney, essa atriz de vida trágica que havia sido a personagem-título de Laura, o grande clássico dirigido por Otto Preminger quatro anos antes, em 1944, dividindo os papéis centrais com o mesmo Dana Andrews.

Gouzenko é mostrado como fiel soldado do regime

O filme vai nos mostrando a vida de Igor Gouzenko na capital do Canadá – seu trabalho numa sala super protegida e bem guardada da embaixada, seu relacionamento com os colegas, com Trigorin e Kulin, em especial.

Ana-Gene Tierney ilumina a tela com sua beleza fulgurante a partir dos 23 minutos de filme, quando ela chega finalmente a Ottawa, vinda da Rússia.

O que me pareceu o ponto fraco do filme foi que ele mostra de uma maneira muito abrupta, brusca, repentina, a mudança de Igor Gouzenko, de um funcionário absolutamente dedicado ao regime comunista a um desertor, um traidor, um oponente.

Gouzenko é apresentado inicialmente como um soldado do regime, um homem absolutamente fiel às determinações que recebe.

Há toda uma sequência, ainda no início do filme, envolvendo a bela secretária do coronel Ranov, o chefe local da NKVD, Nina Karanova (o papel de June Havoc, na foto acima), que demonstra a absoluta fidelidade de Gouzenko. Toda sedutora, envolvente, Nina leva o recém-chegado servidor soviético para conhecer um dos prazeres do capitalismo, um belo nightclub, e em seguida para o seu próprio apartamento – que parece um palácio gigantesco aos olhos do russo acostumado aos padrões comunistas de habitação. Serve a ele bebida farta e parece que vai servir a si própria. Até que ele dá um basta, faz uma profissão de fé no regime comunista, afirma que a camarada Nina está há muito tempo longe da Rússia – e insinua que ela pode estar querendo extrair informações dele para passar para os capitalistas.

Ana também não se mostra uma mulher que renega seu país, que fica absolutamente deslumbrada com as maravilhas do capitalismo. Sim, ela se espanta ao ver que o apartamento onde viverá com o marido tem nada menos do que três cômodos – mas não vai muito além disso, e de conversar com a vizinha, Albert Foster (Edna Best), uma senhora que se mostra simpática, solícita, prestativa. Gouzenko é que – seguindo o duro treinamento recebido – diz para a mulher que eles não devem fazer amizades com os nativos do país capitalista, que isso é proibido para os funcionários soviéticos e seus parentes.

A transformação de Gouzenko é muito rápida

As regras são rígidas. Há um momento em que o coronel Ranov faz um discurso de advertência aos russos e seus aliados canadenses, diante do fim da guerra em que comunistas e os países capitalistas foram aliados:

– “Não deve haver nenhum equívoco quanto a nossas relações com nossos ex-aliados capitalistas. Nossos interesses não podem nunca coincidir. Nossas regras e objetivos são bastante diferentes. Entre nós não há lugar para o sentimentalismo burguês, apenas para um incansável realismo. A luta de classes vai continuar, até que essa democracia decadente, plutocrática, seja completamente destruída, assim como o nacional-socialismo (alemão). Dessa maneira, vocês, representantes da União Soviética no Canadá, devem permanecer sempre vigilantes, suspeitos e distantes”.

É incrível como a fala do homem da NKVD no filme tem o mesmo tom dos discursos de Garganta, o porquinho porta-voz de Napoleão, o chefe do novo regime na Granja dos Bichos da fábula anti-totalitarismo criada por George Orwell, Animal Farm, no Brasil A Revolução dos Bichos. É exatamente o mesmo tom!

Mas vamos em frente.

Sim, é verdade que há o major Kulin – uma bela interpretação do ator Eduard Franz –, que tenta incutir na cabeça de Gouzenko uma outra visão sobre o comunismo. Kulin, embora major, embora braço direito do coronel Trigorin, não é um soldado do partido. Muito ao contrário: está absolutamente convencido de que o regime é uma ditadura cruel, e, para sobreviver, enche a cara todo dia.

Mas, mesmo com a existência desse personagem, e de suas conversas com Gouzenko, tentando mostrar para ele que o tal do paraíso soviético não é nada paradisíaco, me pareceu abrupta demais a transformação daquele funcionário extremamente leal ao regime em um traidor.

Assim como me pareceram toscas, mal engendradas, quase chegadas ao ridículo algumas das situações criadas pelo roteirista Milton Krims depois que Gouzenko decide roubar documentos secretos da embaixada e entregá-los às autoridades.

Mas isso tudo aí é só minha opinião, que vale tanto quanto a de qualquer um, que não pretende de forma alguma ser a expressão da verdade. Ao meu lado, Mary não viu como fraquezas do filme isso aí que tentei descrever.

O que importa é que, meu Deus do céu e também da Terra, apenas dois anos depois daqueles julgamentos e das condenações de canadenses que auxiliaram os agentes soviéticos e entregaram informações a eles, foi feito um filme que contava a história para o mundo.

Dá para imaginar a fúria que a existência desse filme provocou na União Soviética, no círculo em torno de Josef Stálin.

Gouzenko publicou dois livros

Igor Gouzenko, Svetlana e o primeiro filho do casal, à época ainda um bebê, foram colocados sob proteção pelo governo do Canadá. Isso é informado ao espectador ao final do filme, logo após tomadas de vários dos canadenses que colaboravam com os agentes russos sendo condenados pela Justiça. “Igor Gouzenko e sua família vivem hoje no Canadá”, diz o narrador, enquanto vemos uma tomada geral de uma fazenda em que caminham o desertor, sua mulher e dois filhos. “Graças a um decreto especial, o país, agradecido, lhes deu os direitos, liberdades e privilégios dos canadenses, com os quais podem desfrutar uma vida tranquila como súditos britânicos. Na verdade, não podem. Ameaçados, vivem escondidos, sob constante proteção da Polícia Montada do Canadá. Mas não perderam a esperança no futuro. Sabem que a segurança deles e dos filhos depende da sobrevivência da democracia.”

Igor e Svetlana criaram oito filhos. Ele escreveu dois livros. This Was My Choice era um relato autobiográfico sobre seu trabalho na embaixada e sua deserção. O romance The Fall of a Titan ganhou um prêmio em 1954. Ele chegou a aparecer na televisão, para promover seus livros, sempre com um grande capuz na cabeça, para não ser identificado. Morreria de um ataque cardíaco em 1982, aos 63 anos. Svetlana faleceu em 2001, e seu corpo foi enterrado ao lado do do marido, em Mississauga, Ontario.

Em 2002, o governo canadense designou “O Caso Gouzenko (1945–46)” como um “evento de significância histórica”. Em 2019, foi lançado o livro Remembering Gouzenko: The Struggle to Honour a Cold War Hero, de Andrew Kavchak.

A historiadora americana Amy Knight, que trabalhou 18 anos na Biblioteca do Congresso como uma especialista em assuntos sobre a União Soviética e a Rússia, lançou em 2007 o livro How the Cold War Began: The Igor Gouzenko Affair and the Hunt for Soviet Spies. A obra teve uma edição brasileira, pela Record, em 2008, com o título fiel ao original mas abreviado, Como Começou a Guerra Fria.

Um outro filme sobre a história de Igor Gouzenko foi feito em 1954; Operation Manhunt foi dirigido por Jack Alexander, com Harry Townes no papel do criptógrafo russo.

Leonard Maltin deu 3 estrelas em 4 a este The Iron Curtain: “Saga “anti-commie” bem feita, baseada em fatos reais, sobre Igor Gouzenko (Andrews), que com a mulher Tierney tenta escapar para o Ocidente com documentos ultrassecretos. Filmado no Canadá.”

O livro The Films of 20th Century Fox faz uma boa sinopse, e diz que o filme é “uma representação emocionante em estilo semidocumentário”, “uma história real contada com habilidosa factualidade”.

O Guide des Films do mestre Jean Tulard diz sobre Le Rideau de Fer: “Um dos melhores filmes da ‘série anti-vermelha’, produzido durante a Guerra Fria”.

Músicas roubadas por  um “vigarista”

Como bem define o IMDb, “a música no filme virou tema de um episódio menor porém interessante da Guerra Fria”.

O grande Alfred Newman (1900-1970), nove Oscars (!!!!), então chefe do departamento musical da 20th Century Fox, não compôs uma trilha para o filme – usou trechos de composições de Dmitri Shostakovich, Sergei Prokofiev, Aram Khachaturyan e Dominik Miskovský.

Todos os quatro compositores assinaram uma carta de protesto, dizendo que sua música havia sido roubada por um “vigarista” para aparecer em “um filme ultrajante”. Como eles viviam na União Soviética, e evidentemente o filme não foi exibido lá, o que se infere é que eles foram forçados a escrever a carta de protesto pelo regime stalinista.

O IMDb lembra que os quatro compositores estavam na época sendo criticados pela imprensa oficial soviética por estarem, nos últimos tempos, compondo música “subversiva” – seja lá o que isso possa significar.

O autor desse item na página de Trivia sobre o filme no grande site enciclopédico (cujo nome não foi divulgado) faz uma observação interessatíssima, de grande sensibilidade: “Coincidentemente, Hollywood estava, naquela mesma época (o filme é de 1948, lembro mais uma vez) passando pelo escrutínio do House Un-American Activities Committee, por sinais de “subversão do Estado americano, resultando na sua própria lista negra”.

O macarthismo, a caça às bruxas promovida pelo HUAC, o comitê da Câmara dos Deputados sobre atividades anti-americanas, é um dos episódios mais tristes, mais lamentáveis da história da democracia dos Estados Unidos. Centenas de profissionais da indústria cinematográfica e do show business de maneira geral foram impedidos de trabalhar, acusados de comunistas ou simpatizantes do comunismo. Claro que ser comunista não é crime algum, e jamais poderia ter sido motivo para que alguém fosse impedido de trabalhar. Mas que muitos deles eram efetivamente comunistas, muitos com carteirinha do Partido e tudo, lá isso eram.

Anotação em agosto de 2023

A Cortina de Ferro/The Iron Curtain

De William A. Wellman, EUA, 1948

Com Dana Andrews (Igor Gouzenko),

Gene Tierney (Anna Gouzenko)

e June Havoc (Nina Karanova), Berry Kroeger (John Grubb, codinome Paul), Edna Best (Mrs. Albert Foster, a vizinha), Stefan Schnabel (coronel Ilya Ranov, o oficial da NKVD), Frederic Tozere (coronel Aleksandr Trigorin, o adido militar), Eduard Franz (major Semyon Kulin, secretário do coronel), Nicholas Joy (dr. Harold Preston Norman), Reed Hadley (a voz do narrador)

Roteiro Milton Krims

“Baseado na história pessoal de Igor Gouzenko, ex-técnico em códigos, Embaixada da U.R.S.S. em Ottawa”

Fotografia Charles G. Clarke

Trilha sonora com orquestra regida por Alfred Newman

Montagem Louis R. Loeffler

Direção de arte Mark-Lee Kirk, Lyle R. Wheeler

Figurinos Bonnie Cashin

Produção Sol C. Siegel, 20th Century Fox.

P&B, 87 min (1h27)

**1/2

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